Na coluna de 23 de dezembro passado em O Globo, num texto onde a conjuntura sanitária brasileira é analisada com o rigor habitual, a colunista Ligia Bahia comenta uma recente decisão da multinacional britânica GSK. Escreve a autora: ‘A determinação da farmacêutica britânica GSK, anunciada recentemente, de não pagar mais para médicos que promovem direta ou indiretamente seus produtos pode estimular uma mudança radical de duas práticas: a do pagamento de profissionais que promovem ou receitam determinados medicamentos e outros procedimentos e a remuneração de representantes de vendas de acordo com o número de prescrições médicas’. E segue a professora: ‘A saúde no mundo está mudando, a iniciativa da Glaxo não é apenas um despertar ético, tem sentido prático, porque representa um pedido de desculpas às autoridades chinesas que acusaram a empresa de pagar viagens para médicos participarem de conferências e palestras que nunca aconteceram’.
Não compreendo o indulgente entusiasmo com a Big Pharma. Desde a virada do século, ela vive uma crise profunda. A dimensão e a duração do problema sugerem a existência de múltiplos determinantes, mas há consenso sobre a responsabilidade da crescente rarefação do lançamento de produtos inovadores no mercado aliada ao fim da proteção patentária de vários produtos muito rentáveis. A crise econômica de 2008 agravou as dificuldades e, a despeito de um aumento de registros nos EUA em 2011 e 2012, não é seguro que isso represente uma reversão da tendência da última década e meia.
A crise tem gerado reação por parte das companhias. A primeira foi uma onda de fusões e aquisições de empresas. A segunda foram mudanças no modelo geral de negócios, no sentido da ‘desverticalização’ nos processos de desenvolvimento e produção, com o objetivo de compartilhar riscos. A terceira foi uma mudança de atitude em relação a medicamentos genéricos, que deixaram de ser ‘criminalizados’.
Além disso, radicalizam-se as estratégias no terreno da propriedade intelectual visando fortalecer interesses comerciais, mesmo que em detrimento do interesse público. Mas a reação mais lamentável à crise poderia ser chamada de uma radicalização nas estratégias comerciais. O objetivo é fazer crescer as receitas, missão permanente de qualquer empresa. O problema se coloca quando, para isso, são rompidas fronteiras éticas e criminais. Nesse aspecto, a louvada GSK tem a indiscutível liderança. Em 2012, já havia sido multada em US$ 3,0 bilhões pela justiça dos EUA por vender medicamentos para uso não autorizado pelo FDA (off-label) e atualmente está sob pesada investigação na China, por alegada prática de suborno a médicos e hospitais. O CEO da empresa, Sir Andrew Witty, é um dos principais conselheiros econômicos de David Cameron, o Primeiro Ministro britânico que está tentando desmontar o sistema de saúde inglês (NHS).
Mas não é só ela. Recentemente, a norte-americana Johnson & Johnson fez acordo com a justiça dos EUA declarando-se culpada de procedimentos pouco éticos de marketing. A multa é de US$ 2,2 bilhões. Há alguns meses, a suíça Novartis foi multada em US$ US$ 422 milhões e a norte-americana Pfizer em US$ 1,3 bilhão, também nos EUA e por razões parecidas. A gigante israelense TEVA está em vias de fazer um acordo com a justiça dos EUA por suspeitas de que haja praticado, em vários países, ações proibidas pela legislação norte-americana. As acusações mais comuns têm sido a comercialização de produtos off-label, práticas incorretas no desenvolvimento de ensaios clínicos, além de suborno, pura e simplesmente.
Conceder a essas firmas a taça de campeãs de um novo tempo (‘a saúde no mundo está mudando’) e à GSK a liderança de um ‘despertar ético’, decididamente não me parece adequado. Por um lado, porque não compreendo exatamente em que sentido a saúde no mundo está mudando (para melhor, para pior?) e, caso esteja mudando para melhor, não comungo com a interpretação de que a Big Pharma seja apresentada como motor dessa mudança. Mas, por outro lado, qual a evidência de que o recuo envergonhado da GSK vá impulsionar o ‘despertar ético’ das demais companhias? É cedo para opinar. Até onde pude verificar, a guilda norte-americana da indústria farmacêutica (PhRMA) ainda não se pronunciou. A guilda britânica (ABPI) falou por seu presidente Stephen Whitehead (em tradução livre): ‘a indústria farmacêutica está comprometida em aumentar a transparência dos pagamentos a profissionais de saúde e está agora se movendo da abertura de dados agregados para a abertura em nível individual dos pagamentos a profissionais médicos por atividades de marketing e atividades educacionais¹’. No meu entendimento, ‘aumentar a transparência dos pagamentos a profissionais de saúde’ não tem muito a ver com a proposta da GSK.
A saúde no mundo melhora com a construção de mais sistemas nacionais de saúde fincados no conceito de seguridade social. Melhora também com a ampliação do acesso racional a produtos industriais de saúde, em particular a medicamentos custo-efetivos. A ação da Big Pharma está longe de ser solidária com essas propostas.
*Reinaldo Guimarães é médico sanitarista e diretor da ABIFINA
1 – http://www.pharmatimes.com/article/13-12-17/GSK_to_end_payments_to_doctors.aspx