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Facchini fala ao Portal EPSJV/Fiocruz sobre os 40 anos de Alma-Ata

Portal EPSJV/Fiocruz


Foto: Peter Ilicciev/Fiocruz

Em setembro de 1978, a Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, realizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em Alma-Ata, na República do Cazaquistão, expressava a “necessidade de ação urgente de todos os governos, de todos os que trabalham nos campos da saúde e do desenvolvimento e da comunidade mundial para promover a saúde de todos os povos do mundo”. A Declaração de Alma Ata – documento síntese desse encontro – afirmava a partir de dez pontos que os cuidados primários de saúde precisavam ser desenvolvidos e aplicados em todo o mundo com urgência, particularmente nos países em desenvolvimento. Naquele momento, conforme defesa feita pela própria OMS, a saúde era entendida como “completo bem-estar físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de doença ou enfermidade”. Por conta dos quarenta anos de Alma Ata, completados neste mês de setembro de 2018, o Portal EPSJV/Fiocruz foi ouvir o professor do Departamento de Medicina Social da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco (2009-2012) e coordenador da Rede de Pesquisas em Atenção Primária à Saúde (Rede APS), Luiz Augusto Fachinni, que fez um balanço das quatro décadas do documento que foi um marco para o mundo. Nesta entrevista, Fachinni fala ainda sobre a Conferência Global da OMS sobre Atenção Primária em Saúde, marcada para outubro em Astana, no Cazaquistão, quando será apresentada uma nova Declaração sobre Atenção Primária à Saúde, analisando até onde os princípios apresentados pelo documento se aproximam ou se distanciam do texto de 1978. A Declaração de Astana vem apresentar os desafios para o avanço da cobertura universal de saúde e do desenvolvimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).

Portal EPSJV/Fiocruz: Por que Alma Ata foi um marco para o mundo? Quais foram as principais contribuições de Alma Ata para a concepção de saúde e a organização de sistemas de saúde no mundo?

Luiz Augusto Facchini: A declaração de Alma-Ata se revestiu de uma relevância muito importante em vários contextos, âmbitos e dimensões. Anteriormente à Alma-Ata, existiam experiências isoladas de atenção primária à saúde que estavam muito vinculadas a duas ordens de desenvolvimento. Nos sistemas de saúde que estavam se organizando, especialmente no sistema de saúde inglês, por exemplo, destacavam-se algumas dessas experiências, mas a atenção primária não era o elemento central, pelo menos não da maneira como a gente compreende hoje a atenção primária. Entre 1959 e 60, tivemos a Revolução Cubana. Foi quando, de fato, se pensou um sistema com serviços de saúde organizados próximos ao local de moradia, das residências das pessoas e orientado para o atendimento. Havia um movimento no mundo de iniciativas nacionais e em contextos particulares. Mas não havia uma definição de um modelo de atenção primária à saúde. Teremos referências do início do século 20, em 1920, com o Relatório Dawson, na Inglaterra. Ali, o médico da família britânica Lord Dawson já havia feito referência a uma organização de sistemas de saúde baseada em uma rede capilarizada de serviços que começavam com a atenção primária. A Inglaterra deixou isso de lado, por conta de enfrentamentos políticos, e essa ideia de atenção primária se perdeu.

Alma-Ata foi, então, o primeiro destaque dado à atenção primária em termos globais, recuperando experiências e reflexões teóricas. Muitas dessas experiências foram desenvolvidas, pontualmente, em vários países da África, na Ásia e, até mesmo, na América Latina, com a participação de profissionais de saúde e, particularmente, de médicos vinculados às igrejas católicas e protestantes, bastante envolvidas por ocasião da Reforma Luterana. Havia uma concepção de missionário, de dedicação religiosa filantrópica em relação a essas iniciativas pontuais de atenção primária à saúde ao longo de todo século 20. Quando então ocorre a Conferência de Alma-Ata, por uma iniciativa da Organização Mundial de Saúde em parceria com a Unicef [Fundo das Nações Unidas para a Infância], a proposta de atenção primária ganha destaque e relevância, pois explicita um modelo altamente abrangente, uma ideia de saúde para todos. Portanto, conforme anunciado em sua chamada, Alma Ata define a atenção primária como estratégia a ser ofertada a toda a população. Traz a ideia de ideia de universalidade, e propõe isso no contexto de um sistema de saúde. A noção de sistema de saúde é articulada nesse encontro. Alma Ata defende um modelo que em inglês chamamos de compliance, ou seja, um modelo de integralidade, que abrange o conjunto das necessidades de saúde da população. O documento fala em articulações intersetoriais, fortalecendo as ideias de nutrição e alimentação, como também de participação comunitária popular e de esforços de educação. Alma Ata é uma recomendação de dois organismos internacionais, OMS e Unicef, e assinada por uma grande quantidade de países que concordavam com a proposta.

Portal EPSJV/Fiocruz: Havia consenso em torno dos marcos referenciais da declaração de Alma Ata? Se havia divergências, quais eram as principais e quem representava cada posição?

Luiz Augusto Facchini: Assim que Alma Ata foi apresentada, começou o debate internacional em torno da sua implementação. Ela não foi censurada em nenhum momento, mas ela foi contraposta. Houve imediatamente uma contraposição àquilo que tinha sido aprovado em Alma-Ata por iniciativa da OMS e da Unicef. Em 1980, depois de dois anos do encontro, o Banco Mundial e o próprio Unicef fizeram uma proposta alternativa à Alma-Ata, sob os argumentos de que faltaria dinheiro, vontade política e infraestrutura. Então, apresentaram um pacote de APS seletiva, com recortes mais restritos: a Estratégia GOBI (sigla em inglês para indicar monitoração do crescimento, Reidratação Oral, Aleitamento Materno e Imunizações). Era uma APS centrada fundamentalmente na atenção à saúde da criança e à mulher. O foco na reidratação oral, por exemplo, era porque na época a diarreia era uma das causas mais impressionantes de mortalidade de crianças no período pós-neonatal. A ênfase no aleitamento materno era estratégico para garantir melhores condições de nutrição e imunidade às crianças. E o foco na imunização era forma de expandir toda a questão vinculada com a proteção vacinal para doenças da época, como sarampo, difteria, tétano, tuberculose, poliomielite etc. Tinham outras recomendações genéricas: educação das mulheres, nascimento das crianças, suplementação alimentar etc. A Estratégia GOBI, de uma APS seletiva, foi a primeira na contraposição à Alma Ata. E boa parte dos países passaram a seguir as receitas do Banco Mundial, desenvolvendo não apenas uma lógica de uma atenção primária seletiva e recortada, com foco na saúde materno-infantil, como também passaram a pensar sistemas de saúde com os mesmos recortes.

No Brasil, havia uma ênfase diferente disso, mesmo antes do Sistema Único de Saúde [SUS]. O movimento da Reforma Sanitária brasileira já propunha a ideia de um sistema universal de saúde, de uma APS forte, abrangente e integral, e isso foi se materializando com experiências que iam surgindo em vários lugares: no interior de Minas Gerais, em São Paulo, no Rio Grande do Sul, em muitos lugares do Nordeste, enfim, em 1978, quando a Alma-Ata define a sua proposta, já havia várias experiências coincidentes com essa leitura em desenvolvimento no Brasil. Eu me lembro de que o Departamento de Medicina Social da Universidade Federal de Pelotas foi criado no ano de 1976. Quer dizer, dois anos antes de Alma-Ata, e nessa oportunidade já foi criado junto ao departamento uma unidade básica de saúde, com características de uma atenção primária universal. Todo mundo podia ser atendido lá, com território definido, um atendimento gratuito, porque ele era oferecido por professores e alunos da universidade. Quando o SUS é constituído formalmente em 1988, portanto dez anos depois de Alma-Ata, essa noção de que teríamos atenção primária universal e integral já estava totalmente sedimentada. Nós fomos uma experiência dissonante desse contexto. Conseguimos construir um sistema universal, financiado com recursos pagos pela população através dos seus impostos, integral desde a vacina até os transplantes e todas as ações de saúde, e ficar ao longo de todo esse tempo relativamente protegidos desses pacotes de serviços como os oferecidos pelo Banco Mundial.

Portal EPSJV/Fiocruz:O SUS completa 30 anos quando a declaração de Alma Ata completa 40. Qual a influência de Alma Ata para a construção de sistemas universais de saúde, como o do Brasil?

Luiz Augusto Facchini: Com certeza, ela dá um respaldo, ela dá uma proposta de modelo, ela define características fundamentais para o desenvolvimento da expansão dos sistemas universais.

Portal EPSJV/Fiocruz: Alma Ata trouxe alguma referência para se pensar a formação e a gestão do trabalho nos sistemas de saúde?

Luiz Augusto Facchini: Ela foi inspiradora em todos os sentidos, pela sua grande abrangência, especialmente para países que não tinham nada. Para fazer atenção primária à saúde, temos que formar profissionais e equipes. Então nas universidades, os currículos de atenção primária à saúde, começaram a se desenvolver. Os departamentos de Medicina Social dessas universidades, com Alma Ata, começam a desenvolver conteúdos relativos às ações de atendimento primário à saúde e de formação dos alunos. Portarias, diretrizes e normas passaram a ser implementadas. As políticas de saúde como entendemos fizeram parte de um contexto de estímulos para a educação, a pesquisa, a prestação de serviços, bem como para a organização de sistema. Alma-Ata foi inspiradora para a Estratégia Saúde da Família, que em boa medida pode ser considerada uma das experiências mais bem sucedidas. No Brasil, a Reforma Sanitária partiu de dentro da academia, foram profissionais de saúde vinculados às exigências daquele momento, aos departamentos de Medicina Preventiva, Enfermagem e todas as áreas que estavam se mobilizando por um sistema público universal de saúde. A produção de conhecimento e a formação profissional para o SUS e para a atenção primária sempre tiveram uma vinculação com as universidades e a academia, e isso se aprofundou nos últimos anos com a criação da UNA-SUS [Universidade Aberta do SUS], que são universidades que formam uma rede para a formação profissional em saúde.

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