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Frente pela Vida | AGORA TEM ESPECIALISTAS: um debate necessário

Comunicação Abrasco

No dia 30 de maio de 2025 o Ministério da Saúde lançou o Programa “Agora Tem Especialistas”. Neste texto, procuramos fazer uma discussão contextualizada da MP 1.301/2025 e Portaria 7.046/2025, instrumentos publicados até então que orientam o Programa. Temos o objetivo de abrir um debate crítico e construtivo em torno do Programa.

Há um grande contingente de pessoas na ordem de centenas de milhares, que aguardam o acesso a exames ou procedimentos de média ou alta complexidade pelo SUS. Nesse sentido, toda iniciativa que teve e tem por objetivo permitir o acesso, acabar com as filas, e levar cuidado a estas pessoas é louvável e merece o nosso apoio. Este esforço começou há alguns anos.

O Programa “Aqui Tem Especialistas”, foi lançado pelo Ministério da Saúde através da Medida Provisória 1.301 de 30 de maio de 2025 com os objetivos de “I – qualificar e diversificar as ações e os serviços de saúde à população; II – ampliar a oferta de leitos hospitalares e demais serviços de saúde para assistência à população; e III – diminuir o tempo de espera para a realização de consultas, procedimentos, exames e demais ações e serviços de atenção especializada à saúde. (MP 1.301/2025, Art. 1º.). Nesses aspectos, o Programa dá continuidade ao esforço iniciado em 2023.

O Programa tem caráter provisório, até dezembro de 2030 (Artigo 6º.), e destina para suas ações o valor de 2 bilhões de reais ao ano (Artigo 4º. § 2º), totalizando 12 bilhões até o encerramento do Programa. A título de comparação, em 2024 o Ministério da Saúde destinou 3,6 bilhões para 4 áreas de atendimento: oncologia, cardiologia, oftalmologia, otorrinolaringologia e ortopedia; e cirurgias eletivas[1]. Não há informações sobre o quantitativo de pessoas em fila de espera, o perfil nosológico associado à demanda por cuidados especializados, e qual o local de residência, para avaliar se os recursos financeiros destinados ao Programa são adequados à necessidade. Entendemos que estas informações devem estar disponíveis.

Sobre as informações, o Programa aponta para uma construção criteriosa de um sistema, que garanta a interoperabilidade de dados, ou seja, o relacionamento entre diversos bancos que possibilita ter maiores e melhores dados para processamento das informações. Avança neste sentido ao atualizar a Lei 8080: “”Art. 47-A. O SUS contará com sistema de dados públicos mantido pelo Ministério da Saúde, que conterá informações sobre o tempo médio de espera para a realização de consultas, procedimentos, exames e demais ações e serviços da atenção especializada à saúde (Art. 16).

Para cumprir com os gastos necessários ao Programa, a MP autoriza às entidades do setor privado trocarem dívidas com a União por procedimentos a serem ofertados no âmbito do Programa, a serem pagos segundo valores de uma tabela de preços específica, que será construída para este fim. Preocupa a inclusão das operadoras de seguro saúde no rol de entidades privadas consideradas nesse programa, na medida que não são elas que prestam serviços diretamente, mas por meio de contratação de terceiros e tem enfrentado incapacidade de atender seus usuários e, pior, judicializando o ressarciamento desse atendimento pelo SUS – não há menção de como será a operacionalização disso em prol do interesse público e sem perdão de dívida. Os artigos 4° e 5° indicam também a possibilidade dos “créditos financeiros” serem usados para compensação de outros tributos, vencidos ou a vencer, além de os que estejam inscritos em dívida ativa (ajuizada ou não). Preocupa que o Parágrafo 3º do artigo 4 trata como “renúncia de receita” esses “créditos financeiros”, o que não é o caso, porque a receita ocorrerá mediante a prestação de serviços e porque não há nenhuma menção nessa MP de isenção de tributos.  

Os valores arrecadados por este dispositivo vão depender ainda da adesão destas entidades, portanto, não há uma definição sobre este quesito, porque trata-se de um mecanismo de indução à adesão, a ser verificado com o desenvolvimento do Programa.

No seu Artigo 2º. a Medida Provisória diz que o Programa “será implementado mediante atendimentos médico-hospitalares realizados pelos estabelecimentos hospitalares privados, com ou sem fins lucrativos, à população, de acordo com as regras e os princípios do Sistema Único de Saúde – SUS”. Não fica claro porque a MP cita apenas os hospitais privados na implementação do Programa, já que a rede pública vai estar mobilizada para este fim, também, inclusive os Hospitais Universitários que estão vinculados à Ebserh/MEC.

No entanto, quanto à contratualidade do setor privado, é de praxe o SUS contratar serviços, o faz desde que se estabeleceu o princípio da “universalidade de acesso”, porque o SUS não tem uma rede própria que consiga atender à demanda da população. Para se ter uma ideia sobre isto, em outubro de 2022 os hospitais públicos no Brasil representavam 41,7% do total, e os privados 68,3%, sendo que destes, 67,4% em convênio com o Sistema Único de Saúde – SUS[2]. Para efeito de demonstração, entre os anos de 2008 e 2017, “a média das internações pelo Sistema Único de Saúde foi de 4.214.083 internações/ano, 53,5% ocorridas nos hospitais privados contratados e 46,5% em hospitais públicos”[3]. Sempre que se discute o cuidado à saúde, é preciso fazê-lo colocando no centro os direitos e necessidades dos usuários, e é nesta perspectiva que admitimos como imperativo ao SUS, no contexto da urgência, contratualizar com o setor privado, para garantir o acesso à atenção à saúde ao contingente da população que dele necessita.

A questão fundamental é quanto ao controle estatal dos serviços. Sobre este aspecto, é fundamental que estejam evidenciados os mecanismos de controle, avaliação e auditoria, para além da questão financeira, dos aspectos que envolvem a qualidade da assistência. Como por exemplo, o acompanhamento dos usuários pela Atenção Básica e especializada instalada no município, antes e após os procedimentos realizados, garantindo a continuidade do cuidado a ser feito no âmbito da Atenção Básica, o que impede recidivas, reinternações, uso excessivo de serviços de emergência, além de boa qualidade de vida, e redução de custos. Tudo isto envolve uma forte pactuação do Programa com os gestores estaduais e municipais, envolvendo e compartilhando decisões com o CONASS – Conselho Nacional de Secretários de Saúde, e CONASEMS – Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde, bem como da CIT – Comissão Intergestores Tripartite, espaço legalmente constituído para essas pactuações entre os gestores das três esferas de governo.

Todos estes aspectos devem envolver uma estreita relação com os usuários do SUS, entendendo como importante o seu protagonismo e apoio ao Programa. Neste aspecto, a participação do sistema Conselhos, envolvendo os Conselhos Nacional, Estaduais e Municipais de Saúde é fundamental, e trata-se de um princípio legal e já consolidado no SUS.

Neste sentido é positiva a constituição de um Comitê de Acompanhamento para implantação, implementação e operacionalização do Programa Agora tem Especialistas no âmbito do Ministério da Saúde[4], com competências para: “I – Atuar, em apoio ao Ministério da Saúde, na implementação do Programa Agora tem Especialistas; e II – acompanhar, monitorar e avaliar o Programa Agora tem Especialistas” (Art. 2º.).

Há muito por ser construído ainda de regulação sobre o funcionamento do Programa, o que será feito através de edital específico a ser publicado pelo Ministério da Saúde, conforme consta no texto da MP: “§ 1º-  Os atendimentos de que trata o caput obedecerão às condições estabelecidas em ato do Ministro de Estado da Saúde, inclusive quanto à definição das especialidades a serem preferencialmente ofertadas, aos procedimentos operacionais e ao valor de atribuição dos atendimentos médico-hospitalares. § 2º – As entidades credenciadas para atuação no Programa atenderão aos critérios estabelecidos em edital específico” (Art. 2º. Da MP 1.301/2025). Os editais serão as peças fundamentais com dispositivos para definir parâmetros de pactuação interinstitucional, envolvimento das redes estaduais e municipais, fluxos assistenciais nas regiões de saúde, enfim, fazer com que as operações de gestão do cuidado aconteçam por dentro da Rede SUS, que tem toda possibilidade de ordenar, coordenar, monitorar e avaliar este processo, e com transparência.

Tomando como parâmetro o usuário ao centro, tudo o que favorecer o acesso e atendimento às suas necessidades, e possa aliviar o sofrimento, a dor, e evitar a morte, é salutar e merece o apoio. E o SUS é capaz de fazer isto acontecer, mantendo os princípios que orientam sua construção. É positivo o fortalecimento do Grupo Hospitalar Conceição, como consta na MP, uma entidade pública, de financiamento estatal, com competente atuação na prestação de serviços de saúde à população, 100% SUS.

No que se refere à prestação de serviços na forma direta pelo Ministério da Saúde, o Art. 16, § 4º estabelece em que condição isto poderá se dar: “Em situações de urgência em saúde pública, caracterizadas por grande tempo de espera, alta demanda e necessidade de atenção especializada, reconhecidas pelo Ministério da Saúde, a União, por intermédio do Ministério da Saúde e das entidades da administração pública indireta, poderá, por tempo determinado, executar ações, contratar e prestar serviços de atenção especializada nos Estados, no Distrito Federal e nos Municípios, conforme regulamento do gestor federal do SUS (Art. 16, § 4º da MP 1.301/2025)”. Consideramos que, em situações emergenciais e por tempo determinado, a fim de atender ao grave quadro verificado na prestação de serviços à população, os termos para que isto ocorra são adequados, e não ferem o princípio da municipalização e regionalização, mantém assim o pacto federativo no qual se sustenta o SUS, desde que seja pactuado na Comissão Intergestores Tripartite, CIT.

Por fim, entendemos que o Programa “Agora Tem Especialistas” deverá manter as diretrizes do SUS, controle estatal sobre os atos administrativos e assistenciais. Assim como dará curso à ampla pactuação com os entes federados, e o Conselho Nacional de Saúde, como está descrito na MP 1.301/2025 e Portaria 7.046/2025. E nas medidas futuras que serão complementadas por normas e editais durante a execução do Programa. É oportuno alertar que a partir de 2023 o SUS voltou a ser prioridade governamental, após desfinanciamento aproximado de R$ 75 bilhões[5] ocorrido no período 2018-2022, como decorrência da Emenda Constitucional nº 95/2016. Essa perda de recursos comprometeu gravemente o atendimento às necessidades de saúde da população, e o presente Programa busca resolver parte desses problemas decorrentes da desestruturação parcial das unidades do SUS. Com a retomada da regra de cálculo do piso federal do SUS nos termos da Emenda Constitucional nº 86/2015 (15% da Receita Corrente Líquida arrecadada no exercício), o processo de desfinanciamento foi interrompido, mas evidenciou a necessidade da alocação adicional de recursos para essa reestruturação dos serviços, na perspectiva do cumprimento do princípio estabelecido na Constituição Federal de 1988 que “a saúde é direito de todos e dever do Estado” (artigo 196), sendo as ações e serviços públicos de saúde consideradas como de “relevância pública” (artigo 197).

É importante ampliar os programas de Residência Médica, e outras boas formas de treinamento em serviço para todas as áreas, inclusive de clínicos. Esta é uma forma de democratizar o acesso a estas residências, e atender à urgente necessidade do SUS.

O debate sobre o Programa envolve pactuação política, medidas legislativas e a participação efetiva das instâncias e mecanismos do controle social, chama a atenção para aspectos fundamentais que se relacionam direto ou indiretamente com o Programa. O primeiro deles é o atendimento a uma imensa demanda em caráter de urgência, dado que o sofrimento não pode esperar. Também destacamos a necessidade de colocar o bem-estar da população no centro do projeto político que se quer construir.

Nessa perspectiva, é premente o investimento na estrutura pública de atenção à saúde em seus diversos níveis, de modo a reduzir significativamente a dependência do setor privado e ampliar a oferta de serviços nessa área. Vale destacar ainda as dificuldades que o governo enfrenta no âmbito do Congresso Nacional, onde a oposição prioriza seus compromissos com as corporações econômicas, e não tem foco na resolução dos problemas econômicos fundamentais do país. Há entraves também criados pela política de teto de gastos e em associação às mais elevadas taxas de juros do mundo, que apontam para uma situação de austeridade fiscal, e estrangulamento do governo e suas políticas públicas. Situação esta que precisa ser superada urgentemente.

Seguimos à disposição do Ministério da Saúde para contribuir com discussões, e proposições técnicas e políticas, para os desafios que são inerentes à implementação de uma iniciativa tão abrangente e complexa.

Brasília, 04 de junho de 2025.


[1] https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/saes/pmae 

[2] Olímpio J. Nogueira V. Bittar. Rev. Adm. Saúde (On-line), São Paulo, v. 24, n. 97: e403, out. – dez. 2024, Epub 18 dez. 2024 http://dx.doi.org/10.23973/ras.97.403

[3] Sá, Liane Alves et al. Relação público-privado nas internações cirúrgicas pelo Sistema Único de Saúde.  Rev. Latino-Am. Enfermagem 2021;29:e3467. www.eerp.usp.br/rlae 

[4] PORTARIA GM/MS Nº 7.046, DE 30 DE MAIO DE 2025

[5] OCKÉ-REIS, Carlos Octávio; BENEVIDES, Rodrigo; FUNCIA, Francisco; MELO, Mariana. Evolução do piso federal em saúde: 2013-2020. Brasília, DF: Ipea, out. 2023. 12 p. (Disoc : Nota Técnica, 109). DOI: http://dx.doi.org/10.38116/ntdisoc109-port (disponível em https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/12482/1/NT_109_Disoc_Evolucao.pdf)

Crédito da foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom | Agência Brasil

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