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“Há um déficit democrático na discussão sobre regulação sanitária global”

 

É atribuição da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) regulamentar e fiscalizar a produção, comércio e consumo de substâncias e produtos que impactam a saúde da população brasileira, como medicamentos, saneantes, cosméticos, alimentos, agrotóxicos ou tabaco. Além dos desafios nacionais para elaboração de legislações – o Brasil é um país territorialmente extenso, culturalmente diverso e politicamente descentralizado – é necessário discutir, com pesquisadores, trabalhadores e estudantes da Vigilância Sanitária, a regulamentação sanitária em âmbito internacional.

Este foi o objetivo da mesa redonda “Globalização, Megacorporações e Regulamentação Sanitária”, que aconteceu durante o 8 º Simpósio Brasileiro de Vigilância Sanitária, em Belo Horizonte. A mesa foi coordenada por Maria Cecília Brito, da Superintendência de Vigilância em Saúde de Goiás, e contou com exposições de Maria Tereza Dias, da Universidade Federal de Minas Gerais; Patricia Tagliari, da Anvisa; e Geraldo Lucchese, do Grupo Temático Vigilância Sanitária da Abrasco.

A Anvisa nos fóruns internacionais de discussão 

Patrícia Tagliari, que já coordenou a Assessoria de Assuntos Internacionais da Anvisa, apresentou para os simposiastas os esforços da agência para a convergência regulatória  – que consiste na inserção da Anvisa em parcerias bilaterais ou multilaterais, fóruns internacionais de discussão onde são definidas práticas, princípios e padrões considerados adequados (pelos países que compõem estes espaços) no processo de regulamentação: “A agência busca representar o Brasil nos espaços em que as regras são estabelecidas. O começo foi tímido, mas tem amadurecido. Cada vez mais os técnicos [brasileiros] influenciam a normativa elaborada que vai servir como referência para o resto do mundo”.

O caminho na elaboração dessas normas é extenso: primeiro, identifica-se o problema – num produto novo ou em algum já comercializado, com falhas na regulamentação. Depois de debater nos fóruns internacionais, e encontrar soluções, os especialistas debruçam-se na elaboração de normas. No caso do Brasil, envolve consultas públicas e processos mais demorados. Por último, implementa-se nacionalmente a norma que foi discutida e elaborada em âmbito internacional: “O país é grande, tem suas descentralizações e diferenças na regulamentação e desenvolvimento produtivo. Mas a expectativa é que sempre se entregue melhores produtos”, sinalizou Patrícia.

Para a especialista, os benefícios deste diálogo internacional são claros: “Há melhoria na qualidade regulatória, já que a troca de informações é muito mais ampla. Para os consumidores, há acesso mais rápido a produtos melhores e mais baratos – entende-se que uma empresa brasileira que atende à normativa nacional, e também europeia, africana, asiática, ganha em escala, o que barateia os produtos. E, para as empresas, há acesso a diferentes mercados, benefícios trazidos pela previsibilidade regulatória e possibilidade de maiores investimentos”.

O International Medical Device Regulators Forum – IMDRF ( Fórum Internacional de Reguladores de Dispositivos Médicos, em português) é um dos fóruns que a Anvisa integra, e define-se como “um grupo voluntário de reguladores de dispositivos médicos de todo o mundo”.   A agência também faz parte do Codex Alimentarius, grupo articulado pela FAO e OMS, onde se discute normas sobre rotulagem de alimentos, aditivos alimentares, importação e exportação de alimentos, resíduos de pesticidas e drogas veterinárias em alimentos, por exemplo.

“Pulga atrás da orelha”

Propondo um debate com o que foi exposto por Tagliari, a jurista Maria Tereza Dias afirmou que, para além das questões técnicas explícitas no processo de convergência regulatória, também é necessário discutir a soberania nacional e um processo de regulação sanitária legítimo: “A  gente tende a conduzir a discussão como uma coisa técnica: ‘Aproveita o que já foi testado em outra população, utiliza esse medicamento, esse mecanismo’. Mas aproveita em que sentido, com qual custo econômico, humano, de soberania? “.

Maria Tereza também questiona quais são os critérios que definem os fóruns que o Brasil vai participar, e o que motiva as escolhas – nesses espaços de diálogo – por uma determinada fórmula ou tratamento. Para ela, a principal questão é como evitar que as grandes corporações capturem esse processo, agindo com conflito de interesses, já que não há definição de um órgão regulador eleito, no âmbito internacional: “Quando pensamos em nação e estado nacional, temos nosso legislador – interno, eleito, bem ou mal democrático – que legitima a criação dessa normatividade. No âmbito internacional não tem isso [órgão eleito]. Tem tratados , convenções, aproximações, mas não há a estrutura replicante do estado em âmbito internacional. Não tem estado”, sinalizou.

A professora da UFMG também avalia que a pluralidade cultural pode ser suprimida, no contexto de regras internacionais: “Nossa legislação tem um aspecto cultural, considera o contexto local, regional, nacional. Como interagir global e localmente? Tomamos Mate-Couro [bebida típica de Minas Gerais] em Belo Horizonte e, ao mesmo tempo, falamos de outra bebida internacionalmente conhecida. Como interagir local e globalmente sem afetar nosso contexto cultural?”. Ela afirma, ainda, que não se trata de ignorar os avanços técnicos dos órgãos responsáveis, mas de colocar “uma pulga atrás da orelha”. Não se pode perder de vista a soberania nacional e os interesses da sociedade brasileira.

“As megacorporações querem substituir o estado”

“Um dia cheguei em casa, depois de ter apanhado minha filha da escola, e ela pediu meu celular emprestado. Vi que ela jogava, e na tela aparecia um bichinho que percorria uma floresta, encontrava obstáculos, apanhava alimentos. Mas, na beira do caminho, aparecia sempre a plaquinha de um famoso fast food. Perguntei por que ela estava jogando aquilo, e disse que a propaganda que aparecia não era de lanches saudáveis. Ela respondeu: ‘Mas pai, se é lanche feliz, como não é bom?’ “. A história narrada por Geraldo Lucchese, Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados aposentado, ilustra a globalização capitalista: a marca de uma rede de ultraprocessados norte-americana é reconhecida por crianças no Brasil (e no mundo) – e constrói imaginários de felicidade.

Baseando-se em Manuel Castels, Lucchese conceitualiza a globalização como uma interconexão econômica, que tem como base a Tecnologia da Informação: “Essa tecnologia conecta pessoas e funções com valor de mercado, e desconecta populações, regiões inteiras desprovidas de interesse para o capitalismo global”, explicou. Essa tecnologia também seria o elemento principal para a geração de riqueza, exercício de poder, governança global e criação de códigos culturais . “Castels escreveu que o  capitalismo aumentou a penetração nos países, culturas e domínio da vida das pessoas – todo planeta organizado em conjunto de regras econômicas comuns apesar da diversidade social e cultural do mundo. Agora eu acrescento: a regulação sanitária segue a mesma tendência”. A “tendência” é de uma hegemonia que não comporta as diferenças que existem no mundo, tampouco resolve as desigualdades.

Segundo o abrasquiano, compreende-se também como fenômeno da globalização a fragmentação de cadeias produtivas (cada parte de um processo produtivo pode ser realizada em lugares diferentes) e a fusão de grandes corporações, uma estratégia geopolítica para a concentração de poder e riquezas – que transforma esses conglomerados em instituições mais poderosas que os estados nacionais: influenciam valores, ideias e crenças de diferentes grupos sociais.

“Essas grandes corporações querem substituir o estado – e tem práticas de gestão global. Interferem nos fundamentos políticos do estado: criam sistema de valores de acordo com seus interesses; ignoram interesses nacionais, combatem o estado que não dá liberdade completa ao mercado;  direcionam a pesquisa acadêmica.  E o estado tem que se adaptar as suas necessidades – em termo de legislação trabalhista, ambiental, sanitária e proteção social” , afirmou Lucchese. Na regulamentação sanitária, ele diz ainda que as corporações requerem uma lógica de normatização que ignora a regulamentação governamental.

Esse oligopólio das indústrias pode ser nefasto de muitas maneiras, do ponto de vista da saúde e da vigilância sanitária. O professor citou o caso da Nestlé, que domina 8 mil marcas – não só no ramo da alimentação, e que se manisfestou sobre as propostas de rotulagem nutricional, em trâmite na Anvisa. Em julho deste ano, o vice-presidente da empresa afirmou que não vão “aceitar” a medida regulatória e que vão “até o fim” caso a proposta eleita seja a de advertência (método defendido pela Abrasco e por outras organizações da sociedade civil).

Lucchese defendeu, assim como Maria Tereza, que há um déficit democrático e de soberania na discussão sobre regulação global: “Quem negocia no espaço internacional é o Executivo. Os técnicos da Anvisa farão a legislação que vamos ter que obedecer. Não são os legisladores nacionais. A regulação jamais será neutra. Sempre precisamos pensar quais são os termos de referência dessa convergência regulatória. Por fim, a Anvisa não pode esquecer as necessidades do SUS. Entra o SUS nessa história? A regulação sanitária tem que, em princípio, contemplar as necessidades do SUS, de desenvolvimento e inovação”, concluiu.

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