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Sobram conflitos de interesses nas críticas à classificação NOVA

A integridade da ciência depende tanto da acurácia dos métodos como da ética dos pesquisadores. A declaração de conflito de interesses tem sido adotada pelas publicações científicas como um elemento aferidor desse compromisso, abrindo espaço para que autoras e autores exponham suas afiliações institucionais, profissionais e até religiosas quando relacionadas ao universo pesquisado, tornando públicas tais informações para julgamento dos próprios leitores e da comunidade científica.

Nas áreas em que envolvem grandes interesses comerciais, no entanto, essa prática nem sempre é comum. Pelo contrário, muitas vezes os conflitos são camuflados. O último número do periódico World Nutrition (WN, 2018;9(3) traz o artigo Criticism of the NOVA classification: who are the protagonists? que se propõe a jogar luz sobre essa prática no campo da nutrição. O resultado chama atenção. De 38 artigos selecionados, 32 trazem assinaturas de autores e/ou coautores com conflito de interesses – explícitos ou camuflados – com a cadeia produtiva de alimentos ultraprocessados.

Nos últimos quatro anos o debate científico da área tem sido polarizado em torno da classificação NOVA, que propõe a discussão sobre o consumo de alimentos e produtos alimentícios a partir da extensão e propósito do processamento. À mesma velocidade que o sistema classificatório apresentado pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição em Saúde (NUPENS/USP) quebra paradigmas e expõe os efeitos nocivos dos produtos ultraprocessados à saúde e ganha respaldo internacional, a ferramenta também tem sido muito criticada.

A classificação NOVA é a base utilizada no Guia Alimentar da População Brasileira, publicado em 2014, e foi endossada no ano seguinte pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS/OMS), sendo utilizada também nas orientações alimentares do Uruguai e referenciada pelas autoridades públicas e sanitárias do Canadá e da França. Em 2017 foi alvo de críticas em publicações e eventos científicos, sem ter tido direito de resposta. À época, a Abrasco lançou nota de apoio ao NUPENS/USP. A campanha seguiu insidiosa por diversos veículos e eventos, chamando a atenção de outros pesquisadores que não são afiliados ao mesmo núcleo de pesquisa. Afinal, quem critica a classificação NOVA?

Com o objetivo de identificar as relações entre indivíduos e organizações que têm recentemente criticado a classificação, as pesquisadoras Melissa Mialon e Fernanda Baeza Scagliusi, ambas do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP), e o pesquisador Paulo Sêrodio, da Escola de Economia da Universidade de Barcelona, mergulharam nas principais bases científicas para localizar e averiguar tal produção.

A pesquisa foi conduzida entre agosto e dezembro de 2018 nas bases PubMed, Scopus e Web of Science. Num primeiro momento, os pesquisadores buscaram por todo e qualquer tipo de conteúdo que trouxesse a palavra-chave “ultraprocessado” sem definição de tempo. Posteriormente, as buscas foram refinadas, selecionando todo o tipo de material considerado crítico à classificação NOVA, incluindo artigos científicos, resumos de apresentações orais, comentários encomendados, editoriais, vídeos e até depoimento em audiência pública. Os documentos foram publicados e/ou apresentados na Bélgica, Brasil, Colômbia, Estados Unidos, França e Reino Unido.

+ Leia e assista à entrevista dCarlos Monteiro, coordenador do Nupens/USP, ao canal Futura, onde explica relação complexa entre saúde e alimentação e a classificação NOVA 

Na sequência, os pesquisadores cruzaram o nome dos autores e coautores das publicações selecionadas com declarações de conflito de interesse encontradas. Realizaram também buscas na web para localizar agradecimentos, financiamentos, patrocínios e parcerias celebrados entre os autores e/ou suas instituições afiliadas com a cadeia produtiva de alimentos ultraprocessados, o que inclui a indústria, as grandes empresas de distribuição e associações empresariais e de promoção comercial.

Publicações assinadas/produzidas por autores e coautores que trabalham diretamente na indústria de alimentos no período da pesquisa foram excluídas. As demais foram divididas em duas listas: uma contendo a primeira autoria e outra somente com os coautores.

Os cruzamentos entre os nomes das duas listagens com as organizações da cadeia produtiva de alimentos ultraprocessados foram feitos por algoritmos geradores de grafos que evidenciaram e identificaram os nós e o nível de proximidade entre tais cientistas com os agentes do setor privado diretamente ligados ao universo pesquisado, ao qual deveriam ter idoneidade.

No total, foram identificados 32 materiais críticos à classificação NOVA ou, mais amplamente, ao método de classificação de alimentos e bebidas com base no processamento industrial, assinados/identificados por/com 38 autores e coautores. Desses 33 indivíduos tiveram ou têm em algum momento da vida profissional alguma ligação com os agentes privados da cadeia produtiva. Dez autores assinam ou participam em mais de uma publicação.
Outra marca de concentração foi a ligação de 20 desses autores com o International Life Science Institute (ILSI), reconhecida organização de lobby da indústria, fundada e mantida por grandes empresas como Cargill, Coca-Cola, Danone, General Foods, General Mills, Kraft-Heinz, Mc Donald’s, Mondelez, PepsiCo, Procter & Gamble e Unilever. Juntas essas empresas detêm quase a totalidade das marcas internacionalmente consumidas, mormente alimentos ultraprocessados.

“Nosso estudo tem várias limitações: não se destinava a ser um exercício sistemático e não foi exaustivo, mas apresentou as relações entre indivíduos/organizações que criticaram a NOVA e a indústria dos ultraprocessados. Nossa intenção não era avaliar o conteúdo das críticas, nem as refutar, podendo ser assunto para análises posteriores. No momento, a conclusão é que existem muitas dessas relações e a sua maioria é desconhecida do público, o que põe em xeque as declarações de conflito dos periódicos e traz riscos às decisões tomadas por profissionais de saúde e de políticas públicas, deixando-as sob influência da indústria de ultraprocessados. Demonstra ainda a necessidade de maior transparência no universo da pesquisa, produzindo impactos negativos em detrimento do avanço cientifico da área de nutrição em saúde pública”, concluem os autores. Acesse o PDF do artigo, em inglês

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