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APRESENTAÇÃO
A chamada de artigos para este número temático da Interface: Comunicação, Saúde, Educação, volume 24, suplemento 1 de 2020, foi lançada em 15 de julho de 2019, com o intuito de divulgar trabalhos produzidos no âmbito do Mestrado Profissional em Saúde da Família (ProfSaúde). A coleção está composta por 21 artigos resultantes de pesquisas originais, revisão da literatura e ensaios, elaborados em colaboração por 73 autores – alunos, docentes e pesquisadores – oriundos das cinco regiões geopolíticas do país e de quase duas dezenas de instituições.
À época da chamada não tínhamos ideia das mudanças que viveríamos em decorrência da Covid-19 em nosso país e no mundo. A pandemia expôs as restrições e limitações da infraestrutura de saúde pública de nosso país e aumentou a consciência da importância do Sistema Único de Saúde (SUS) e da Atenção Primária à Saúde (APS) para responder às necessidades de cuidado, prevenção e proteção da população, com equidade[1].
Independentemente dos graves significados da pandemia, os temas abordados neste suplemento permanecem atuais e desafiam o cotidiano da Atenção Primária à Saúde (APS) e da Estratégia Saúde da Família (ESF), em um contexto de redução do financiamento, queda na cobertura vacinal, contaminação dos profissionais de saúde pelo novo coronavírus, dificuldades na educação permanente e na formação de pessoal, e de constante erosão social e econômica[2].
A coletânea inicia-se com o artigo de Guilam et al.[3], “Mestrado Profissional em Saúde da Família (ProfSaúde): uma experiência de formação em rede”, que registra o percurso histórico do programa, as características da rede nacional de instituições participantes, a concepção pedagógica e o desenvolvimento operacional da proposta por meio de Educação a Distância (EAD). O ProfSaúde é uma iniciativa ousada e original de constituição de uma rede nacional para a formação de docentes e preceptores para a área de Saúde da Família, uma carência histórica do SUS e dos cursos de graduação e pós-graduação da área de saúde.
A experiência é valiosa para subsidiar outras propostas dirigidas à formação profissional. O artigo de Aguiar et al.[4] sobre a segurança do paciente na APS em Manaus trata de um problema relevante que desafia a qualidade dos cuidados nesse nível de atenção. Seu enfrentamento requer ações educativas dos profissionais e usuários, situando a temática entre as prioridades dos programas de educação permanente e formação profissional.
Cardoso Junior e Sousa[5] avaliaram a supervisão acadêmica do Programa Mais Médicos na Paraíba, conforme a percepção dos supervisionados. O estudo mostrou um desempenho superior dos médicos estrangeiros na pós-graduação e na experiência de trabalho em comparação aos brasileiros. A supervisão foi considerada positiva com destaque para o suporte às decisões clínicas, indicando a relevância da educação permanente e do acompanhamento técnico da prática profissional para qualificar a APS.
Maranhão et al.[6] examinaram o escopo de prática de médicos na ESF e suas relações com a formação e a titulação em Medicina de Família e Comunidade (MFC). Os autores identificaram um escopo de práticas mais abrangente em profissionais com formação no exterior e residência em MFC. Os resultados chamam a atenção para os desafios da educação profissional de médicos no Brasil.
Costa et al.[7] avaliaram a qualidade dos serviços de APS, de acordo com a percepção de usuários e profissionais, em um município do Maranhão. Por meio do Primary Care Assessment Tool, os autores revelaram um contraste na percepção de atributos essenciais e derivados, com uma avaliação satisfatória por profissionais e insatisfatória por usuários. Dificuldades no acesso de primeiro contato foi o atributo com pior avaliação por ambos os grupos de participantes, colocando o problema entre as prioridades da reorganização dos serviços de APS e da capacitação dos profissionais.
Dias e Junqueira[8] caracterizaram as ações de profissionais da Atenção Básica (AB) no Programa de Automonitoramento Glicêmico em um diálogo com usuários. A discussão sobre os modos de vida e o tratamento resultou na elaboração de um guia para aproximação às necessidades de saúde dos usuários de insulina. O artigo destaca a conexão entre orientação profissional e educação em saúde de usuários como estratégia para fortalecer o autocuidado em saúde.
A atenção integral à saúde do adolescente na APS foi o objeto de uma revisão integrativa desenvolvida por Silva e Engstrom[9]. As autoras destacaram dificuldades e estigmas no cuidado, fragilidades de vínculos e fragmentação das práticas, cujo enfrentamento requer uma nova abordagem que valorize a participação dos adolescentes. A integralidade do cuidado desafia a APS, especialmente para os adolescentes, um grupo populacional negligenciado em ações programáticas tradicionais, como, por exemplo, doenças sexualmente transmissíveis e saúde reprodutiva, requerendo a contribuição dos programas de educação permanente e formação profissional para sua efetivação.
Coutinho e Tomasi[10] estudaram o déficit de autocuidado em idosos de uma equipe da ESF e encontraram associação com multimorbidade, pior autopercepção de saúde, consumo alimentar inadequado, baixa escolaridade, inatividade e dependência para as atividades básicas da vida diária. O artigo reforça o papel das equipes de saúde na promoção do autocuidado e da melhoria da atenção a idosos na ESF. O tema do autocuidado ganha centralidade na reorganização do processo de trabalho da APS, em um contexto de aumento das condições crônicas de saúde e da multimorbidade, exigindo capacitação dos profissionais de saúde e programas de educação em saúde dos usuários.
Filipak et al.[11] descreveram os desafios sociais e de cuidado da saúde dos trabalhadores de reciclagem. Refletem sobre o cotidiano, os riscos ocupacionais e a relação com os serviços de saúde de uma categoria de trabalhadores que busca dignidade social, mas enfrenta a precarização e a vulnerabilidade. A capacidade de resposta da APS às demandas de saúde dos trabalhadores informais exige ações intersetoriais, especialmente de proteção e assistência social e de capacitação dos profissionais de saúde.
Schafirowitz e Souza[12] analisaram adultos vinculados a doze Unidades Básicas de Saúde (UBS) de um município de grande porte, que consultaram em Unidade de Pronto Atendimento (UPA) e receberam classificação de risco pouco urgente. As consultas se associaram ao número de indivíduos cadastrados em cada UBS, sexo feminino e horários em que as UBS estavam fechadas, remetendo a desafios na organização da APS. O maior vínculo dos usuários com os serviços de APS depende de investimentos capazes de diminuir o número de pessoas por equipe e aumentar o horário de atendimento, além de promover a capacitação profissional com vistas ao aumento da resolubilidade das ações ofertadas.
A elucidação dos entraves na assistência à saúde mental na APS é fundamental para melhoria dos serviços. Pereira et al.[13] identificaram a relevância da educação permanente no enfrentamento das dificuldades referidas por profissionais de saúde para cuidar de usuários com sofrimento mental. Para garantir a integralidade do cuidado na APS, os programas de educação permanente necessitam capacitar os profissionais para lidar com a demanda de saúde mental, adequar os processos de trabalho às particularidades do problema, delinear estratégias para seu acompanhamento e estabelecer interlocução com outros serviços.
Feichas et al.[14] relataram o diálogo estabelecido entre os profissionais de uma equipe da ESF de Manaus com cuidadores tradicionais. A pesquisa propiciou a interação com usuários e cuidadores populares na busca de superar possíveis preconceitos que dificultavam o diálogo intercultural e uma relação colaborativa no cuidado das pessoas no território. A qualidade dos cuidados ofertados na ESF depende da competência cultural das equipes, da valorização do saber e das práticas populares, nos diversos contextos sociais do país. Portanto, esse atributo da APS necessita ganhar centralidade nos processos de formação profissional e educação permanente.
Tomaz et al.[15] identificaram níveis elevados de burnout em profissionais da ESF, moderada pontuação nos fatores que compõem a resiliência e baixa eficiência no uso de estratégias de combate aos estressores. O estudo é um alerta para a necessidade de enfrentamento dos desafios da saúde dos trabalhadores da ESF, incluindo o suporte emocional a eles e a organização de rede de apoio ao trabalho cotidiano. O tema também requer sua inclusão nas estratégias de educação permanente dos profissionais, em abordagem sobre os riscos ocupacionais decorrentes do cuidado de pessoas com sofrimento físico e mental, juntamente com estratégias de aumento do controle e uso da criatividade no exercício de suas atividades.
A prevenção quaternária emergiu como um conceito inovador, propondo alternativas para prevenir eventos iatrogênicos e otimizar os custos da saúde. Conforme Depallens et al.[16], a prevenção quaternária tem o potencial de ser uma força significativa para melhorar a educação médica e se constituir em um elemento estratégico para remodelar as práticas de saúde. A aplicação dos princípios e competências requeridas à prevenção quaternária pode igualmente qualificar os programas de educação permanente e formação profissional em APS, com o objetivo de melhorar o desempenho e a efetividade dos serviços.
Rotta e Nascimento[17] caracterizaram os aspectos motivacionais de estudantes de medicina para a atuação profissional na Estratégia Saúde da Família (ESF) e as estratégias indutoras do Projeto Político Pedagógico (PPP) de dois cursos de medicina. Os estudantes identificaram a ESF como oportunidade de trabalho temporário, com ideologia cativante, mas a ação das forças motivadoras extrínsecas resulta na escolha de outras áreas para a carreira médica. As autoras recomendam a valorização do potencial motivacional intrínseco dos estudantes e o desenvolvimento de estratégias na formação profissional para romper barreiras que limitam a escolha pela ESF.
Malta et al.[18] analisaram as práticas de médicos e enfermeiros da Atenção Primária à Saúde no cuidado a idosos com demência, em municípios do norte de Minas Gerais, e os autores constataram uma prática incipiente nos serviços estudados. Parte de um problema mais amplo, sua incorporação ao cotidiano da APS aponta a necessidade do desenvolvimento de estratégias educativas que contemplem o fortalecimento da assistência a idosos, em um contexto de aumento da longevidade e da ocorrência de múltiplas condições crônicas de saúde, incluindo a demência.
Almeida et al.[19] estudaram os processos de regulação assistencial por meio das ações para detecção precoce do câncer de mama em perspectiva regional. Identificaram uma multiplicidade de sistemas regulatórios, sob gestões estadual, municipal e regional. A implantação do Sistema de Informação de Câncer não foi efetivada, comprometendo o monitoramento das ações e a coordenação do cuidado. Apesar dos esforços municipais, as ações permaneciam atomizadas e paralelas, sem atuação do gestor estadual na coordenação e na articulação das redes regionalizadas.
Experiências de reorganização do acesso, para promover a utilização dos serviços de saúde de forma racional e inclusiva, têm se multiplicado no âmbito da ESF. Camargo e Castanheira[20] estudaram a implantação do “Acolhimento por Equipe (AE)” e concluíram que a iniciativa foi produto do protagonismo dos trabalhadores da ESF. A redução do tempo de espera para consultas e a maior satisfação dos envolvidos indicam o AE como uma experiência positiva de ampliação do acesso, um dos maiores desafios do SUS.
A capacitação dos profissionais para realizar o acolhimento por todos os integrantes da equipe contribuirá para a qualificação da resposta da ESF às demandas dos usuários. Esperandio et al.[21] buscaram compreender a experiência de mulheres vítimas de violência íntima no contexto do cuidado ofertado na APS na cidade do Rio de Janeiro. O estudo identificou dificuldades das mulheres para revelar a violência íntima e de atuação da APS. Foi proposta a criação de grupos para escuta empática e formação de vínculo com os profissionais de saúde, a qualificação da rede básica, o reforço do papel dos Agentes Comunitários e dos atributos da APS para o cuidado dessas situações.
Wander et al.[22] avaliaram a interação em fóruns de discussão na especialização de preceptoria em Medicina de Família e Comunidade (MFC), na modalidade Educação a Distância (EAD). Os resultados mostram que a autonomia na atuação do tutor, como, por exemplo, ao propor mudanças de tópico, incide na participação e na construção de cadeias enunciativas, que contribuem para a percepção da qualidade da interação e da interatividade por alunos do curso. O artigo explicita a relevância do perfil dos educadores na formação de preceptores em MFC.
Oliveira et al.[23] relatam as dificuldades de acesso a cuidados básicos de saúde e de prevenção em reclusos e reclusas de duas delegacias de polícia – uma com população masculina e outra, feminina – em Curitiba. Aspectos estruturais e processuais interferiram no acesso aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos do atendimento à saúde, requerendo a formulação de estratégias de acolhimento dessa população na Atenção Básica (AB).
Ao abordar uma grande diversidade de temas, a coletânea revela carências e sobretudo potencialidades da APS brasileira perante os desafios históricos do SUS e aqueles que emergiram com a Covid-19. É possível observar pontos convergentes ao longo da leitura dos artigos, com destaque para a relevância da educação permanente e da formação profissional no enfrentamento dos desafios da APS e para a qualificação da resposta dos serviços às demandas de usuários e às necessidades de saúde da população. Trabalho em equipe, reorganização dos serviços e do processo de trabalho na ESF também conectam boa parte dos artigos do suplemento.
Nosso desejo é que os artigos tragam novas perspectivas para as questões da prática e da formação profissional e inspirem leitoras e leitores a sondar novos caminhos para melhorar a ESF. Essa inspiração poderá criar novas opções na encruzilhada em que nos encontramos. Em suma, é uma alegria e uma honra oferecer ao exame do público o presente Suplemento, resultado da cooperação bem-sucedida do ProfSaúde com a revista Interface.
Boa leitura!
Luiz Augusto Facchini – (UFPel)
Maria Cristina Rodrigues Guilam – (Fiocruz)
Carla Pacheco Teixeira – (Fiocruz)