Pesquisar
Close this search box.

 NOTÍCIAS 

Isolamento Social e o aumento da violência doméstica é tema de artigo na RBE

Bruno C. Dias I Editoria da RBE - Revista Brasileira de Epidemiologia

Em meio às tantas novas contingências impostas pela pandemia do novo coronavírus, o isolamento social traz algumas questões para além dos cuidados com a saúde. A violência doméstica, principalmente contra a mulher, já aparece como um dado preocupante na China, em países da Europa e também em alguns indicadores nacionais sobre o tema.

No Brasil, segundo a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ODNH), do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), entre os dias 1o a 16 e 17 a 25 de março, mês da mulher, houve crescimento de 18% no número de denúncias registradas pelos serviços Disque 100 e o Ligue 180. Neste País, o necessário isolamento social para o enfrentamento à pandemia escancara uma dura realidade: apesar de chefiarem 28,9 milhões de famílias no país, as mulheres brasileiras não estão seguras nem mesmo em suas casas.

Assinado pelas pesquisadoras Pâmela Rocha Vieira;  Leila Posenato Garcia, e Ethel Leonor Noia Maciel, e publicado na Revista Brasileira de Epidemiologia , o artigo “Isolamento Social e o aumento da violência doméstica – o que isso nos revela?” abuscam examinar dados, ainda incipientes, publicados pela imprensa de diversos países, bem como relatórios de organizações internacionais e organizações voltadas ao enfrentamento da violência doméstica. Em paralelo, realiza-se uma breve revisão de literatura com autores que discutem o papel social da mulher, historicamente destinada ao espaço doméstico. O texto foi publicado também a seção Covid-19, do Blog SciELO em Perspectiva.

Leia abaixo na íntegra e confira na publicação original, na página da RBE, no repósito SciELO:

Isolamento social e o aumento da violência doméstica: o que isso nos revela?
Pâmela Rocha Vieira*;  Leila Posenato Garcia**; Ethel Leonor Noia Maciel*

A violência contra a mulher é um fenômeno global. Uma a cada três mulheres em idade reprodutiva sofreu violência física ou violência sexual perpetrada por um parceiro íntimo durante a vida, e mais de um terço dos homicídios de mulheres são perpetrados por um parceiro íntimo1. O isolamento social imposto pela pandemia da COVID-19 traz à tona, de forma potencializada, alguns indicadores preocupantes acerca da violência doméstica e familiar contra a mulher. As organizações voltadas ao enfrentamento da violência doméstica observaram aumento da violência doméstica por causa da coexistência forçada, do estresse econômico e de temores sobre o coronavírus2.

Embora as evidências a respeito dos impactos do isolamento sobre a violência doméstica e familiar sejam incipientes, notícias divulgadas na mídia e relatórios de organizações internacionais apontam para o aumento desse tipo de violência3. Na China, os registros policiais de violência doméstica triplicaram durante a epidemia4. Na Itália5, na França6 e na Espanha7 também foi observado aumento na ocorrência de violência doméstica após a implementação da quarentena domiciliar obrigatória.

No Brasil, segundo a Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos (ONDH), do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), entre os dias 1º e 25 de março, mês da mulher, houve crescimento de 18% no número de denúncias registradas pelos serviços Disque 100 e Ligue 1808. No país, o necessário isolamento social para o enfrentamento à pandemia escancara uma dura realidade: apesar de chefiarem 28,9 milhões6 de famílias, as mulheres brasileiras não estão seguras nem mesmo em suas casas.

Dos 3.739 homicídios de mulheres em 2019 no Brasil, 1.314 (35%) foram categorizados como feminicídios. Isso equivale a dizer que, a cada sete horas, uma mulher é morta pelo fato de ser mulher. Ao analisar o aspecto vínculo com o autor, revela-se que 88,8% dos feminicídios foram praticados por companheiros ou ex-companheiros7. Assim, é comum que as mulheres estejam expostas ao perigo enquanto são obrigadas a se recolherem ao ambiente doméstico.

No isolamento, com maior frequência, as mulheres são vigiadas e impedidas de conversar com familiares e amigos, o que amplia a margem de ação para a manipulação psicológica. O controle das finanças domésticas também se torna mais acirrado, com a presença mais próxima do homem em um ambiente que é mais comumente dominado pela mulher. A perspectiva da perda de poder masculino fere diretamente a figura do macho provedor, servindo de gatilho para comportamentos violentos.

A desigual divisão de tarefas domésticas, que sobrecarrega especialmente as mulheres casadas e com filhos, comprova como o ambiente do lar é mais uma esfera do exercício de poder masculino. Na maioria das vezes, a presença dos homens em casa não significa cooperação ou distribuição mais harmônica das tarefas entre toda a família, mas sim o aumento do trabalho invisível e não remunerado das mulheres9. Durante o isolamento social, seja em regime de home office, seja na busca pela manutenção de uma fonte de renda no trabalho informal, o trabalho doméstico não dá folga. Pelo contrário, aumenta à medida que há mais pessoas passando mais tempo em casa.

A construção do estereótipo de gênero feminino associa as mulheres à sensibilidade, às capacidades instintivas e intuitivas, opondo-as às questões universais, racionais, políticas e culturais. Desse modo, elas são destinadas à devoção pelo particular: o amor familiar, os cuidados domésticos, os projetos de maternidade9. Esse senso comum impede a distribuição justa das responsabilidades domésticas.

Os problemas elencados aqui, bem como muitas outras desigualdades que nos assolam, não são novidades trazidas pela pandemia da COVID-19. De forma tensa, vivemos a exacerbação de problemas que nos acompanham, reforçados por modelos de pensamentos retrógrados, misóginos e de ataque ao papel do Estado, encolhendo políticas públicas que seriam fundamentais para enfrentarmos de maneira mais justa o contexto da pandemia.

Lutar contra a máxima popular “em briga de marido e mulher, não se mete a colher” é um desafio urgente à nossa sociedade. O sentimento de posse do homem sobre a mulher e a naturalização da violência cotidiana, especialmente a invisibilização da violência simbólica10 sofrida por nós, têm em comum as raízes de uma sociedade patriarcal, androcêntrica e misógina. Desfrutar o lar como um ambiente seguro, de descanso e proteção deveria ser um direito básico garantido, mas na prática ainda é um privilégio de classe e de gênero.

Globalmente, assim como no Brasil, durante a pandemia da COVID-19, ao mesmo tempo em que se observa o agravamento da violência contra a mulher, é reduzido o acesso a serviços de apoio às vítimas, particularmente nos setores de assistência social, saúde, segurança pública e justiça. Os serviços de saúde e policiais são geralmente os primeiros pontos de contato das vítimas de violência doméstica com a rede de apoio. Durante a pandemia, a redução na oferta de serviços é acompanhada pelo decréscimo na procura, pois as vítimas podem não buscar os serviços em função do medo do contágio.

Para contornar essas dificuldades e acolher as denúncias de violência doméstica e familiar, o MMFDH lançou plataformas digitais dos canais de atendimento da ONDH: o aplicativo Direitos Humanos BR e o site ouvidoria.mdh.gov.br, que também poderão ser acessados nos endereços disque100.mdh.gov.br e ligue180.mdh.gov.br. Por meio desses canais, vítimas, familiares, vizinhos, ou mesmo desconhecidos poderão enviar fotos, vídeos, áudios e outros tipos de documentos que registrem situações de violência doméstica e outras violações de direitos humanos.

Contudo, o enfrentamento à violência contra a mulher no contexto da pandemia não pode se restringir ao acolhimento das denúncias. Esforços devem ser direcionados para o aumento das equipes nas linhas diretas de prevenção e resposta à violência, bem como para a ampla divulgação dos serviços disponíveis, a capacitação dos trabalhadores da saúde para identificar situações de risco, de modo a não reafirmar orientação para o isolamento doméstico nessas situações, e a expansão e o fortalecimento das redes de apoio, incluindo a garantia do funcionamento e ampliação do número de vagas nos abrigos para mulheres sobreviventes. As redes informais e virtuais de suporte social devem ser encorajadas, pois são meios que ajudam as mulheres a se sentirem conectadas e apoiadas e também servem como um alerta para os agressores de que as mulheres não estão completamente isoladas. Em países como França e Espanha, as mulheres vítimas de violência têm buscado ajuda nas farmácias, usando palavras de código para informar sobre a situação de violência11.

Para o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher no contexto da pandemia, todas as estratégias citadas são válidas e complementam-se. O isolamento social nesse momento é imprescindível para conter a escalada da COVID-19 no Brasil e, assim, minimizar a morbidade e a mortalidade associadas à doença. O Estado e a sociedade devem ser mobilizados para garantir às mulheres brasileiras o direito a viver sem violência. Embora estejam alijadas aos processos de tomada de decisão, as mulheres são a maioria da população brasileira e compõem a maior parte da força de trabalho em saúde. Logo, elas têm papel fundamental para a superação da pandemia e de suas graves consequências sanitárias, econômicas e sociais.

Fonte de financiamento: nenhuma.

*  Universidade Federal do Espírito Santo – Vitória (ES), Brasil.
** Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Diretoria de Estudos e Políticas Sociais – Brasília (DF), Brasil.

REFERÊNCIAS

1. Stöckl H, Devries K, Rotstein A, Abrahams N, Campbell J, Watts C, et al. The global prevalence of intimate partner homicide: a systematic review. Lancet 2013; 382(9895): 859-65. Disponível em https://doi.org/10.1016/S0140-6736(13)61030-2  

2. Suíça. Global Rapid Gender Analysis for Covid-19 [Internet]. Care International / International Rescue Committee; 2020 [acessado em 5 abr. 2020]. Disponível em: https://www.care-international.org/files/files/Global_RGA_COVID_RDM_3_31_20_FINAL.pdf  

3. Peterman A, Potts A, O’Donnell M, Thompson K, Shah N, Oertelt-Prigione S, et al. Pandemics and Violence Against Women and Children [Internet]. Center For Global Development; 2020 [acessado em 28 mar. 2020]. Disponível em: https://www.cgdev.org/sites/default/files/pandemics-and-violence-against-women-and-girls.pdf  

4. Wanqing Z. Domestic Violence Cases Surger During COVID-19 Epidemic. Sixth Tone [Internet] 2020 [acessado em 28 mar. 2020]. Disponível em: Disponível em: https://www.sixthtone.com/news/1005253/domestic-violence-cases-surge-during-covid-19epidemic  

5. La Provincia. Coronavirus: casi di violenza sulle donne raddopiatti in emergenza. La Provincia [Internet] 2020 [acessado em 28 mar. 2020].  Disponível em: https://www.laprovinciacr.it/news/italia-e-mondo/244892/coronavirus-casi-di-violenza-sulle-donne-raddoppiati-in-emergenza.html 

6. Euronews. Domestic violence cases jump 30% during lockdown in France. Euronews [Internet] 2020 [acessado em 28 mar. 2020].  Disponível em: https://www.euronews.com/2020/03/28/domestic-violence-cases-jump-30-during-lockdown-in-france 

7. Reuters. Calls to Spain’s Gender Violence Helpline Sharply During Lockdown. The New York Times [Internet] 2020 [acessado em 1º abr. 2020]. Disponível em:   https://www.nytimes.com/reuters/2020/04/01/world/europe/01reuters-health-coronavirus-spain-domestic-violence.html 

8. Brasil. Coronavírus: sobe o número de ligações para canal de denúncia de violência doméstica na quarentena [Internet]. Brasil: Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos (ODNH), do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH); 2020 [acessado em 28 mar. 2020]. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2020-2/marco/coronavirus-sobe-o-numero-de-ligacoes-para-canal-de-denuncia-de-violencia-domestica-na-quarentena

9. Federici S. O Ponto Zero da Revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante; 2019. 

10. Bourdieu P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2002. 

11. Kottasová I. Women are using code words at pharmacies to escape domestic violence during lockdown. CNN [Internet] 2020 [acessado em 6 abr. 2020]. Disponível em: https://edition.cnn.com/2020/04/02/europe/domestic-violence-coronavirus-lockdown-intl/index.html 

Associe-se à ABRASCO

Ser um associado (a) Abrasco, ou Abrasquiano(a), é apoiar a Saúde Coletiva como área de conhecimento, mas também compartilhar dos princípios da saúde como processo social, da participação como radicalização democrática e da ampliação dos direitos dos cidadãos. São esses princípios da Saúde Coletiva que também inspiram a Reforma Sanitária e o Sistema Único de Saúde, o SUS.

Pular para o conteúdo