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Formação de técnicos na saúde em pauta no Abrascão

Apresentar experiências internacionais de formação de trabalhadores técnicos na saúde foi o objetivo de uma das mesas-redondas realizadas no último dia do 12º Abrascão, no domingo (29). Coordenada pela diretora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Anakeila de Barros Stauffer, a mesa reuniu palestrantes de Guiné-Bissau, da Venezuela e da Colômbia, países que integram a Rede Internacional de Educação de Técnicos em Saúde (RETS), cuja secretaria-executiva está sediada na EPSJV. “O que nós pensamos foi trazer para dialogar com a gente especialistas na formação docente na América Latina e em países africanos da CPLP, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. A gente espera com isso poder trazer mais elementos para discutir essa temática”, introduziu Anakeila.

Guiné-Bissau: cooperação internacional deu frutos

A epidemiologista Maram Mané, do Instituto Nacional de Saúde Pública de Guiné-Bissau, falou sobre a experiência do órgão na formação de trabalhadores técnicos no âmbito do Plano Nacional de Desenvolvimento de Recursos Humanos na Saúde, entre 2008 e 2017, cuja meta era formar mais de 1,7 mil trabalhadores, sendo 75% com formação técnica. Maram destacou como importante nesse processo a parceria com a EPSJV na elaboração de um Projeto Político Pedagógico (PPP) para a Escola Nacional de Saúde de Guiné-Bissau, instituição responsável pela formação técnica de trabalhadores no setor. “Fizemos uma reestruturação total da nossa filosofia, dando um acento tônico nesta questão da formação politécnica. A elaboração do PPP, com o apoio da EPSJV, contribuiu para que pudéssemos definir melhor uma política de formação de trabalhadores técnicos voltados para atender a sociedade, trabalhadores com capacidade crítica capazes de mudar o sistema, de refletir sobre os desafios que estão colocados para eles nos serviços de saúde”, pontuou Maram.

A EPSJV também contribuiu para a revisão dos currículos dos cursos técnicos oferecidos pela Escola Nacional de Saúde de Guiné-Bissau, que contou também com parcerias com escolas de Portugal. “Entre 2009 e 2018 conseguimos formar mais de 1,5 mil trabalhadores técnicos na saúde, quase 70% técnicos em enfermagem, que eram os mais necessitados. A revisão do currículo contribuiu para uma valorização da categoria, o aumento dos salários”, destacou Maram, pontuando que várias categorias no funcionalismo público, principalmente na saúde, estão em greve hoje no país em meio a negociações por reajuste salarial com o governo. “Acredito que isso é reflexo da visão crítica que esses trabalhadores passaram a ter. Ainda há muitas vozes que infelizmente desvalorizam os trabalhadores técnicos”, disse.

Segundo Maram, assim como acontece com o SUS, há na Guiné-Bissau há dificuldade para retenção de profissionais de saúde nas zonas rurais. Uma solução encontrada pela Escola Nacional de Saúde foi a criação de polos de formação de trabalhadores nas regiões de difícil acesso. Segundo ela, a política contribuiu especialmente para a formação de parteiras para atender populações predominantemente muçulmanas do leste do país. “Ali as mulheres têm receio de profissionais do sexo masculino, o que gera um impacto negativo na procura de assistência pré-natal e pós-parto e altas taxas de mortalidade infantil e materna”, explicou Maram. “O que nós fizemos foi abrir uma escola só para mulheres e conseguimos montar duas turmas de 45 alunas para o curso de parteira. Conquistamos a confiança da população, e o impacto disso foi grande”, complementou. Segundo ela, um dos efeitos foi um aumento no número de mulheres matriculadas nas escolas da região, que passaram a contar com a autorização dos pais para estudar para que em seguida pudessem frequentar o curso de parteira oferecido pela Escola Nacional de Saúde. “A nossa cooperação internacional com a Fiocruz ajudou muito na formação docente, assim como toda a rede de escolas técnicas da CPLP. Mas ainda há muitos desafios, principalmente na relação com o Ministério”, finalizou.

Saúde como direito ou como mercadoria

Oscar Feo Istúriz, da Universidade de Carabobo e do Instituto de Altos Estudos em Saúde da Venezuela, por sua vez, falou sobre como para se pensar uma política de formação na saúde hoje é necessário ter em vista a disputa, que se acirra sob o neoliberalismo, entre concepções que veem a saúde como direito a ser garantido pelo Estado e outra que a enxerga como mercadoria. “A saúde entrou com força nos circuitos de produção e acumulação de capital, o que faz com que o chamado ‘complexo médico industrial-financeiro e segurador’ seja um determinante fundamental das políticas de saúde e das políticas de formação”, advertiu Oscar, explicando que o Complexo é formado pelas grandes corporações privadas que produzem medicamentos, vacinas, seguros de saúde, etc. “Seus interesses não estão na saúde das pessoas, estão no lucro”.

A principal bandeira deste complexo, explicou, atualmente responde pelo nome de cobertura universal de saúde, que vem sendo implementada de diferentes formas em vários países, mas que se baseia em seguros privados como forma de garantia de uma cobertura mínima de serviços para a população mais pobre. No Brasil, a proposta de planos de saúde acessíveis, ou populares, é identificada como alinhada a essa concepção. “Na Colômbia o Estado se responsabiliza em oferecer seguros de saúde apenas para os pobres, o restante da população tem que acessar o mercado; no Peru há o Seguro Integral de Saúde, que é limitado às populações ditas ‘vulneráveis’, para usar a terminologia neoliberal. E isso está legitimado pelos organismos internacionais, como a Opas, que vende a proposta da cobertura universal de saúde como um meio de garantir acesso aos serviços de saúde. Mas é uma proposta totalmente diferente ao que entendemos como um sistema universal de saúde. E o motor desta proposta é o Complexo Médico Industrial Financeiro e Assegurador da saúde”, diz Oscar.

O desenvolvimento de políticas de formação para a saúde precisa levar essa disputa em conta, complementou o venezuelano. “Queremos um modelo de formação para um sistema universal de saúde ou um sistema de seguros? Essa é uma pergunta fundamental. Se entendemos a saúde como direito humano fundamental, responsabilidade do Estado e que deve ser garantido a todos, temos que ter clareza que os sistemas públicos, universais e integrais são o melhor mecanismo”, ressaltou. Uma política de formação coerente com essa concepção, continuou ele, precisa romper com “velhos paradigmas de formação” na saúde. “Há uma disputa entre dois modelos formativos. O dominante – elitista, fechado em hospitais, fragmentado, voltado para a prática privada, mercantil – e o alternativo – massivo, aberto, presente na comunidade, integral, voltado para o setor público, solidário. O modelo alternativo precisa ser fortalecido. Queremos um profissional técnico que saiba fazer e pensar, que seja crítico e que tenha um compromisso com a sociedade”, destacou.

Ele lembrou dos 40 anos da reunião de Alma-Ata em 2018, marco da adoção da concepção de saúde como direito humano fundamental pela Organização Mundial da Saúde. “Ali se falou em saúde para todos no ano 2000. Chegamos ao ano 2000 sem saúde para todos. Hoje se propõe de novo esse lema. Mas avançar em saúde para todos só pode ser feito através de sistemas públicos, universais, que requerem um projeto nacional de transformação social, profissionais e técnicos profundamente críticos e comprometidos e um movimento popular consciente, organizado e participativo”, afirmou.

Colômbia: contexto adverso

Professora da Faculdade de Medicina da Universidade Nacional da Colômbia, Nancy Molina falou sobre sua tese de doutorado defendida na Universidade de São Paulo (USP) que teve como tema a formação e atuação profissional de trabalhadores técnicos naquele país. Segundo Nancy, há uma “crise profunda” no acesso à saúde na Colômbia, onde a mercantilização tem sido motor de iniquidades, problemas relacionados à qualidade da atenção e de perda de autonomia profissional dos trabalhadores. “É um contexto adverso. Na Colômbia, na década de 1990 houve uma explosão de cursos privados na área da saúde, que dominam o cenário de formação. Dos 33 programas de formação em fisioterapia, apenas oito são públicos”. Segundo Nancy, dos cerca de 700 mil trabalhadores da saúde no país, 42% são auxiliares, técnicos ou tecnólogos. “Nosso sistema de saúde funciona por conta desse trabalho. No entanto, no nosso contexto, os técnicos, auxiliares e tecnólogos não são valorizados socialmente e nem reconhecidos economicamente. Há uma contradição importante”, pontuou.

Ela propôs repensar o sentido da formação no país, dominada pelo setor privado. “A educação dominante é um dispositivo de manutenção dos valores da hegemonia capitalista: não solidária, individualista, desigual. Ela não favorece a compreensão da realidade nem a construção de condições para sua transformação. Reproduz a desigualdade, a iniquidade, a injustiça”, pontuou a colombiana. Ela fez críticas ao modelo hegemônico de formação técnica, que segundo ela prioriza uma formação “para operar o que existe, que não questiona nem constrói condições para a transformação do que existe”. A despolitização da formação e a ausência de instrumentos para que os formandos reconheçam as contradições do seu trabalho e as formas de dominação subjacentes a ele são outros problemas apontados por Nancy no modelo dominante de formação. Por outro lado, uma reflexão que se proponha crítica a esse modelo deve garantir possibilidades de reflexão dos trabalhadores sobre seu papel nos sistemas de saúde tendo em vista a relação entre capital e trabalho, o território em que se insere o serviço, etc. “Ela deve ser construída tendo-se como horizonte de sentido o direito, a justiça social, o bem-estar, o desenvolvimento, e deve ter seus conteúdos curriculares e temáticos orientados para esse horizonte”, salientou.

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