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Inovação e democratização da tecnologia no centro dos debates da Saúde Coletiva

A construção de um sistema de saúde universal não pode passar longe dos debates sobre os sentidos em disputa na sociedade a respeito dos avanços e inovações tecnológicas. Este foi um dos pontos centrais da mesa-redonda “Inovação tecnológica em Saúde, gestão de incertezas e falhas da ciência e do mercado”, realizada na manhã do último dia (04) do 3º Congresso Brasileiro de Política, Planejamento e Gestão em Saúde. A atividade contou com a participação de Reinaldo Guimarães, abrasquiano histórico atualmente integrante do Comitê assessor de Ciência, Tecnologia e Informação em Saúde (CCTIS/Abrasco); Carlos Gadelha, da Fiocruz, e Luis Eugenio Portela de Souza, do ISC/UFBA. A mediação foi de José da Rocha Carvalheiro, presidente da Abrasco (2006-2009) e professor aposentado da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP/USP).

“Preparei a apresentação a partir de um patrimônio intelectual e político acumulado por mim e que foi posto de cabeça pra baixo com a fratura constitucional aberta pela crise e pelo impeachment da presidente eleita”, introduziu Reinaldo Guimarães, fazendo uma concatenação de sua apresentação com o cenário político atual e ressaltando que os avanços e desafios da ciência dependem menos das falhas do mercado e do próprio conhecimento científico e mais de falhas das políticas públicas.

Para sustentar o argumento, ele fez uma rápida explanação sobre o conceito de inovação e apresentou um breve histórico da política industrial a partir do pós-guerra da 2ª grande guerra. “Nossa taxa de agregação de valor na indústria de transformação foi o dobro do observado no mundo como um todo entre 1950 e 1980. Mas, ao contrário do Japão, da Coréia do Sul e da China, tivemos dificuldade de absorver conhecimento para gerar políticas industriais inovadoras. Por um lado, pela imposição de políticas ultraliberais, a primeira das quais liderada pelo economista Eugênio Gudin. Ao lado disso, nossas políticas educacionais não tiveram uma dimensão necessária e suficiente para produzir mão de obra qualificada capaz de inovar a partir do conhecimento adquirido na produção em que estava envolvida”. Apenas como exemplo, ao início da década de 1970 tínhamos menos do que um milhão de estudantes de nível superior e o crescimento das matrículas foi muito lento até a década de 1990, quando acelerou de modo consistente. Entretanto, essa aceleração não se deu predominantemente nas carreiras técnicas (engenharias, química, etc.), além de ter sido como sede instituições privadas de ensino superior em sua maioria de muito má qualidade. No que se refere ao quarto grau, a despeito de ter sido uma política de grande sucesso, seu desenvolvimento se deu em um viés quase exclusivamente acadêmico. Note-se que programas de pós-graduação de corte profissionalizante só ganharam “cidadania plena” a partir da primeira década deste século”

Guimarães criticou também a falta de diálogo entre ciência, educação e indústria e comércio exterior na definição de uma política de inovação brasileira. “As principais normas legais da inovação não foram assuntos discutidos por quem produz ou por entes públicos que cuidam da produção, mas sim, exclusivamente, no âmbito do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), numa visão unicamente como ciência, e não como força produtiva.”
No campo da indústria da saúde propostas de integração produtiva com a pesquisa foram iniciadas com a Central de Medicamentos (CEME), criada em 1971, com relativo sucesso, até ser extinta no governo Collor. Após um período de silêncio nessa matéria, o Ministério da Saúde esteve envolvido nas três edições de políticas industriais dos anos 2000: Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (2004); as Política de Desenvolvimento Produtivo (2008), e o programa Brasil Maior (2011). “A proposta de uma política industrial para a saúde tem sido bem sucedida e seu sucesso deveu-se a um conjunto de fatores entre os quais podemos detacar o aumento do acesso a medicamentos pela população vinha crescendo de maneira intensa, num ambiente propício com sinergia entre os demandantes, o MS e o SUS, um ente financiador, que era o BNDES e com um conjunto de políticas sociais que incluíram os aumentos reais do salário-mínimo e os programas de inclusão social condicionada, como o Bolsa Família”. Vale mencionar ainda o licenciamento compulsório do Efavirenz, que forneceu visibilidade social e pública, como concepção prática de olhar para ampliar acesso e promover desenvolvimento industrial local.

Desenvolvimentismo como vetor do bem-estar social: Carlos Gadelha, que esteve à frente de algumas das políticas citadas por Guimarães em sua passagem pelo Decit-MS, iniciou sua fala registrando enfaticamente que inovação em saúde deve ser um tema central para a Saúde Coletiva brasileira. “As questões mais substantivas têm de passar por esse tema. O fato de o Abrascão ser realizado no próximo ano na Fiocruz demostra essa ligação. Precisamos avançar no debate entre base produtiva, SUS e inovação. Não teremos um SUS que cumpra seus princípios sem uma base produtiva nacional, senão é um SUS com pés de barro. Não é uma outra agenda lateral, tem a ver com SUS, direitos, e democracia.”

Ao apresentar a perspectiva de que inovação é “o conhecimento em ação e mudando bases produtivas, seja de um país, uma empresa, uma comunidade”, Carlos Gadelha apontou como o tema da inovação sofre um reducionismo similar aos temas sociais quando observado unicamente sobre o prisma do modelo biomédico. “Havia na academia um tratamento tecnicista da inovação, sem ver de que se trata de um sistema, que envolve financiamento, regulação, base produtiva instalada, capacidade de gerar conhecimento e que precisar dialogar com o estado de direto e com a prática democrática, pois o país quem não desenvolver seu sistema de inovação ficará de joelhos no cenário global”, reforçou o pesquisador, reafirmando que não basta uma visão sistêmica para reduzir incertezas a cálculos probabilístico de risco. É necessário, sobretudo, ação estatal. “Em Keynes, o Estado aparece frente ao mundo de incertezas, mediante a ação da inovação, elemento de estabilidade do desenvolvimento. Ele reforça que a decisão individual não leva ao bem comum sem uma ação da sociedade refletida numa ação de Estado”.

Para tal, é necessário considerar erros, riscos e incerteza que compõem todo o processo de inovação. “Vemos analises rasteiras que acham que todas as experiências devam dar certo, o que é um erro, é esperar bola de cristal. Quem pensa assim traz a ideia de uma ciência portadora da verdade”.

Na sequência, Carlos Gadelha trouxe o debate do Complexo Econômico-industrial da Saúde (CEIS) com uma série de tópicos que devem compor uma agenda de investigações, questionando como o capital e o capitalismo reproduzem-se dentro da saúde; a ciência como força produtiva do capital; e formas de acionar as força sociais e institucionais para orientar a acumulação de capital na geração de benefícios sociais. “Temos de pensar a saúde com processo desenvolvimentista, sermos protagonistas neste processo, trabalhar e aprofundar o projeto para que coloque o bem estar e a inovação no centro a conta. Ao invés da discussão de que a saúde tem de caber no PIB como proferido pelo atual governo, que o bem estar seja a alavanca do PIB”, concluiu ele, ressaltando o papel da Saúde Coletiva e da Abrasco na ampliação desse debate por suas dimensões política e multidisciplinar.

Democratização da tecnologia para superar interesses privados: Coube a Luis Eugenio de Souza, presidente da Abrasco (2012-2015) e atual coordenador do programa de pós-graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA), trazer ao debate a contribuição da teoria crítica da tecnologia, não sem antes destacar o dever político da Abrasco para 2018. “Temos de nos preparar para o próximo ano, debatendo de forma crítica a destruição dos direitos e construir um programa para disputar corações e mentes na área da saúde. A política de CTI deve ser inserir nesse debate”.

Trazendo a discussão para arena científica, Luis Eugenio trouxe o conceito de inovação como formulado por Joseph Schumpeter, uma mola propulsora da economia no sistema capitalista que dispara uma complexa relação entre produção e destruição, expressando-se no Complexo Econômico-industrial da Saúde (CEIS) e na assistência direta; bem como a caracterização das teorias sobre tecnologia formuladas por Andrew Feenberg, abrindo o leque de análise mostrando que ambas as perspectivas apresentam efeitos positivos e negativos sobre as pessoas, os sistemas e os serviços de saúde. “As tecnologias não são neutras, elas encarnam propósito e interesses. Ao mesmo tempo, não são autônomas, mas comandas por humanos, o que torna possível desenvolver a civilização com outras bases. Cabe então a pergunta: que valores e interesses tem orientado a produção de tecnologias em saúde?”

Os processos de decisão em pesquisa e desenvolvimento científico e tecnológico envolvem muitos tomadores de decisão, como chefes da indústria, dirigentes governamentais e gestores de órgãos de fomento e, nos estudos da canadense Pascale Lehoux trazidos pelo palestrante, trabalham centralmente com critérios de desejo e retorno financeiro (desirability e affordability), deixando para o final as contribuições e apontamentos das pesquisas em Avaliação das Tecnologias de Saúde (ATS), o que se constitui, para o pesquisador da UFBA, uma inversão de valores.

“Por que esse padrão não se modifica? Sabemos que o poder das indústrias farmacêutica de equipamentos, mas por si só não se explica. Cabe perguntar à comunidade médica a ênfase que há na produção de tecnologia nos tratamentos sintomáticos sobre os etiológicos. Para mudar esse padrão e supera-lo temos de ter capacidade de atender os principais problemas do perfil epidemiológico das populações, valorizar a apropriação pelos usuários sem gerar novos especialistas, nem apresentar custos que inviabilize sua aplicação nos e sistemas”, sistematizou.

Ao final, Luis Eugenio pontuou uma série de estratégias para a superação dos limites apresentados: ampliação da comunidade de desenvolvedores em diálogo com a sociedade civil; restrições ao poder das grandes indústrias nas áreas da publicidade e da formação médico-farmacêutica; socialização dos meios de produção por meio da transferência e da democratização do conhecimento científico, promovendo a superação entre trabalho manual e intelectual. “Temos de discutir a viabilidade real dessas transformações, não só pela agudização da crise global, no coro do clichê chinês crise-oportunidade, mas para além disso, discutindo as ambiguidades das atuais tecnologias existentes. A forma como aproveitaremos essas ambiguidades vai depender de como os novos movimentos sociais vão incluir nas suas agendas o aporte das contribuições da tecnologia crítica”.

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