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A inteligência artificial e a expectativa de vida dos brasileiros

Mônica Manir / BBC Brasil

A inteligência artificial pode dar pistas valiosas sobre boas (ou nem tanto) práticas de gestão em saúde. É o que afirmam quatro pesquisadores da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), que, em parceria com um professor de Harvard, desenvolveram um algoritmo para descobrir quais investimentos em saúde pública têm potencial para aumentar a expectativa de vida dos brasileiros.

Por algoritmo, nesse caso, entende-se um modelo estatístico que aprende a tomar decisões inteligentes com os dados fornecidos. O estudo comparou a expectativa de vida oficial com uma estimativa feita a partir de uma série de indicadores socioeconômicos e atestou que mais vale a atenção voltada à saúde da família do que a focada em especialistas e aparelhos de última geração.

Publicada nesta semana pela prestigiosa revista acadêmica Epidemiology, a análise abrangeu todos os municípios do Brasil com mais de 10 mil habitantes, num total de 3.052. Na fase inicial do estudo, foram avaliadas 60 variáveis locais baseadas no último censo, de 2010, que não estão diretamente ligadas à gestão de saúde das cidades.

“Fatores clássicos de desigualdade social são muito importantes na área da saúde. Em geral, pessoas com melhor renda têm uma expectativa de vida maior”, diz o economista Alexandre Chiavegatto Filho, professor que assina como primeiro autor do artigo.

“Nossa ideia era treinar o algoritmo a ponto de ele afirmar que um município com determinada renda, escolaridade e acesso à tecnologia deveria ter uma população vivendo, por exemplo, até os 73,2 anos”, afirma. A equipe, então, compararia essa informação com os números oficiais. A inteligência artificial, também conhecida pela sigla IA (ou AI, em inglês), processou bem o enorme volume de dados – tanto que foi precisa na maioria dos casos, checados um a um. Mas a equipe identificou algumas cidades outliers, “fora da reta”, em que a conta não bateu. “Há município em que, segundo o algoritmo, a expectativa deveria ser de 74,7 anos, e ela foi de 75,5 anos”, assinala Chiavegatto Filho. Ele lembra que, ainda assim, o erro é baixo, considerando a amplitude de valores. No Brasil, entre o melhor e o pior colocados no quesito “expectativa de vida da população”, a diferença é de 13 anos. Quem mora em Brusque (SC) tende a viver até os 78,6 anos. Já em Joaquim Nabuco (PE), a média, de acordo com o censo, é de 65,5.

Segunda etapa

A esperança de vida é oficialmente calculada no âmbito do Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, a partir do número médio de anos que as pessoas de um determinado lugar vivem a partir do nascimento.

Nas cidades em que o número predito não bateu com o dado oficial da realidade, os pesquisadores passaram à segunda etapa do trabalho, adicionando variáveis específicas de administração na saúde. “Acrescentamos à análise a proporção de cesarianas, as estratégias de saúde da família, os leitos hospitalares per capita, os pesos das crianças ao nascerem, a quantidade de mamografias, os equipamentos de suporte à vida como desfibriladores, as incubadoras e os monitores de eletrocardiograma”, elenca Chiavegatto Filho.

Aqueles municípios que, nas informações divulgadas, apresentaram expectativa de vida maior que a calculada oficialmente foram chamados no artigo de overachievers. Os que mostraram a população morrendo antes do previsto seriam os underachievers.

O resultado foi que, entre os overachievers, prevaleceu o programa de saúde primária, com mais vacinação infantil, programas de saúde bucal, combate ao tabaco, estímulo à atividade física. Nos que se classificaram abaixo da expectativa, a ênfase era na atenção secundária, normalmente oferecida por especialistas. Os underachievers também fazem mais mamografias, cesáreas, têm mais equipamentos de raio X.

De acordo com a pesquisa, Joaquim Nabuco, município pernambucano com 16 mil habitantes, apresenta cerca de quatro anos a menos do que se estimava. Considerando as variáveis socioeconômicas, a população nabuquense deveria viver até os 69,7 anos, mas chega, em média, aos já citados 65,5 anos. Na extremidade oposta, Alto Alegre, em Roraima, também rondando os 16 mil habitantes, tem uma expectativa calculada de 70. Os alto-alegrenses costumam aniversariar até os 73,7 anos, em média.

“Há que se ter cautela com esses números porque municípios menores têm uma variabilidade anual grande”, enfatiza o economista. “Não significa, por exemplo, que estamos lidando com a melhor situação de saúde do país, e sim com aquela que se apresenta melhor que o esperado pelo algoritmo.”

Chiavegatto Filho prefere destacar o desempenho de cidades grandes, como as capitais. Brasília encabeça os overachievers (77,3 no real; 75,8 no predito), seguida de São Paulo (76,3 contra 75,4). Maceió mostrou a maior diferença entre os underachievers (72,9 no real; 74,3 no predito), acompanhada de Rio Branco (72,8 contra 73,9).

Atenção básica

Para o italiano Davide Rasella, professor convidado do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA), existe um número expressivo de artigos acadêmicos evidenciando o papel da Estratégia Saúde da Família (ESF) na redução da mortalidade de crianças e adultos brasileiros nos últimos anos. “Os resultados desse estudo sobre a expectativa de vida são uma confirmação a mais desse efeito.”

A ESF é um programa ligado à Unidade Básica de Saúde (UBS) local. Sua proposta, segundo o Ministério da Saúde, é aproximar a equipe do usuário, permitindo que se conheça não apenas o próprio paciente mas também a família e os vizinhos. “Os médicos da ESF têm uma relação mais próxima com os problemas da comunidade onde atuam graças ao trabalho dos agentes comunitários e às visitas domiciliares que eles mesmos fazem”, afirma Rasella.

Os agentes ajudariam a identificar possíveis causas das doenças mais frequentes, como a falta de saneamento básico e os grandes criadouros do Aedes aegypti, além de permitir, por exemplo, o acompanhamento das famílias de mulheres grávidas e de doentes crônicos.

“Calcula-se que a atenção básica pode resolver de 80% a 90% das necessidades de saúde de um indivíduo”, diz Rasella. Ele lembra que a atenção especializada, fundamental em alguns casos, tende a ser mais cara e de mais difícil acesso à população em geral.

Mário Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da USP, também enfatiza que o levantamento sistematizado pela inteligência artificial reforça “referências robustas” sobre a importância da atenção primária, tanto no exterior quanto no Brasil. Não à toa, os candidatos presidenciais, em sua maioria, destacam esse serviço nos seus programas de governo, “mesmo sem especificar como farão isso e com que recursos”, fato que ele comprovou em recente trabalho feito com Ligia Bahia, professora da UFRJ, e Ilaê Braga, da Fiocruz.

Mas ele destaca que a atenção primária no país ainda apresenta muitos problemas: “Ela não é integral nem resolutiva em todas as regiões”. Quer dizer, primeiro, que nem todos os municípios podem contar com ela. Segundo, que certas Unidades Básicas de Saúde ficam à espera das pessoas ou focadas em problemas agudos, em vez de promover as visitas domiciliares e se voltar à comunidade. Também faltam médicos. “Daí que alguns cidadãos não sentem confiança de que seu problema de saúde será resolvido e procuram outra porta de entrada para o sistema, como a atenção secundária, que também tem seus gargalos”, afirma.

Antagonizar a atenção primária à secundária é outra proposta que não ajuda, segundo Scheffer. Na secundária estariam as condições previsíveis, que permitem agendamento prévio com especialistas, e também as emergências, os Caps, os ambulatórios especializados, os serviços de radioterapia, quimioterapia e hemodiálise.

Hospitais e Enem

Tanto Scheffer quanto Rasella entendem a inteligência artificial com um recurso valioso para levantar hipóteses e oferecer elementos que ajudem na tomada de decisões. “Como os problemas de saúde são geralmente muito complexos, e a qualidade e a quantidade de dados nem sempre compreensíveis, uma abordagem via algoritmos deve ser sempre avaliada por pesquisadores experientes”, acrescenta o italiano.

Chiavegatto Filho, que dá aula de estatística em saúde e ministra curso via YouTube sobre aplicações da inteligência artificial, se entusiasma com a possibilidade de usar esse recurso para identificar overachievers. Na área da saúde, ele pensa em utilizar a IA para avaliar qual hospital teria o melhor pós-operatório do Brasil. “Pacientes de maior renda tendem a responder melhor a uma cirurgia, já que costumam ter acesso a todos os medicamentos, podem contratar alguém que os acompanhe em casa, não precisam trabalhar no dia seguinte”, diz ele. “Então não necessariamente o hospital que o atendeu estaria agregando valor; ele poderia ser sensacional, e agora só é muito bom.”

O mesmo valeria para os rankings do Enem, afirma ele, com caneta em punho traçando uma reta ascendente. Dadas as características dos alunos de uma escola – boa alimentação, apoio dos pais, tutores em casa -, quais escolas estariam somando algo? O que significariam, de fato, aquelas altas notas no Enem? “É para isso que serve a inteligência artificial: entender essas interações complexas e encontrar padrões nos dados que nos ajudem a predizer alguma coisa.”

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