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Grupo de risco: uma denominação inadequada no enfrentamento do coronavírus – Artigo de Carolina Luísa Alves Barbieri, Eliana Miura Zucchi, Claudia Renata dos Santos Barros

Carolina Luísa Alves Barbieri, Eliana Miura Zucchi, Claudia Renata dos Santos Barros

Marcelo Camargo/Agência Brasil

Ao resgatar a história da Aids, diferentes denominações induziram a construção do estigma da doença que, mesmo após quarenta anos, reflete negativamente no enfrentamento desta pandemia. Em 1982, estratégias de saúde pública voltaram-se a combater a nova doença nos conhecidos “grupos de risco” (homens homossexuais, mulheres profissionais do sexo, pessoas usuárias de drogas injetáveis, pessoas com hemofilia e oriundas do Haiti), proporcionando o isolamento social e sanitário dos indivíduos pertencentes a esses grupos, gerando preconceito, violações de direitos e avanços insuficientes no controle da epidemia. Além disso, pessoas que não pertenciam a esses grupos se perceberam imunes à infecção.

Após intensa mobilização e articulação social e política em diversas instâncias, houve transição do foco das ações em saúde para o ‘comportamento de risco’, marcadas por grande empenho na comunicação e estratégias educacionais na divulgação em massa sobre a prevenção ao vírus e o estímulo ao uso do preservativo. Essas estratégias preventivas, além de culpabilizarem as pessoas individualmente pelo ‘mau comportamento’, não consideravam dimensões mais amplas que incidiam sobre o indivíduo, como as condições de vida, desigualdades sociais e de acesso a serviços de saúde. Para explicar como o vírus chegou às mulheres casadas com um único parceiro na vida, por exemplo, foi preciso entender que a susceptibilidade à infecção estava mediada por normas de gênero para a sexualidade e constrangimento em buscar cuidado em saúde sexual, sendo impossível dissociar os indivíduos de seus contextos de vida. Dessa forma, as abordagens em saúde mudaram o prisma do comportamento de risco para o conceito de vulnerabilidade.

Quarenta anos depois o mundo vive uma outra pandemia, a COVID-19, causada pelo novo coronavírus Sars-Cov-2 (Síndrome Respiratória Aguda Grave do Coronavírus 2) e, novamente verificamos a utilização do “risco” de modo equivocado. Para a ciência, risco é um conceito que expressa a probabilidade de algo acontecer. Como a ciência faz parte da vida cotidiana, os conceitos e as ideias vão se transformando conforme os contextos socioculturais e históricos aos quais pertencemos. No senso comum, a palavra ‘risco’ transmite a ideia de perigo, alerta e, como sabemos pela história da Aids no Brasil e no mundo, a passagem entre ‘pessoas com maior probabilidade de infecção’ para ‘pessoas perigosas’ gerou sobretudo respostas sociais de exclusão, marginalização e violação de direitos. Outra lição duramente aprendida com a Aids é que só pode ser considerado ‘de risco’ apenas quem, em alguma medida, pertença a um grupo com características, comportamentos e condições de saúde que representem menor valor na hierarquia social e, portanto, representem ‘perigo’ ou ‘alerta’.

Entretanto, desde que foi decretada a pandemia para a COVID-19 pela OMS, instituições de saúde, governos e as mídias usam ostensivamente a expressão “grupo de risco” para se referir aos mais severamente afetados, a saber: pessoas a partir de 60 anos de idade e/ou com condições de saúde crônicas pré-existentes.
Socialmente, há forte resistência à velhice e frequente culpabilização das pessoas que possuem hipertensão ou diabetes por seus estilos de vida ‘errados’. Dessa forma, a noção de ‘grupo de risco’ para a COVID-19 pode muito facilmente carregar consigo ideias de vidas ‘imperfeitas’, ‘não plenamente produtivas’ e, novamente, de menor valor social.

Além de reforçar preconceitos, pensar uma epidemia na lógica de ‘grupos de risco’ fomenta uma percepção equivocada de que os desfechos graves e indesejáveis de morte ocorram apenas nesses grupos. Consequentemente, as pessoas que não fazem parte desses grupos podem passar a subestimar a doença, ter uma falsa sensação de invulnerabilidade e não compreender a importância em se cumprir as medidas de distanciamento social – estratégia atualmente mais eficaz, legitimada pela ciência, na diminuição da disseminação da doença e no achatamento da curva epidemiológica tão importante para não colapsar a capacidade instalada dos serviços de saúde.

A epidemia da COVID-19 no Brasil começou pela camada de maior renda dos grandes centros urbanos e, agora, com a disseminação comunitária, avança para o interior do país e periferia das grandes cidades, revelando gravidade, mesmo que em menor frequência, em adultos sem doença prévia. Os sistemas de saúde sobrecarregados e as medidas de controle podem contribuir para o agravamento, dificuldade de atendimento e invisibilidade de outros problemas de saúde e constituir barreiras de acesso ao cuidado e assistência em saúde. Como exemplos destacamos os prejuízos à saúde mental, assim como o aumento vertiginoso da violência doméstica desde o início da quarentena. Conforme amplamente disseminado, o impacto econômico do desemprego nas camadas mais pobres da população pode, na ausência ou insuficiência de ação do poder público, conduzir rapidamente estas pessoas à fome e miséria. Em surtos pandêmicos como este, há uma complexidade que não cabe na expressão ‘grupo de risco’.

Num momento de receios, fake news e manifestações de negacionismo científico, enfrentar a pandemia do novo coronavírus por meio da lógica de grupo de risco é um retrocesso científico, histórico e político. A vulnerabilidade e o aprendizado com a pandemia de Aids ensinaram importantes lições. É possível e necessário reconhecer segmentos mais severamente afetados pela COVID-19 para formular estratégias eficientes de proteção e cuidado, sem desenhar um alvo nas costas dessas pessoas. Paralelamente a isso, uma emergência sanitária e humanitária como essa, torna todas as pessoas vulneráveis a algo que não desejam, seja diretamente ligado à COVID-19 ou às medidas discriminatórias de controle, sobretudo quando enraizadas em processos de desigualdade social anteriores à pandemia. Dessa forma, substituir a lógica do grupo de risco pela da vulnerabilidade amplia nossa capacidade crítica e de reflexão e reforça o compromisso coletivo no enfrentamento da pandemia com os recursos dos quais dispomos e somos capazes de construir.

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