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Tragédias de Minas Gerais e os desafios para a saúde coletiva

Informe ENSP

Ricardo-Stuckert/ Fotos Públicas

A mineração de ferro não produz só bilhões de dólares e “progresso”: ela está repleta de perigos, mortes e destruição socioambiental. Trabalhadores morrem e adoecem. Como as tragédias nas barragens de Minas Gerais podem ser compreendidas pela saúde coletiva e quais desafios ela implica? É o que aborda um artigo do pesquisador da ENSP, Marcelo Firpo de Souza Porto. Firpo também é integrante do Grupo Temático Saúde e Ambiente (GTSA/Abrasco) e um dos autores do Dossiê Abrasco: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde.

O artigo A tragédia da mineração e do desenvolvimento no Brasil: desafios para a saúde coletiva, publicado na revista Cadernos de Saúde Pública, em fevereiro de 2016; alerta que a mineração de ferro acarreta desmatamento de grandes áreas; caminhões e trens circulam atropelando pessoas e animais; as usinas de beneficiamento geram poluição atmosférica; aquíferos formados em regiões ferríferas são contaminados e destruídos; em tempos de crise hídrica a água consumida é enorme, inclusive pelos minerodutos; a quantidade de rejeitos é gigantesca e acumulada em barragens; e o rompimento delas com lamas com diferentes graus de toxicidade podem se transformar em grandes tragédias.

Firpo lembra que, em Minas Gerais, os acidentes graves com barragens vêm se repetindo com frequência: 2001, 2003, 2007, 2008, 2014, 2015 (e agora, 2019, em Brumadinho) com mortes e destruição ambiental. Segundo ele, o mais importante é compreender o desastre com base na determinação social da saúde com um enfoque socioambiental crítico que relacione as iniquidades em saúde com os processos de desenvolvimento econômico, suas contradições, conflitos e injustiças ambientais. “Essa perspectiva permite o diálogo da saúde coletiva com outros campos relevantes frente à atual crise socioambiental, como a ecologia política e a economia ecológica, numa aproximação entre abordagens transdisciplinares, estruturalistas e construtivistas que colocam a promoção da saúde em articulação com lutas emancipatórias por direitos humanos, sociais e territoriais, bem como por outras economias e sociedades mais solidárias, justas e ambientalmente mais sustentáveis.”

De acordo com a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), o Brasil é o segundo maior exportador de minério de ferro, sendo a Vale a maior empresa mundial neste ramo, além de grande financiadora de partidos e políticos que, após eleitos, atuam parcial e irresponsavelmente como legisladores e gestores. Isso fortalece a crescente autorregulação das empresas e o enfraquecimento do Estado na regulação e fiscalização. O caso do licenciamento ambiental da barragem rompida da Samarco é tragicamente exemplar e demonstra a enorme assimetria entre a velocidade dos investimentos e a incapacidade/cumplicidade do Estado. (O rompimento da barragem de Fundão, localizada no subdistrito de Bento Rodrigues, a 35 km do centro do município de Mariana, Minas Gerais, ocorreu em 5 de novembro de 2015. Rompeu-se uma barragem de rejeitos de mineração controlada pela Samarco Mineração S.A., um empreendimento conjunto das maiores empresas de mineração do mundo, a brasileira Vale S.A. e a anglo-australiana BHP Billiton).

Em seu artigo, Firpo afirma que a ampliação da produção de minério de ferro, ferro gusa e aço bruto, assim como os produtos de exportação do agronegócio, marcam a reprimarização da economia neoextrativista brasileira das últimas duas a três décadas. “O mercado de commodities possui baixo valor agregado, explora de forma degradante trabalhadores e natureza e é extremamente volátil: o preço da tonelada de minério de ferro variou de 12 dólares em 2000 para 50 em 2008, 177 em 2011 e, a partir de 2012, caiu até retornar aos 50 dólares em outubro de 2015.”

Segundo o artigo, a megamineração é pautada pela concentração do capital financeiro entre grandes corporações transnacionais, inclusive a Vale. “Ela é viabilizada pela enorme quantidade de áreas mineradas, com tecnologias que permitem a produção do minério de ferro mesmo em menores concentrações, o que amplia a quantidade de rejeitos a serem armazenados. As melhores soluções socioambientais deveriam reduzir a quantidade de rejeitos, como a separação eletromagnética ou a empilhagem a seco, restringindo ou mesmo eliminando a existência das barragens.” Mas por que elas continuam a ser adotadas em países como o Brasil?, questiona o artigo de Firpo.

Ele explica que “a vida e o meio ambiente valem pouco, caracterizando o que economistas chamam de externalidades negativas”. E acrescenta: “O risco ou existência de desastres, mortes e destruição ambiental não são incorporados no preço do minério.” E exemplifica: as poucas multas de órgãos ambientais que a Samarco pagou após descumprimentos e acidentes foram irrisórias. A outra razão, diz o artigo, é a crise pós-boom: com a queda dos preços do ferro no mercado internacional puxada fortemente pela China, as empresas de mineração reduzem investimentos em inovações tecnológicas, custos operacionais e trabalhistas, fato que explica o crescimento da terceirização e corte de trabalhadores em empresas como a Vale e a Samarco. “Paradoxalmente, em tempos de crise aceleram-se projetos de aumento da produção para manter níveis de lucro e pagamento aos acionistas. Há uma forte correlação entre aumento de acidentes e períodos pós-boom em empresas mineradoras.”

Conforme discorre o artigo, diversos artigos e relatórios após o desastre de Mariana revelam que problemas ocorreram desde a gestão, licenciamento, fiscalização, monitoramento, até a vigilância e o sistema de emergência, incluindo uma espécie de “apagão” do Sistema Único de Saúde (SUS) local, estadual e federal. “As principais ações pós-desastre tiveram a Samarco na coordenação, inclusive em questões de serviço social e saúde mental das mais de 600 pessoas que perderam suas casas e foram morar em pousadas e hotéis.” Para o autor, o desastre, portanto, é sistêmico, tecnológico e social. “Reflete uma das armadilhas de nosso modelo de desenvolvimento pautado na exportação de commodities no qual são peças do mesmo tabuleiro a megamineração, o poderio das corporações, a cumplicidade e fragilidade do Estado, o modelo ‘faroeste’ de gestão ambiental, e as dificuldades dos trabalhadores e comunidades de se organizarem e participarem na defesa de seus direitos.”

Para reverter o atual padrão, Firpo defende o enfrentamento do lamaçal que vulnerabiliza as instituições que regulam, fiscalizam e deixam de impor mais precaução e prevenção aos empreendimentos. “A aplicação do princípio da precaução na defesa da vida deveria forçar o abandono de tecnologias não seguras. É necessário fortalecer os sistemas de emergência e preparação de desastres junto aos órgãos de defesa civil e o SUS, além da vigilância ambiental da água para consumo humano.”

Não há muita saída, afirma Firpo: a saúde coletiva precisa valorizar a vida e a natureza com mais democracia e justiça ambiental. “A economia ecológica diria: reduzir o metabolismo social insustentável pela enorme extração de matérias primas e produção de rejeitos do produtivismo e consumismo de nossa civilização por meio de outras economias mais solidárias, justas e sustentáveis. A ecologia política diria: enfrentar com mais democracia e luta por direitos os inúmeros conflitos ambientais e a enorme assimetria de poder entre, de um lado, setores, corporações, instituições e países que mais se beneficiam com esse comércio injusto e, de outro, comunidades e trabalhadores que mais sofrem ou sofrerão com a destruição da vida e do meio ambiente.”

Por fim, o artigo questiona: a saúde coletiva, o que pode dizer ou fazer? “Por exemplo, alinhavar esforços e mobilizações que mantenham viva a memória do desastre, a sede por justiça, a busca consequente por conhecimento, a comunicação de informações confiáveis e o apoio às instituições públicas compromissadas e responsáveis.” Afinal, indaga Firpo, a saúde coletiva poderia se perguntar: desenvolvimento para quê, para quem e de que forma?

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