Ligia Bahia, professora no IESC – Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro da Comissão de Política da Abrasco, publicou no jornal O Globo desta segunda-feira, 2 de julho, o artigo Jogo de azar. Nele, a professora evidencia o plano acessível aprovado pelo ex-ministro Ricardo Barros como um esquema assistencial ilusório: – “na prática engrossa o fluxo de pacientes para a rede pública e litigações judiciais”. Confira o artigo de Ligia:
A ANS aprovou, por vias tortas, a proposta de planos de saúde acessíveis do ex-ministro Ricardo Barros, que foi barrada pelo Congresso Nacional. A autorização do aumento de 10% para planos individuais e venda de contratos que preveem valores muito elevados de coparticipação ou franquia atendem a demandas empresariais relativas à comercialização de produtos relativamente mais baratos com restrição de coberturas. Ambas as medidas estão direcionadas pela lógica de vender mais planos e reduzir acesso. O reajuste muito acima da inflação expulsa pessoas de planos individuais, que asseguram assistência mais abrangente, e induz a migração para contratos restritos, que estabelecem maior pagamento direto pelos usuários. Mensalidades mais baixas tendem a atrair adesões de pessoas com menor renda aos planos privados. Mas, quem não pode financiar os atuais preços não conseguirá arcar com pagamentos diretos relativamente vultosos para usar serviços de saúde. Portanto, a decisão protege a expansão de mercados para empresas e dificulta a melhoria da saúde. Haverá mais contratos de planos e repressão de demanda para os serviços de saúde. O plano acessível é um esquema assistencial ilusório, na prática engrossa o fluxo de pacientes para a rede pública e litigações judiciais.
Uma simulação ajuda a entender o que irá ocorrer. Quem paga cem reais por mês e tiver que ir à emergência porque se machucou e precisa de dois pontos, e depois topou em uma pedra e apresenta fissura no dedo mindinho, poderá ter que desembolsar mais cem. Os acidentes foram inesperados, ainda assim serão objeto de cobrança adicional, se tornarão eventos tipo “perdeu, doente.” Pacientes com câncer e outras doenças crônicas, e também as gestantes, terão o tratamento limitado aos procedimentos específicos e onde for determinado pela operadora. Poderá haver cobrança na hora da consulta ou exame para uma grávida que precisar atendimento para diabetes ou apoio fisioterápico, ou nutricional, para doentes em tratamento quimioterápico. Não pagamento para quem precisar atendimento será uma exceção. Quase todos terão que botar mais dinheiro do bolso, exceto os poucos que se enquadrarem nos seguintes critérios: ter exatamente uma das poucas doenças franqueadas sem nenhuma comorbidade, dispensar suporte diagnóstico e terapêutico adicional ao tratamento mínimo e obter assistência somente nas unidades indicadas pelas operadoras. Assim, a isenção se limita ao uso de certos procedimentos em estabelecimentos escolhidos mediante critério de menor valor de remuneração, e não melhor qualidade.
A decisão de permitir, por via administrativa, a comercialização de contratos que transferem para os pacientes até 100% nos gastos contraria a lei que regulamentou os planos e seguros de saúde. A legislação foi promulgada para garantir coberturas, e a atual norma concentra-se em definir apenas o que as empresas não pagarão. Regras para a organização de informações sobre as contas individualizadas de cada cliente e emissão das informações sobre o saldo, como e por quem será cobrada a coparticipação, e especialmente as precauções para impedir a desassistência para condições clínicas graves foram negligenciadas. A promessa, “de boca”, de segmentos empresariais de diminuir as prestações em cerca de 20% a 30% para “desonerar” o SUS não justifica revirar a lei de cabeça para baixo. Existem evidências cabais sobre a interdependência entre planos privados e SUS. As filas para a rede pública aumentaram durante a onda de crescimento dos planos. E a recente pesquisa realizada pelo Conselho Federal de Medicina expõe a insatisfação dos entrevistados com a saúde pública (87%) e privada (94%), e sugere a importância do SUS para a maioria (88%).
Portanto, o pensamento sobre os planos acessíveis tem uma concatenação, no mínimo, questionável. Começa com uma teleologia, o SUS deve ser entendido como sistema falido, ruim, nefasto, e jamais se detém nos desafios concretos para a resolução dos problemas de saúde, sejam os mais simples ou os supercomplexos. A salvação para tudo e todos é o plano privado, seja lá o que se passe a entender por plano e por privado.
Plano não é um termo que se aplique a algo que por definição impede qualquer planejamento. A maioria dos problemas de saúde é imprevisível, plano de saúde, digno do nome, é aquele que proporciona alguma tranquilidade financeira em casos de doença. Um sistema de asseguramento para riscos futuros, que prevê o pagamento em dobro durante o mês ou ano, é quase um jogo de azar.
E o “privado acessível” refere-se frequentemente apenas ao receptor das mensalidades do plano, já que o local de atendimento de usuários poderá ser o mesmo que atende ao SUS. Remunerar médicos e procedimentos em unidades de saúde com dupla porta é mais barato, ainda que, durante a coabitação público-privado, os preceitos de concorrência e liberdade de escolha evaporem. Coerência e abertura para o diálogo são rarefeitas na equipe empresarial-política que obteve, no tapetão, permissão para a comercialização do plano acessível, no final de um governo que perdeu rumo e prumo. Quando o jogo é democrático, dificilmente a saúde sai derrotada.