Nesta segunda-feira (24) foi realizado o seminário público “O Golpe no SUS”, organizado pela revista Le Monde Diplomatique Brasil e pela Plataforma Política Social em parceria com a Associação de Ongs Brasileiras (Abong), Instituto Polis, Fórum 21 e Revista Vaidapé. O evento foi o sétimo seminário construído pelas organizações sob o manifesto #GovernoSemVoto, que visa analisar os potenciais retrocessos nos direitos humanos durante o governo não eleito de Michel Temer.
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Transmitido ao vivo pela TV PUC-SP, o seminário reuniu cerca de 70 pessoas, além dos internautas online, e contou com a presença de Gastão Wagner, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp e presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), de Jairnilson Paim, professor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e de Ligia Bahia, médica sanitarista e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Os debatedores discutiram propostas do governo Temer que consideram ameaçar o funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS). Uma das medidas criticadas é a PEC 241, em trâmite no Congresso, que prevê o congelamento dos gastos públicos por vinte anos. Já os Planos de Saúde Acessíveis – uma proposta que reduziria as exigências mínimas de cobertura dos planos de saúde privados, criando “planos populares” para supostamente desafogar o SUS – corroeriam ainda mais o sistema público, na opinião dos especialistas.
SUS – O professor Jairnilson Paim destacou em sua fala a complexa estrutura e significação do SUS que, na sua opinião, é resumida pelas classes mais altas como um sistema com parcos recursos dirigido somente às pessoas pobres.
“Nós entendemos que o SUS não é apenas uma sigla, tem uma história, princípios, valores, materialidade e um arcabouço legal que se estrutura na Constituição mesmo em condições adversas. O SUS é o sistema universal público para todos. Essa ideia de SUS pobre para pobre, é a ideologia dominante da nossa sociedade e nós não apostamos nela. Temos quase um exército de trabalhadores de saúde, que pode ser sim mobilizado, não só em defesa do sistema, mas contra o rebaixamento dos direitos sociais que tem sido imposto pela conjuntura”, afirmou.
Já na opinião de Gastão Wagner, a realidade do SUS ainda é apenas uma sombra da radicalidade do projeto original. “O SUS concepção, a reforma sanitária, é um projeto muito radical de política. O projeto passa pela ideia de cidadania, independente do mérito de cada pessoa. A implementação do SUS coincidiu com a hegemonia do neoliberalismo, desde a sua implementação ele rema contra a maré, e vem sendo golpeado e criticado desde então. Isso resultou em um SUS real que ainda é apenas simulacro, uma sombra do nosso próprio projeto”.
Apesar disso, o presidente da Abrasco reitera que o sistema ainda assim tem muita relevância no Brasil. “Não vão poder tirá-lo sem nenhuma reação. 70% dos brasileiros só tem o SUS e mais nada e o governo Temer é contra o SUS e o Ministro da Saúde é contra o SUS”, criticou.
Governo Temer – Na opinião de Paim, as medidas propostas pelo governo do presidente não eleito Michel Temer estão consolidando uma série de golpes no SUS, que passam por vias ideológicas, políticas e econômicas.
“Nós estamos diante de um golpe, não há dúvida, mas dentro da área da saúde são vários golpes que já haviam se estruturando: a abertura da saúde ao capital estrangeiro, que pode alterar o DNA do nosso sistema público; O PL de Eduardo Cunha que implica em Planos Privados “Para Todos” que vão corroer ainda mais o sistema público; o PL das terceirizações; a prorrogação da desvinculação de receitas da União; e, talvez o mais sério, a implantação da PEC 241. Tudo isso feito por pessoas que não foram eleitas e que cometeram um golpe parlamentar”, explicou.
Para Ligia Bahia, está ocorrendo uma perda da base técnica do SUS, que consiste em um modo de interpretar o mundo e intervir sobre ele. “Estamos diante de um governo que vende gato por lebre, que vende cortes das despesas como melhoria do sistema. Todos são contra a corrupção, mas todos são a favor do financiamento da saúde e da educação pública. Esse é o golpe. Uma base duramente construída por 30 anos, que procura fazer uso racional de recursos, está sendo destruída e é uma perda fatal”.
“Temos uma invasão do Partido Progressista (PP) na saúde, um conjunto de partidos políticos que dividiram entre si a apropriação dos recursos públicos e trabalham com uma lógica de recompensa para quem é aliado e de punição para quem não é. Perdemos o apoio dos sindicatos. Estamos perdendo com a privatização, ficando confinados em uma agenda assistencialista. Há quatro vezes mais recursos para os planos de saúde privados, utilizado por 28% da população, do que para o SUS”, explicou a professora da UFRJ.
O professor Paim apontou ainda a calamidade que o corte de gastos na área da saúde representaria em um cenário de crise econômica, afirmando que, com um aumento da demanda por serviços públicos, haveria um desmonte no cenário de bem estar social.
“Até mesmo as pessoas que tinham planos de saúde vão ser empurradas para o SUS. Estamos diante de uma bomba relógio. Temos uma tripla carga de doenças: transmissíveis, crônicas e causadas por acidentes. O número de idosos vai duplicar nos próximos vinte anos, e isso só é visto do ponto de vista da previdência. Os gastos federais não crescem por conta da saúde, o gasto público com a saúde brasileira é imensuravelmente inferior das médias internacionais. É possível pensar no desmantelamento desse sistema apenas para dar conta de uma crise fiscal?”, questionou.
Para Gastão Wagner, com a aprovação das medidas destacadas por Paim haverá “uma epidemia de mortes e doenças”. “Na Abrasco a gente vem priorizando a criação de uma análise do austericídio – ou seja, entender como o ajuste econômico faz mal à saúde, como ele mata. O SUS não tem futuro se a gente intervir, a esperança somos nós”, disse.
Intervenção – No fim de sua fala, o presidente da Abrasco reiterou a importância da intervenção dos movimentos populares para a preservação do SUS, bem como do trabalho de base com a população.
“Nesse momento de crise, o movimento social tem que assumir a racionalidade e reforçar o movimento sanitário em discussões com a sociedade”, afirmou ao relembrar que desde 1930 há uma luta do povo por ampliação do acesso à saúde.
Ligia destacou também em sua fala algumas medidas que considera essenciais para conquistar uma ‘volta por cima’ e resistir às perdas nos direitos sanitários. “Temos que tentar não perder a base técnica do SUS, apresentar uma nova agenda e reconhecer que nós, que defendemos a saúde pública, somos uma minoria política, e devemos apostar em movimentos populares”, concluiu a médica.