Conheci Hesio Cordeiro em março de 1971, quando apresentei-me ao Instituto de Medicina Social para cumprir meu último ano do curso médico – o internato. Eu era então aluno da Faculdade de Medicina da UFRJ, mas naquela época nos era facultada a possibilidade de fazer o internato em outra escola médica. O IMS havia sido fundado há dois ou três anos e Hesio tinha acabado de voltar de Kentucky onde tinha ido fazer um curso de aperfeiçoamento em Ciências do Comportamento e da Conduta Humana.
Recordo ainda que Hesio rapidamente livrou-se de boa parte da carga de sociologia funcionalista norte-americana que, entre outros aspectos, passava muito ao largo das preocupações que nos castigavam naqueles anos de chumbo que se seguiram à edição do Ato Institucional no 5.
Sob as bençãos de Américo Piquet Carneiro, um democrata liberal católico que havia inspirado a criação do IMS, e ao lado de Nina Pereira Nunes e Moyses Szklo, tínhamos então, além de estudar e dar aulas, duas preocupações. A primeira era resistir à repressão sempre próxima da ditadura. A segunda era afirmar o projeto do IMS frente à muito reativa corporação médica localizada na Faculdade de Ciências Médicas. Foi na atuação nesses dois campos que testemunhei pela primeira vez a tenacidade e a habilidade de Hesio. Mineiro de origem (Juiz de Fora), foi ele quem liderou a condução a bom termo esses dois combates.
Nos anos imediatamente posteriores, Hesio teve um papel central na consolidação institucional do IMS, jogada em três frentes, agora externas à universidade. Foram elas a Fundação Kellogg, a OPAS e a FINEP e o objetivo central foi a obtenção de recursos financeiros. O resultado foi a criação do mestrado em medicina social, em 1974 (se não me engano).
Recentemente, José Luís Fiori recuperou o papel de Hesio na construção do projeto do SUS e não há necessidade de complementar qualquer aspecto dessa empreitada intelectual e política e do papel central jogado por ele. Hesio teve a oportunidade de imaginar o novo modelo de saúde e, mais tarde, a partir de 1985, de participar de sua construção, na direção do Inamps, que veio a se tornar o principal componente da assistência à saúde do SUS.
Hesio deixou um depoimento extenso sobre o SUS e sobre sua participação na criação e desenvolvimento do mesmo. Ele está em um livro publicado em 1991, intitulado “Sistema Único de Saúde” (Rio de janeiro, Ayuri Editorial, 1991). Pouco citado, vale muito a pena resgatá-lo.
Foi a experiência da gestão pública da saúde que acabou lançando Hesio na atividade política partidária (e eleitoral), ao lado de Leonel Brizola. Candidatou-se à Câmara Federal e apesar de ter tido boa votação, não conseguiu se eleger.
Em 1983, nasceu um forte movimento na UERJ para a sua transformação de uma escola de terceiro grau em uma verdadeira universidade. Essa mobilização, embora tenha tido sucesso em termos de apoio da comunidade acadêmica não foi suficiente para dar a Hesio o cargo de Reitor, o que só seria conquistado em 1991 em eleições diretas.
Essas notas nem de longe homenageiam adequadamente a grande figura que acaba de nos deixar. Aliás, o desaparecimento físico de Hesio sucedeu a uma longa e penosa doença que lentamente promoveu uma primeira morte, lenta e dolorosa, de sua vida de relação. Na última vez que estive com ele, há alguns meses, no hospital onde veio a falecer, já não conseguia estabelecer um contato pleno com o mundo que o cercava.
Perdemos todos, a universidade, os amigos e principalmente a política de saúde no Brasil. Hora de lamentar. E de inspirar-se em seu exemplo.
Reinaldo Guimarães, vice-presidente da Abrasco, professor aposentado do IMS/Uerj e pesquisador do NUBEA-UFRJ – Clique e leia o conjunto dos depoimentos em homenagem a Hesio Cordeiro.