A professora Ligia Bahia, membro do Conselho Diretivo da Abrasco, publicou nesta segunda-feira 6 de julho, o artigo ‘Insensatez lucrativa’ no jornal O Globo. Leia o artigo na íntegra:
Ideias distorcidas sobre os negócios empresariais têm passado, sem cerimônia, do desejo para discursos, práticas e políticas oficiais. No mês passado, duas delas foram reeditadas. A primeira não tem nada de novo, refere-se à aspiração dos brasileiros por planos privados. A outra, um detalhamento da anterior, sugere que a maioria dos cidadãos ávidos por planos é favorável à redução do pagamento para saudáveis.
Propostas de diferenciação de tarifas segundo status de saúde também não são originais, já foram experimentadas e devidamente abandonadas nos EUA. Mesmo, assim, a vontade de expandir negócios vem a público como verdade científica. O país não produziu qualquer evidência de que um real aplicado no setor privado é mais eficiente do que se fosse investido no SUS, mas as entidades do setor privado continuam patrocinando levantamentos sobre o óbvio. Um inquérito realizado em maio encontrou os resultados pretendidos: a maioria dos entrevistados gostaria de ter um plano porque se sente inseguro em relação ao atendimento no SUS e concorda com a proposta de cobrar mais para quem tem hábitos saudáveis.
A informação, divulgada como prova inquestionável de concordância com as intenções privatizantes, foi incorporada tanto na propaganda como no discurso de posse do presidente da Agencia Nacional de Saúde Suplementar. A “boa forma” individual e o “desejo de boa parte da sociedade brasileira de possuir um plano privado de saúde” tornam-se orientadores de ações regulatórias.
Tenta-se decretar que os planos de saúde são a melhor alternativa para a qualidade de vida e que os negligentes com a prevenção, os relaxados com o gerenciamento antecipado de riscos futuros devem ser punidos. Em vez de pacientes, ou mesmo consumidores, haverá investidores em uma vida individual saudável. Em meio a uma economia travada, recessão, cortes nos orçamentos públicos das áreas sociais e uma safra abundante de denúncias de corrupção, vicejam acenos de proteção específica para os mais ricos e saudáveis.
A substituição do menor infrator pelo obeso, culpado por glutonice proposital, seria uma operação pouco rigorosa, mas parte de uma raiz comum: a leviana personalização de problemas socais. Sem que as ideias de exaltação da privatização sejam submetidas a verificação, o desejo de querer lucrar mais no setor saúde, que é legitimamente assegurado pela Constituição, transmuta-se em obrigação do governo de abrir as torneiras para os empresários, o que é vedado pela mesma legislação.
Sob uma estimativa cautelosa, para que metade dos brasileiros tivesse cobertura de planos seria necessário duplicar os gastos com saúde. Como o dinheiro está escasso, a intenção é que esses recursos continuem a jorrar da mesma fonte que já aplaca parte do apetite pela privatização. Expedientes como emendas parlamentes, que alocaram no orçamento da União de 2015 R$109 milhões para o plano dos funcionários do Superior Tribunal de Justiça (cinco vezes mais do que para os demais habitantes), são, é claro, inviabilizadores do SUS, mas estão vigentes e consolidados.
Ricos ou ocupantes de altos cargos políticos no Brasil usufruem atenção super personalizada. Andar de bicicleta cercado por seguranças, deslocar médicos para atendimento em outra cidade, sair de Brasília para realizar exames e tratamentos em São Paulo, dieta monitorada, não é para qualquer um. São estilos de vida que não admitem cópia, mas ajudam a projetar a ilusão de mobilidade social ilimitada para quem for obediente às regras saudáveis.
A mistura de saúde, qualidade de vida com sucesso e riqueza compõe uma imagem completamente distanciada da realidade, inclusive da notória existência de doentes, relativamente jovens, sabidamente poderosos e abastados. Classificar e atribuir preços a seres humanos doentes e saudáveis sempre teve consequências trágicas, entre as quais o assassinato de escravos, segurados como carga, no navio Zong em 1781.
Do largo espectro de atividades para proteger contra riscos à saúde e atender quem precisa, desde o controle da produção e circulação de bens, serviços e substâncias nocivas até cuidados assistenciais, só os procedimentos individualizados interessam aos especuladores. As pesquisas, mesmo as empresariais, não registram que o sistema de saúde deva ser privado e muito menos justificam políticas de financeirização da vida. Apenas 57% dos entrevistados vinculados a planos de saúde consideraram que os serviços privados são melhores do que os públicos e 26% os utilizam porque não conseguem assistência na rede credenciada. Ou seja, parcela significativa de quem tem plano não julga que o público tenha má qualidade.
As razões para a procura de cobertura privada são as insuficiências dos serviços públicos e não desconfiança na capacidade do SUS para resolver problemas. Mesmo com inúmeras deficiências, a preocupação da rede pública com a prevenção, fornecimento de medicamentos e a marcação institucional de exames termina, em muitos casos, funcionando melhor do que o “ter que se virar sozinho” para dar continuidade ao atendimento.
Pouco a pouco as unidades de saúde da família e outros estabelecimentos públicos mostram as vantagens dos cuidados mais integrados. A importação tardia de estratégias fracassadas, como o pagamento de menores preços pelos saudáveis objetiva primordialmente expandir o mercado. O SUS é uma política sensata; atrapalhar a saúde pública pode render dividendos para uns e outros, mas não é racional.