Os professores Carlos Frederico Rocha e Tatiana Roque, diretores da Associação de Docentes da Universidade Federal do Rio de Janeiro – ADUFRJ , escreveram no portal Nexo – na última terça-feira, dia 03 de outubro – sobre a necessidade de financiamento público para ciência, no Brasil e no mundo. A associação coordena a campanha Conhecimento sem cortes, uma denúncia contra os cortes do governo federal no orçamento de universidades públicas e da ciência e tecnologia. Confira o artigo:
Ganha força o argumento de que o investimento na pesquisa em ciência e tecnologia deveria ser feito por empresas privadas. Professores e cientistas têm mostrado o impacto dos cortes no financiamento público das universidades, das agências de fomento e dos centros de pesquisa no Brasil. Jornalistas, gestores e economistas mais afinados com a defesa do enxugamento da infraestrutura pública respondem que o investimento em ciência e tecnologia deveria ser privado. Para corroborar essa tese, um dos exemplos citados é o de Israel.
Ora, Israel é um país pequeno, em uma conjuntura geopolítica bastante específica e com 50% dos recursos para P&D (pesquisa e desenvolvimento) provenientes do exterior. O país atingiu um patamar de alto nível em tecnologias estimuladas pela indústria de armamentos, como aponta o Unesco Science Report de 2015. Contudo, esse mesmo relatório alerta para o fato de que o declínio nos investimentos em ciência básica em Israel, feita sobretudo nas universidades, pode ter consequências negativas para o país já que “as próximas ondas de altas tecnologias devem emanar de disciplinas que incluem biologia molecular, biotecnologia e farmacêuticos, nanotecnologia, ciências dos materiais e química, em íntima sinergia com tecnologias da informação e da comunicação.” Tais disciplinas são realizadas em laboratórios de pesquisa básica de universidades e dependem de políticas nacionais de incentivo, o que a Unesco aponta como sendo um ponto fraco de Israel.
Quando falamos de investimentos em P&D, é necessário separar o P (de pesquisa) do D (de desenvolvimento). Um dos maiores desafios do Brasil é justamente como consolidar o caminho de uma etapa a outra. Os investimentos para pesquisa em ciência básica são feitos com verbas públicas, no mundo todo; há vasta literatura sobre o assunto. Já com relação às pesquisas aplicadas ao desenvolvimento de determinados produtos existe, em geral, complementaridade entre gasto governamental e recursos privados; a proporção de cada um varia de um país a outro.
No caso brasileiro, o governo, em suas diferentes esferas, investia entre 0,6% e 0,7% do PIB (Produto Interno Bruto) em pesquisa e desenvolvimento (até 2014). A maior parte desses recursos era para a ciência básica, com forte participação das universidades. Esse percentual é semelhante ao investimento do governo dos EUA e, inclusive, ao de Israel. A diferença é que, no Brasil, o gasto público representava, em 2014, cerca de 50% do investimento total em P&D, ao passo que, nos EUA e em Israel, esse percentual gira em torno de 20%. No entanto, países com níveis de desenvolvimento próximos ao do Brasil mantêm a mesma relação brasileira entre investimento público e privado.
A literatura especializada demonstra também que não existe inovação isolada, mas que bons resultados surgem da interação entre diferentes atores de um sistema. Nas universidades estão os saberes, as habilidades e os recursos humanos para as indústrias do futuro, que serão intensivas em conhecimento científico e tecnológico. A interação entre esse conhecimento e a indústria possibilita a produção de tecnologias de alto nível, que, por sua vez, conduzem à inovação. Isso é o que ocorre em países desenvolvidos, como mostra a experiência do Vale do Silício, nos EUA, tão conclamada pela mídia. É o encontro entre o conhecimento produzido nas universidades e os segmentos privados que abre caminhos para um novo modelo de desenvolvimento. Foi assim com inovações como o touch screen na indústria de celulares e é essa a lógica dos grandes projetos Mission Oriented nos EUA, que promovem a interação entre o Departamento de Defesa e a Indústria Armamentista, entre o National Health Service e a indústria farmacêutica, entre outros exemplos.
O esforço brasileiro em ciência básica já obteve resultados impressionantes. Em vinte anos, multiplicou-se por dez o número de nossas publicações em revistas científicas , tendo mais do que triplicado o impacto científico médio dessas publicações, segundo dados da Academia Brasileira de Ciências. Essa trajetória permitiu ao país alcançar a liderança científica em áreas como doenças tropicais, pouco exploradas por outros países, mas centrais para o bem-estar da população. Esses esforços também levaram ao sucesso na produção de aviões ou na exploração de petróleo, setor em que há forte interação entre laboratórios de pesquisa e desenvolvimentos privados e públicos.
No estágio atual de nossa área de P&D, pregar o investimento privado é aderir a um discurso mágico e pouco informado, que acredita na geração espontânea de investimentos privados em pesquisa. A experiência internacional contradiz essa tese. Países como Coreia, China e Estados Unidos, entre outros, mostram que o investimento público é condição necessária para o desenvolvimento, inclusive para atrair os investimentos privados. Se o Brasil quiser apostar em um novo modelo de desenvolvimento, mais afinado com as tendências de nosso tempo, não poderá abrir mão de sua estrutura pública de pesquisa.