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‘Já tivemos parlamentares que compreendiam e defendiam o SUS, não temos mais’ diz Ligia Bahia

 Inês Costal e Patrícia Conceição / do Observatório de Análise Política em Saúde

A entrevistada do mês de março do Observatório de Análise Política em Saúde – OAPS acompanha de perto a presença, cada vez maior, do setor privado na saúde. Ligia Bahia, doutora em Saúde Pública, médica e docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro da Comissão de Política, Planejamento e Gestão em Saúde da Abrasco, fala sobre as mudanças na privatização da saúde – “tem uma dominância financeira que está em todos os pontos do sistema” – e os desafios de investigar e analisar a movimentação financeira do setor privado, além de contrapor o discurso que opõe os setores privado e público, creditando ao primeiro qualidade e excelência.

Na entrevista a pesquisadora também comenta a relação de empresas com os poderes Executivo e Legislativo e critica a falta de uma bancada da saúde com melhor atuação: “Nós já tivemos parlamentares que compreendiam o SUS, defendiam, que estavam à frente desse processo, não temos mais. Nossos parlamentares não se comportam como sanitaristas, se comportam na defesa de interesses diversificados. E esse não é um problema do Legislativo, também é o nosso problema”.

OAPS: Alguns especialistas têm apontado mudanças na privatização da saúde – de elementos mais perceptíveis, como as Parcerias Público-Privadas (PPS), Organizações Sociais (OS) e o mercado de planos privados de saúde, para novas formas do capital intervir e ganhar dinheiro na saúde que envolvem sucessivas intermediações e dominância financeira. Como se dá esse processo?

Ligia Bahia: Nós somos um desses grupos de pesquisa que tem se dedicado a [estudar] isso. O que temos observado? Mudanças muito grandes na fisionomia do setor privado no Brasil, do setor privado assistencial, mudanças bastante intensas e, nesse momento, temos uma espécie de descrição, ainda uma análise insuficiente: a gente sabe descrever, mas não explicar. Notamos que a gente pensava que havia uma espécie de um [setor] privado dentro do SUS e um privado fora do SUS. Depois notamos que não é bem assim. Por exemplo, várias dessas Organizações Sociais (OS) são de grupos econômicos grandes, a rede D’Or tem uma OS, o Hospital Sírio-libanês tem uma OS, o Hospital Albert Einstein tem uma OS e essas OSs realizam outros contratos, é o contrato do contrato. Então uma OS pode contratar uma empresa de diagnóstico, que pode ser a sua própria – alguns desses grupos têm empresa de diagnóstico, outros não – mas eles contratam uma empresa de diagnóstico privada de maneira que essa tessitura, esse entrelaçamento entre o que nós estamos chamando de grupos econômicos, é muito intensa e é muito diferente do que era o processo de privatização anterior. O processo anterior era que o INAMPS [Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social] comprava serviço privado, mas agora não é isso. Há um repasse de recursos do [setor] público para o privado e esse privado compra serviços privados. Então, na realidade, é um processo de intermediação bem mais sofisticado para se entender qual é esse fluxo de capitais afinal de contas. Nós começamos a pensar assim, essa ideia que tem uma interiorização, que tem um SUS, tem uma privatização por dentro do SUS e uma privatização por  fora do SUS, não é mais isso. Na realidade tem um intenso processo de privatização no Brasil e ele domina tudo, daí esse conceito de dominância financeira. Tem uma dominância financeira que está em todos os pontos do sistema. Então não é mais possível você atribuir às OSs ou à Medicina Diagnóstica ou ao hospital privado. Na realidade tem um entrelaçamento entre tudo isso, são os mesmos e o que nós notamos também é que nas agendas políticas eles se uniram.

Hoje a gente tem uma entidade que se chama Instituto Coalizão Saúde, olha o nome, “Coalizão Saúde”, nome perfeito, melhor do que esse só dois desses, né? E esse Instituto Coalizão Saúde reúne a indústria farmacêutica, os grandes hospitais privados, as OSs, a indústria de equipamentos, a Medicina Diagnóstica, reúne esse processo de privatização das escolas médicas, eles estão ali e apresentaram, inclusive, um documento, é um documento muito importante para a gente compreender. Então, tem uma interface econômica que a gente já falou um pouco e tem essa política. Eles estão propondo que haja uma articulação público-privado. Veja, eles definem como será o sistema, o sistema será assim. Eles não estão propondo mais uma agenda particular dos interesses do capital, não é isso. Eles pretendem ser representantes do [sistema] universal, é um panorama muito diferente daquele anterior, não é uma herança do passado. Não é porque o sistema de saúde brasileiro tem uma herança privada. Ok, nós temos uma herança, mas isso não é uma herança, é um novo formato, uma nova articulação política.

Inclusive, é novo porque são grandes grupos econômicos que hoje estão na saúde. As empresas de saúde aparecem nas publicações especializadas no quinto lugar entre as maiores empresas do Brasil, aparecem no centésimo lugar, tem uma OS que se apresenta como uma grande empresa. Então não é uma relação que a empresa estabelece com a Secretaria de Saúde, é muito mais do que isso. Não é uma relação que está estabelecida entre entes públicos e que então ‘basta a gente eleger um novo governador, está resolvido’. Não, não está porque esse imbricamento, por isso então que a gente tem utilizado esse conceito de dominância financeira, porque tem um imbricamento que é bastante complexo e seria a realização do capital, como se capitaliza, e ocorre em todos os pontos do sistema. Tem capitalização no SUS, na Atenção Básica e fora dela, tem capitalização que é, digamos assim, dinamizada pelos planos de saúde, tem capitalização nos medicamentos porque hoje as farmácias e drogarias também são grandes grupos econômicos, tem então a indústria de medicamentos na indústria farmacêutica.

Esse processo tem sido conceituado como processo de dominância financeira porque na realidade é o modo do capitalismo, é como o capitalismo se organiza, ele não pode ser localizado aqui ou ali. Eu acho que temos que enfatizar essas duas dimensões, tanto a econômica quanto a política, porque ajuda a explicar. Veja, não só estão imbricados economicamente como criaram essa instituição que tem esse nome que é muito elucidativo – Coalizão Saúde.

OAPS: Qual foi o impacto da aprovação da entrada do capital estrangeiro na saúde sobre esse fenômeno?

Ligia Bahia: O capital estrangeiro já estava, nós temos que reconhecer isso, e havia uma preocupação dos empresários, desses grandes grupos econômicos, porque poderia ser contestado juridicamente. Tem um contexto que naquele momento o Brasil vinha crescendo, o mercado de planos de saúde vinha crescendo, os investimentos do setor privado vinham crescendo de maneira muito acelerada, uma perspectiva de atração dos fundos internacionais de investimento. Eu penso que quando os empresários reivindicaram isso nós estávamos em uma conjuntura diferente de quando a lei foi aprovada porque quando foi aprovada a gente já estava em plena recessão.

Mas, de qualquer maneira, tem impacto porque os fundos internacionais continuam sendo atraídos para cá e agora a gente tem mais fundos internacionais, tem fundos internacionais em todos esses setores, inclusive porque a lei permite até que os fundos internacionais participem do setor filantrópico. Então veja, houve um momento em que todos os escritórios de advocacia faziam palestras sobre como atrair capital estrangeiro.

Esse momento passou, mas os capitais estrangeiros continuam e a gente está estudando, a gente sabe quais são os principais fundos, qual o tempo de duração desses fundos porque é um capital de curto prazo, quer dizer, entra e sai, entra e sai, a gente tem acompanhado esse processo porque ele é muito predatório, rentista, nesse sentido da descontinuidade e que para a saúde é dramático porque na saúde a gente precisaria justamente de continuidade, continuidade das políticas, dos programas. Hoje tem uma presença bem significativa de fundos estrangeiros e a lei ajudou porque oferece essa garantia, essa estabilidade jurídica que anteriormente não existia. Hoje nós temos empresas estrangeiras, capitais estrangeiros e, pasmem – muito interessante e dá vontade de chorar – agora tem essa empresa estrangeira, que é a Amil, dizendo que vai investir em clínica popular. Essa é a dominância financeira, é um capital que vai andando por onde houver rentabilidade, pode ser clínica popular, pode ser impopular, pode ser atendimento odontológico, farmácia e drogaria, eles vão andando por aí, entrando e saindo, de maneira que a gente não tem mais instabilidade jurídica para eles, mas instabilidade para nós, para a população. Como é que a gente pode ter um sistema de saúde baseado nesse tipo de investimento rentista, curto-prazista, sem nenhum compromisso com meta sanitária, nenhum compromisso? O que é espantoso é que a lei foi aprovada, e para nossa tristeza foi aprovada pelo governo Dilma, e ela muda a Lei Orgânica da Saúde, que para nós tem um valor em si, um valor de luta, um valor da nossa organização. Mudou a Lei Orgânica da Saúde e não há nenhuma exigência para participação desse capital estrangeiro, pode ser o que for. Eu imagino que em outros países ou em outros setores o capital estrangeiro seja regulado de alguma maneira, na saúde não, pode tudo, pode empresa, pode capital, pode sair daqui, entrar ali, não há nenhum compromisso, nem de certa permanência. Eu acho que foi uma lei totalmente infeliz porque no momento de já intensa privatização é mais um estímulo. Acho que a política deveria ter sido exatamente ao contrário, desestimular a privatização, mas não, ela foi nessa direção e além de tudo se tem uma lei muito de país-quintal que não é capaz de estabelecer blindagens. Claro que nós sabemos, não somos ingênuos, que existe a globalização, que existe trânsito de capitais, etc, mas que cada país, que cada legislação, de alguma maneira, protege, não é uma questão de mercado interno, mas protege a população.

OAPS: O que as evidências científicas revelam em relação aos efeitos do investimento estrangeiro na saúde sobre os sistemas de saúde?

Ligia Bahia: Nós não temos, aqui no Brasil, uma avaliação de impacto. Nos sistemas de saúde não é bem assim, não são todos os países que atraem capital estrangeiro da mesma forma. Na realidade nós já tínhamos uma base anterior para atrair esses capitais estrangeiros: muitos hospitais privados, farmácias e drogarias, o acesso aos medicamentos sempre foi fundamentalmente privado, baseado no orçamento das famílias, setor privado implementado, hospitais, planos de saúde. E nós somos um país grande de renda média. Veja, a gente tem 30% da população com plano de saúde, é muita gente. Para quem é investidor, isso é muito. Nós temos grandes hospitais privados hoje no Brasil que compram equipamentos e nesses lugares essa realização do capital ocorre.

Quais são os países que têm essa característica? Não todos e, portanto, não são todos os países que atraem esses fundos de investimento, são alguns países. Eu acho que o Brasil é um país destacado nesse processo porque naquele momento, inclusive, era super atraente já que o mercado de planos de saúde aumentava, estava aumentando a formalização do emprego e com o aumento da formalização mais pessoas comprando planos de saúde, às vezes as próprias empresas ofereciam. E novos hospitais privados, reforma de hospital privado, ampliação de hospital privado e farmácias e drogarias vendendo mais. Eu acho que essas condições foram muito decisivas, inclusive para a aprovação da lei. Para eles era importante aprovar a lei exatamente para aumentar esse afluxo de capitais no Brasil.

O que a gente tem é a movimentação disso, a gente não tem qual o impacto. Agora nós sabemos quanto cada empresa teve de lucro, quanto cada empresa acaba comprando títulos da dívida pública, porque é um ciclo, essas empresas têm um componente financeiro muito grande, então para elas interessa muito mais o valor da ação, o valor da taxa de juros, do que a sua parte operacional, digamos assim. As empresas vêm diversificando suas atividades. O exemplo que eu dei, a Amil, você acha que é uma empresa de planos de saúde? Não. Ela tem laboratório, Dasa é o laboratório da Amil; tem hospitais, tem um grupo hospitalar chamado Ímpar, também uma característica da financeirização; agora a Amil vai ter clínica popular.

Então veja, não é uma empresa de plano de saúde, é um grupo econômico com diversas ramificações e, certamente, pode também investir em outros setores, não precisa ser só em saúde. Algumas dessas empresas investem em educação, por exemplo. Alguns desses grupos econômicos estão abrindo faculdade privada de medicina, como o grupo D’Or. O céu é o limite, também é outra característica da financeirização. Essa ideia que as finanças se movem é um processo diferente daquele capitalismo mais tradicional. Qual é o capitalismo mais tradicional? É preciso que a parte operacional do negócio vá bem. Então, vamos dar um exemplo, seria muito importante para essas empresas que houvesse melhoria das condições econômicas da população para as pessoas terem mais planos de saúde. [Hoje] não, não precisa. Elas continuam com rentabilidade altíssima mesmo que as pessoas percam o plano de saúde. Então nem esse aspecto as mobiliza porque elas realizam o seu lucro com aplicações financeiras. Para nós é bastante difícil entender porque somos pessoas que não têm nenhuma aplicação financeira, no máximo a gente tem dívida, fica super difícil porque o máximo que a gente entende é de dívida. Somos incapazes de entender que o dinheiro gera dinheiro, para nós é impossível. Nenhum de nós nunca recebeu dinheiro sem trabalhar, então para nós dinheiro é aquilo que a gente trabalha, trabalha, trabalha e recebe e depois não dá para pagar as contas, aí a gente trabalha, trabalha, trabalha, recebe e ainda fica devendo. É um pouco isso que a gente entende. É desafiante para nós, como pesquisadores, se ver diante da necessidade de entrar um pouco nesse mundo das finanças, que não é fácil para a gente, nós não fizemos faculdade de economia. No nosso grupo tem economistas que nos ajudam muito, mas nossa cabeça é muito concreta, muito de funcionário público, é difícil a gente entender, mas a gente está conseguindo, aos poucos estamos indo (risos).

OAPS: O projeto de lei (PL) 7419/2006, em tramitação na Câmara dos Deputados, altera a Lei dos Planos de Saúde e tem sido criticado por entidades, pesquisadores/as e militantes em defesa do Sistema Único de Saúde (SUS). Quais as consequências da aprovação desse projeto para o SUS?

Ligia Bahia: Primeiro, a gente acha que esse projeto não vai ser aprovado, com a graça de todos os deuses do céu, do inferno, porque esse projeto é muito perigoso para nós do SUS, para nós que pensamos que o SUS é a alternativa do sistema de saúde brasileiro. Porque a ideia é que a gente entre naquela via da cobertura universal, não do sistema universal. Como é que seria? Ah, quem pode pagar tem um planinho, um planinho qualquer, e quem não pode pagar tem o SUS também básico, tudo básico, né? Não é esse o sistema que nós pensamos, não é esse sistema que foi aprovado pela Constituição e não é essa a melhor resposta para os problemas de saúde no Brasil. A melhor resposta para os problemas de saúde no Brasil é o SUS. Nesse sentido, esse projeto foi concebido pelos empresários ainda no governo Dilma, conseguiram uma reunião com a presidente, eles vêm perseguindo esse objetivo há bastante tempo. Por que é um objetivo para eles? Porque se tiver plano popular eles aumentam seus negócios, mais gente vai ter plano de saúde. O que vai acontecer com essas pessoas não vai ter a menor importância, mas eles venderão mais planos.

Com o golpe e com a ida do ministro Ricardo Barros para o Ministério da Saúde ficou bem mais fácil porque o Ricardo Barros passou a defender, foi o primeiro ministro da Saúde, eu acho que do planeta Terra e de toda a galáxia, que é capaz de dizer enquanto ministro da Saúde que é melhor ter plano. Sinceramente, inacreditável, Ricardo Barros ‘o inacreditável’, é i – n a – c r e – d i – t á – v e l . Mas ele criou um grupo de trabalho no qual as empresas participavam fortemente, nós, as entidades da Reforma Sanitária, pesquisadores, não estávamos nesse grupo de trabalho que apresentou a proposta de plano popular. De qualquer maneira, a ideia é diminuir cobertura e diminuir preço, nós fomos contra esse plano popular, apresentamos nossos argumentos onde nós pudemos entrar, onde nos foi possível. Quando o projeto foi para o Congresso Nacional passou a ser relatado pelo Rogério Marinho (PSDB). Rogério Marinho é outra coisa inacreditável porque foi o relator da reforma trabalhista. O Rogério Marinho vinha fazendo carreira de relator bem-sucedido, e nós tivemos, eu acho, muita sorte, muita sorte porque ele errou na mão quando propôs aumento para os idosos. O Mário Scheffer, que é uma pessoa extremamente sensível em propor como nós devemos falar, o que devemos falar, imediatamente disse: ‘É aí, vamos contra o aumento deixa o resto, mas vamos contra o aumento”. Fizemos isso e, olha que interessante, não fomos nós que fizemos, teve um aposentado de uma associação que fez um abaixo-assinado que imediatamente teve milhares de assinaturas contra o projeto e o Rogério Marinho. Então não fomos nós, os chatinhos, pesquisadores que somos, tecnicamente…não. Pegou mal esse aumento para os idosos e da nossa parte nós só concordávamos.

Os aposentados foram no Congresso Nacional reclamar, disseram que aquilo era impossível, essa foi a primeira sorte. A segunda sorte, por incrível que pareça… Rogério Marinho é um relator bem sucedido, certo? Quem consegue aprovar aquela reforma trabalhista aprovaria esse projeto, a gente está numa correlação de forças muito desfavorável. Não estou dizendo que é sorte porque alguma competência técnica, profissional, nós temos, mas isso era insuficiente para ser contra o Rogério Marinho. Então a outra sorte que nós demos é que os médicos implicaram com o projeto porque propunha uma segunda opinião e as entidades médicas foram contra, olha que beleza! Então nós [apoiamos], ‘realmente, não pode ter segunda opinião’. E mais tarde as empresas brigaram entre si, também sensacional. Hoje a Abramge [Associação Brasileira de Planos de Saúde], a entidade que representa as empresas de medicina de grupo, entre as quais Amil, as Unimed’s, entre outras, está propondo o arquivamento do projeto. Então, ufa, esse bode saiu da sala! Todos os outros ficaram, mas o bode saiu da sala. Porque talvez fosse um bode.

Claro que o processo de privatização continua, está muito bem, obrigado. Não é que com isso a gente não vai ter privatização, não vamos nos iludir, mas pelo menos a legislação não fica tão feia. Porque ia ser feio esse projeto ser aprovado, ia ser igual ao capital estrangeiro, é feio, fere esse processo de construção que a gente vem tão duramente lutando. Então, ufa, ufa! Eles virão aí de novo, certamente, mas, não assim. Eu acho que é importante para a gente, como pesquisador, pessoas que militam nessa área do movimento da Reforma Sanitária, ver que eles também erram. Eles erraram, é importante que a gente veja os pontos frágeis do inimigo. A gente tem que tentar e tentar e contar um pouco com esses elementos e apoios inesperados como esses dos aposentados e das entidades médicas. Eu estou muito feliz porque, como a gente estuda isso há muito tempo, a gente diz que ia ser um horror esse mundo dos planos populares. O mundo dos planos é um horror, o mundo dos planos populares ia ser filme de terror

OAPS: O lobby do setor privado na saúde tem conseguido mobilizar o Poder Legislativo para aprovação de medidas que vão de encontro ao direito à saúde, como a aprovação da entrada do capital estrangeiro na saúde, leis que desautorizam a Anvisa – Agência de Vigilância Sanitária e o projeto de lei que altera a Lei dos Planos de Saúde, além de iniciativas que atentam contra direitos sociais de forma mais ampla. Essa relação de empresas da área da saúde e o Congresso tem sido mais explícita e mais perigosa?

Ligia Bahia: Pois é, excelente pergunta. Sabe que estou escrevendo um texto sobre isso? Não sei. Posso te dizer assim, é importante entendermos que não é só no Legislativo. Só para a gente compreender, a Lei do Capital Estrangeiro foi votada com acordo de lideranças, sendo que o PT naquele momento tinha força política no Congresso. Acordo de lideranças, ACORDO, não houve divergência, não foi para o Plenário, entenderam?

É grave. Então essa articulação está vindo pelo Executivo, foi proposta pelo Executivo. Os lobbys existem, mas eu diria também que está tudo dominado, não é só no Legislativo, é no Executivo, é no Ministério da Fazenda, no Ministério do Planejamento, é no Cade [Conselho Administrativo de Defesa Econômica], o órgão de defesa da concorrência. Tem presença em tudo e isso é uma questão. A outra que eu acho que a gente tem que levar em consideração nessa tua pergunta é que o Legislativo indica os cargos do Executivo, então essa relação Executivo-Legislativo é muito forte. Quem foi que indicou o ministro Ricardo Barros? O partido PP. Quem foi que indicou os cargos da Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária]? O senador Eunício Oliveira (PMDB), do Ceará. Então assim, é muito difícil no Brasil, nesse momento, a gente distinguir o lócus do lobby. Minha hipótese é que o principal lócus do lobby é o Executivo, não é o Legislativo. É uma hipótese, uma conjectura, eu não tenho evidências sobre isso, mas eu penso que sim porque tem o BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social], tem processos de privatização que correm e são muito importantes.

Os créditos que o BNDES libera para o setor privado foram uma proposta de um deputado de quinta categoria do interior do Maranhão. Eu acho que essa explicação não é suficiente, a gente tem um processo que é muito mais articulado e muito mais penetrante, é muito mais penetrado no Estado brasileiro, não estou nem falando do governo, mas no Estado brasileiro, do que atribuir isso tudo ao Legislativo. Essa é uma questão. A outra é que eu não sei se esse Legislativo é muito pior do que qualquer outro. O que eu sei e vou comentar, acho que vale a pena a gente explorar, é que nós não temos uma bancada da saúde decente, inclusive com deputados eleitos do seu estado, né? Nós não temos. Por exemplo, nesse processo todo da luta e da nossa pequena participação contra o plano popular, nós não contamos com o apoio de sanitaristas que foram eleitos, nós contamos com o apoio de um deputado do PT, um deputado do PSOL, um do PC do B, um da Rede, mas quase apoios personalizados, isolados. Nada que fosse significativo do ponto de vista de termos uma bancada. Nós já tivemos, já tivemos parlamentares que compreendiam o SUS, defendiam, que estavam à frente desse processo, não temos mais. Nossos parlamentares não se comportam como sanitaristas, se comportam na defesa de interesses diversificados.

E esse não é um problema do Legislativo, também é o nosso problema. Quem é que nós estamos elegendo, com que compromissos, porque de alguma maneira são todos pessoas ótimas. Não é só a qualidade dos deputados, é também como que a atuação parlamentar ocorre. Por que nós não temos uma bancada hoje que seja capaz de estar ali? Por exemplo, a Anvisa, por que nós não temos uma bancada que seja capaz de fazer um pronunciamento, vocês publicarem no Observatório ‘Pronunciamento do deputado tal…’, é porque não tem, né? Não tem, simples assim. Poderia. Por exemplo, esse vexame do Conad [Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas], a aprovação da internação compulsória, da criminalização do usuário. Cadê a repercussão? Cadê um deputado sanitarista que vá para a tribuna. E poderia ter, não poderia? Nada impede, não há censura, né? Pelo menos por enquanto. Eu tenho ficado preocupada com essa localização do problema só no Legislativo, eu acho que a gente precisa refrescar um pouco esse pensamento, sabe? Dizer ‘não, olha só, isso não explica’. Infelizmente, porque se explicasse era mais fácil resolver o problema.

OAPS: Há um forte discurso que afirma tanto que o setor privado é marcado por qualidade e excelência, oposto do setor público, quanto que é de interesse do setor público ajudar o privado, muitas vezes financeiramente, para a melhoria de serviços. Como se contrapor a isso?

Ligia Bahia: É muito forte, muito forte. Sei lá, não sei como se opor, eu sei que ele é muito forte e a gente não tem criado instrumentos para se opor a esse discurso. A gente não tem instrumento de avaliação. Por exemplo, mortalidade por sexo. É maior nos hospitais da rede pública ou é igual? A gente não tem criado esses instrumentos de avaliação de qualidade que poderiam ser importantes para dizer ‘olha, isso não é verdade’. Eu tenho uma intuição muito forte de que não é verdade, que não tem qualidade melhor no setor privado. Eu acho até o contrário, mas a gente não tem evidências sobre isso, seria muito importante ter, por um lado. Por outro lado, a gente também não tem pesquisas populacionais.

Por exemplo, na Espanha tem uma pesquisa que eu acho superimportante que a gente tivesse no Brasil, chama-se Barómetro Sanitario. Esse Barómetro Sanitario é uma pesquisa de opinião e pergunta para as pessoas: “Você prefere um sistema público ou um sistema privado?”. Eu acho que se a gente fizesse essa pergunta no Brasil as pessoas iam preferir o sistema público, mas o que parece é que não, que as pessoas querem o sistema privado. A culpa é das pessoas, a culpa não é do governo, a culpa não é do padrão de Estado que nós temos, a culpa é das pessoas, elas querem o setor privado. Fica essa explicação micro sem que a gente tenha instrumentos mais macros para se contrapor a isso. Eu acho que seria muito importante que a gente os tivesse. Qual é a questão? A questão é que na nossa área de políticas nós não temos pesquisas grandes. Essa pesquisa em que nós estamos está se encerrando, não temos renovação para o financiamento e, embora tenha sido grande, muito importante, todos nós sairemos daqui comemorando e conversando sobre os resultados da pesquisa, ela é pequena perto das outras pesquisas que a área tem. A gente não tem pesquisa populacional sobre política de saúde. O que é uma tragédia, todos os países têm. Por exemplo, a reforma Obama foi acompanhada por pesquisa o tempo todo. Se a população conseguiu ou não conseguiu, qual é a principal fraqueza da reforma, a gente não tem isso, a gente não consegue ter pesquisas.

O que a população pensa afinal de contas? Será que as pessoas querem pagar uma porcaria de um plano de saúde e quando chegar lá não ter atendimento? Nós precisamos fazer essas pesquisas populacionais, esse Barómetro Sanitario hoje é fundamental, a gente não tem argumentos. Qual é o argumento para dizer que o setor público é melhor? Que o SUS é melhor? Onde tá? E também incrementar essa área de qualidade, essa comparação de qualidade, é muito importante, mas precisa de investimento para isso.

Precisamos também de convencimento porque tem uma parte dos sanitaristas que não quer nem saber de setor privado, só quer saber quando fica doente, ou ele ou sua família, mas finge que não existe. Nós não podemos produzir que nem cegonha, ficar enfiando a cabeça na areia o tempo todo, porque há uma competição enorme que o setor privado, que essa privatização, impôs para o SUS o tempo todo dizendo que o SUS é ineficiente, de péssima qualidade, o atendimento é despersonalizado, que as pessoas ficam jogadas nas macas, que demora quatro meses. Mas gente que tem plano de saúde demora quatro meses, todos nós sabemos disso. E o que funciona no SUS não aparece. O que funciona, inclusive bem, não aparece, como o acesso ao medicamento que aumentou, o Programa de Saúde da Família. Não tem visibilidade, o que se torna visível é a falta, falta isso, falta aquilo, falta aquilo outro e a gente não consegue

OAPS: Você é colunista do jornal O Globo há mais de 7 anos. Como e por que se tornou colunista? Você acredita que ter essa visibilidade na mídia é importante para a defesa do direito à saúde?

Ligia Bahia: Como eu me tornei colunista eu não sei, eu acho que foi por um acaso e por sorte. Foi assim, eu dei uma entrevista para o jornal O Globo sobre ressarcimento ao SUS e essa entrevista teve uma repercussão porque eu falei uma frase assim ‘o ressarcimento ao SUS é um lixo’. Naquela época eu nunca tinha dado uma entrevista na minha vida, parecia um lixo e isso virou um não sei o quê. Então achei que estava conversando, como estou conversando aqui com vocês, mas as pessoas queriam me matar quando eu falei que o ressarcimento é um lixo, todo mundo queria me matar, direita e esquerda. Aí, eu tenho dois filhos e um desses filhos tem um amigo que era estagiário do O Globo na época. Liguei para ele e falei ‘Miguelzinho, por favor, será que se eu pedir para escrever um artigo

você consegue tal e tal’. E achei que a resposta ia ser não, obviamente. Por que? Porque a universidade tem um setor de comunicação social que vivia pedindo para a gente mandar artigo para o jornal e o diabo do artigo nunca era publicado. A experiência era essa, vocês sabem disso, pode mandar à vontade que não vai ser publicado nada. Aí o Miguelzinho mandou e-mail: ‘Pode mandar, eles vão publicar’. Aí eu quase morri (risos). Escrevi o artigo e acho que ficou legal. Sabe quando você escreve um artigo e você fala tudo naquele artigo, tudo que eu tinha para falar falei naquele artigo. Que beleza! Nesse meio tempo fui processada pelo CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] e acabei sendo defendida pelo Elio Gaspari, isso foi importante. Se não fosse ele, acho que eu seria processada, já seria uma primeira vítima em uma Lava Jato de outro tipo.

Um dia estou andando na rua e me liga um jornalista e fala ‘Ah, estou te convidando para ser colunista do O Globo’. Aí deixei a bolsa cair (risos). Caracas. ‘Você aceita?’. ‘Aceito, aceito, que honra’. Para você ter uma ideia, eu não entendia nada desse assunto, nada. Depois que me convidou, sexta-feira ele me liga, ‘Cadê o artigo?’. E eu: ‘Mas, como assim o artigo?’ (risos). Porque ele havia dito que o artigo ia ser publicado na segunda-feira e tinha que mandar doze horas antes. Eu falei ‘claro que eu não fiz. A gente não faz tudo de última hora?’. Como ia ter feito na sexta-feira? Eu falei que não tinha o artigo. ‘Não, mas o jornal de segunda fecha na sexta’. Como que eu ia saber isso? Não tinha a menor noção dessa história.

Essa pessoa me convidou, eu não tenho contato com o jornal, não sou contratada pelo jornal, é opinião. Esse tempo todo tem sido publicado o artigo que eu mando, sem nenhum problema. Eles têm direito ao título. No início eu não sabia fazer título, mas agora eu sei, então eu ficava chateada quando mudava meu título sabe? Achava o meu título melhor do que o que eles colocavam (risos). É um acordo totalmente informal, mas o jornal tem direito ao título, até compreendo porque também tem que ser alguma coisa que faça sentido. E mantenho essa coluna, nunca sei até quando porque é um calendário que é enviado para mim e agora já me acostumei, né.

Se é importante? É muito importante e seria importante que outras pessoas fizessem isso também, que a gente ampliasse. No jornal O Globo, em uma época conseguimos ter um espaço para outras pessoas da Abrasco – Associação Brasileira de Saúde Coletiva escreverem. Foi uma época de ouro porque tinha eu e tinha [outros/as], porque se não a gente não cria uma ecologia, fica aquele artigo ali jogado. Não tem diálogo, fica ali muito solitário. Mas é importante, muito importante, porque de alguma maneira tem alguém dizendo ‘teria que ser assim, seria melhor ser assim’ e etc. E para mim acabou sendo confortável. Primeiro aquele nervoso, até hoje eu tenho nervoso, porque eu sou muito xingada. Eu tenho um e-mail para responder [os comentários], às vezes é pesado. Mas, eu já aprendi a responder. No início eu respondia assim, tentava fazer uma resposta argumentativa, agora eu [respondo] ‘agradeço a crítica; Sua crítica é muito importante para mim; Tenho aprendido muito com as críticas’. Já aprendi isso também, a não ficar tão sensível.

Teve uma época em que eu conseguia ter uma agenda, eu pensava ‘vou escrever um artigo sobre isso, sobre aquilo’. Depois perdi isso, não tenho mais. É difícil, você fica assim, qual é o tema? Vai falar sobre o que? Não tem mais o que dizer. Mas, acaba encontrando uma coisa para dizer. Também não sei até quando, mas espero que a gente aumente essa participação. Agora tem o novo Jornal do Brasil [no Rio de Janeiro], não encontraram ninguém da saúde ainda. Eu não conheço os jornalistas, mas tem pessoas do movimento sanitário que sim, então a gente precisa se dedicar um pouco mais a isso.

A gente perdeu esse espaço da Abrasco no O Globo quando o editor que me convidou saiu. A Abrasco tinha quase uma coluna também, várias pessoas aí do ISC [Instituto de Saúde Coletiva/Universidade Federal da Bahia] escreveram durante esse tempo. Obviamente a Abrasco não pode ter uma coluna porque é opinião, mas a gente conseguia assim ‘Zika, aí alguém escrevia sobre a Zika. Agrotóxico, alguém escrevia sobre agrotóxico’. Eu Fiquei. Acho que eu já sou móveis, utensílios ou alguma coisa desse tipo. Eu quero continuar, mas nunca sei se vou, aí quando chega o último calendário eu escrevo o último artigo, uma despedida, uma homenagem… (risos)

Eu acho que nossos textos não são muito divulgados, eu fico sempre com medo, por que vai manter? Tem uns [colunistas] que têm muitos seguidores, muita gente lê, como se fossem grandes pop stars, e nós, obviamente, não, mas podia ser um pouquinho mais. Eu sou criticada por escrever no O Globo também.

OAPS: Pelos colegas?

Ligia Bahia: Pelos colegas. ‘Como é que uma sanitarista pode escrever em um jornal que é golpista, mídia PIG, como é que pode ser isso?’ ‘Se estou é porque eu sou contratada, estou ganhando dinheiro, estou me beneficiando’… Nossa, olha que coisa! E não é nada disso. Eu até estou querendo ganhar dinheiro, mas onde eu estou o dinheiro sai (risos).

OAPS: Nessas respostas que você recebe, alguma coisa te surpreendeu ou te marcou positiva ou negativamente?

Ligia Bahia: Mais negativamente. Pessoas muito irritadas – ‘você não sabe o que está fazendo’; ‘eu trabalho nesse plano de saúde, você é uma irresponsável’. O Globo já atendeu dois direitos de resposta, um que foi uma coluna contra mim, me avisaram. E outra foi uma carta também publicada no jornal e eu respondi, quatro linhas, mas eu pude responder, também tive esse direito. Claro, essas empresas são muito poderosas, eles estão colocando artigos toda hora no jornal, não sei se vocês têm acompanhado, eles estão se tornando colunistas, intelectuais orgânicos no sentido gramsciano. A nossa sorte, eu acho que é uma sorte, é que eles não são bons. Temos que contar com essa sorte porque acho que somos mais criativos, acho que nós temos uma visão de mundo mais abrangente

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