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Abrasco entrevista Giovanni Alves da Unesp-Marília

Giovanni Alves é professor da UNESP-Marilia, livre-docente em teoria sociológica e um dos líderes do GPEG – Grupo de Pesquisa “Estudos da Globalização”. Coordena ainda o projeto de extensão Tela Critica, voltado para a produção de material pedagógico em sociologia para análise e debate de grandes obras do cinema mundial, entre outros. É um dos participantes do Grande Debate Precarização do Trabalho e Deterioração das Relações Sociais no Contexto da Crise: Implicações para a Saúde Humana, que acontecerá no sábado, 16 de novembro.

Abrasco: Nos seus últimos estudos, o senhor aponta duas distintas camadas: a “nova classe trabalhadora” e o precariado, que ocuparam as ruas a partir das mobilizações de junho e que trouxeram temas como saúde, transporte e educação públicos. Há convergências e divergências desses segmentos em relação às pautas políticas atualmente em debate?

Giovanni Alves: Não existem divergências nos interesses históricos de classe necessários entre esses dois segmentos do proletariado. A “nova classe trabalhadora” e o precariado fazem parte da mesma classe social – a classe social do proletariado brasileiro -, que, por conta da transformação da estratificação social no Brasil na era do neodesenvolvimentismo, sofreu alterações internas em sua morfologia social.  A “nova classe trabalhadora” e o precariado expressam, cada a seu modo, necessidades sociais e carecimentos radicais próprios da classe subalterna à dinâmica social de acumulação do capital.

Infelizmente, nenhum partido político brasileiro consegue traduzir hoje efetivamente  em sua programática política os interesses históricos do proletariado em sua totalidade social de classe. O PT via programas sociais de combate a pobreza e valorização do salário mínimo, interpela o subproletariado e de certo modo parcelas da “nova classe trabalhadora”, além de setores da classe trabalhadora organizada em grandes sindicatos; mas não possui uma política efetiva para as camadas médias do proletariado, como por exemplo os trabalhadores públicos e o precariado; a esquerda revolucionária e a extrema-esquerda interpela amplas camadas do precariado, com seus carecimentos radicais, e os trabalhadores públicos mais organizados, mas não tem base social no subproletariado (os pobres) e “nova classe trabalhadora” que ascendeu com as políticas do lulismo. Não interessa, por exemplo, para esta esquerda revolucionária, o combate a pobreza, mas sim o combate hic et nunc do capitalismo. A classe social do proletariado no Brasil está dividida em sua forma efetiva de ser. Avalio que o governo Dilma – ou, em termos, o PT – erra pelo taticismo no interior da ordem e a esquerda revolucionária, pelo estrategismo para além da ordem mas sem tática para enfrentar a direita oligárquica e os problemas imediatos da transição para o socialismo, que exigem alianças políticas complexas com forças sociais e políticas no interior da ordem.

Abrasco:  O modelo do neodesenvolvimentismo que o senhor aponta como traço da política econômica nos últimos 10 anos dos governos Lula e Dilma priorizou os programas de transferência de renda em detrimento aos investimentos em saúde e educação. Nesse esteio, houve forte oferta e crescimento da saúde privada. Como analisar essa composição entre esfera pública e privada dentro do neodesenvolvimentismo e da terceira onda da modernidade?

Giovanni Alves: O crescimento da saúde privada, como o crescimento do ensino privado, decorre, primeiro, da incapacidade do Estado neoliberal – Estado político do capital que sustenta a frente política do neodesenvolvimentismo – em investir em saúde e educação pública gratuita de qualidade. Isto exigiria do Estado brasileiro enfrentar o problema da divida interna pública, o que implicaria confrontar o bloco de poder sob hegemonia do capital financeiro. O lulismo se recusa a fazer isso tendo em vista a correlação de sociais e a opção consciente do lulismo por trabalhar no interior da ordem (não existe perspectiva programática ou vontade política dos governos Lula e Dilma em “rupturar” em algum momento a ordem social sustentada por este bloco de poder – isto é, não existe intencionalidade política para construir um outro bloco de poder alternativo ao bloco de poder neoliberal). A opção pela social-democracia é clara e inequívoca no lulismo (o que explica os limites do neodesenvolvimentismo, pois capitalismo e bem-estar social na era de hegemonia do capital predominantemente financeirizado, estão irremediavelmente divorciados – que o diga a crise européia hoje).

Depois, em segundo lugar, a saúde privada avança para ocupar o vácuo construído pela incapacidade do Estado brasileiro em sustentar efetivamente um Sistema Único de Saúde com qualidade e amplitude necessária num país territorialmente amplo e profundamente desigual em termos sociais. Saúde (como educação) tornou-se um grande negócio capitalista. Fazer uma revolução na saúde pública no Brasil exige muitos recursos (quem vai colocar o chocalho no gato da dívida pública?) e não apenas isso – revolucionar a concepção de gestão dos recursos e a formação e capacitação dos operadores do Sistema…o que significa que o problema não é só financeiro, mas também ideológico e político dos quadros intermediários e da própria burocracia estatal. Ora, vinte anos de neoliberalismo e neodesenvolvimentismo contribuíram para criar grandes interesses econômicos e políticos que querem manter o statu quo de privilegiamento da saúde privada, operando no limite com parcerias público-privada que desvirtuam o sentido público da res publica. Isto é preocupante, pois o enraizamento de interesses privatistas no Estado político e na sociedade civil no Brasil significam maiores dificuldades para resolvermos futuramente este problema social crucial – o problema da saúde pública – que hoje está, por exemplo, paralisando o governo Obama nos EUA (o governo democrata encontra profundas resistências da direita republicana fundamentalista na reforma da saúde pública nos EUA). Enfim, é o problema da saúde pública que irá convulsionar as lutas políticas – lutas de classe – no capitalismo do século XXI.

Abrasco:  O senhor afirma que, no modo de vida just in time, vivemos uma vida invertida, uma compressão do tempo junto com uma excessiva presentificação. Que elementos da vida urbana evidenciam essa análise e como eles acarretam consequências para a saúde das coletividades?

Giovanni Alves: Neodesenvolvimentismo, choque de capitalismo flexível, toyotismo sistêmico, modo de vida “just-in-time”, vida reduzida com todos seus componentes orgânicos (vida invertida, sinalizada,“capturada”, veloz e enxuta) – são elementos causais do novo metabolismo social do capital no Brasil do século XXI. Obviamente, eles possuem um rebatimento territorial nas metrópoles hipertrofiadas de uma das mais desiguais sociedade capitalista do mundo – o Brasil. Por exemplo, a perda da mobilidade urbana (com tudo aquilo que isto implica existencialmente) e a corrosão veloz dos espaços públicos pelos vetores da civilização do automóvel e pela lógica territorial do consumo privado em torno da qual se erige o metabolismo social do capital, contribuem efetivamente para criar o fenômeno grotesco da vida reduzida. O cinema nacional dos últimos dez anos expressou em algumas narrativas o esvaziamento da vida das camadas médias do proletariado nas metrópoles. Por exemplo, os filmes “Trabalhar Cansa” (de Juliana Rojas e Marcos Dutra) e “O som ao redor” (de Kleber Mendonça Filho) expõem, cada um a seu modo, o drama existencial de uma “classe média” assalariada ou rentista cercada não apenas por uma gestão do trabalho toyotista, mas por um modo de vida perverso que reduz o espaço urbano a espaços privados amesquinhados dos condomínios fechados. Por isso, o medo insano que a “classe média” assalariada ou rentista tem dos pobres marginais ou lumpensinato que cercam, como um “espectro da barbárie social”, os condomínios privados desses estamentos médios endinheirados da sociedade senhorial. Enfim, o rebatimento das condições de existência estranhada sobre a saúde dos homens e mulheres imersos na gestão do trabalho toyotista e modo de vida “just-in-time” é obviamente perverso (com todo significado que está palavra possa ter no plano psicanalítico: perversidade significa gozarmos com aquilo que nos submete e desefetiva enquanto ser humano-genérico).

Na verdade, a “classe média” assalariada e rentista efetivamente goza (e sofre) com a miséria do modo de vida capitalista imposta por esta ordem desigualitária de feição neoliberal. É esta precarização existencial que discuto no meu último livro “Dimensões da Precarização do Trabalho” (Práxis, 2013). A precarização do homem-que-trabalha corrói a saúde e provoca a pletora de adoecimentos laborais, principalmente transtornos psicossomáticos e mentais. Como disse o filósofo Georg Lukács, “o homem é um ser que dá resposta”: diante destas condições de existência alienada, de uma sociedade civil desorganizada pela lógica neoliberal do individualismo de consumo, muitas vezes a resposta das individualidades pessoais de classe é a resposta do grotesco e do bizarro (do Rivotril e medicamentos tarja preta às pequenas crueldades da vida cotidiana e acontecimentos grotescos das páginas policiais); e não a resposta do coletivo politicamente organizado que possa ampliar e aprofundar a democracia.

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