“Quando se funda uma república, ela vem com a aura da fundação, com o vigor, os valores, as ideias. Com o passar do tempo desgasta, e é necessário, sobretudo em contextos adversos, relembrar as inspirações do início. E o caminho para recuperar a democracia no Brasil é a refundação do Sistema Único de Saúde” disse Juarez Guimarães, cientista político, durante o 8 º Simpósio Brasileiro de Vigilância Sanitária (26/11) , em Belo Horizonte. A partir desta linha de pensamento, a palestra de Juarez “Democracia no Brasil e seus reflexos na saúde”, foi um convite: aos jovens, que conheçam os pilares do SUS. Aos fundadores, que revisitem as memórias.
O tempo não é inimigo
Para o professor da Universidade Federal de Minas Gerais, o tempo não é inimigo, é a casa de quem mora na tradição sanitarista e a estrada que reconectará os antigos sonhos – de uma sociedade igualitária, de saúde universal e gratuita – aos novos – a saúde que pensa no todo e também no indivíduo: “Há muitos novos sujeitos andando por aí a procura do SUS – movimentos negros, gays, mulheres, sem terra, indígenas. Precisamos ir ao encontro. Pela tradição sanitarista, nós visitamos os sonhos dos fundadores do SUS, e, antes ainda, os sonhos dos sanitaristas que construíram a primeira sensibilidade de se pensar em política pública, de se pensar no sofrimento do povo brasileiro e de encontrar soluções”, disse à plateia.
Na palestra, dedicada ao patrono da Saúde Coletiva, Sérgio Arouca, Juarez recuperou justificativas consolidadas para o fato do Sistema Único de Saúde não ter atingido, 30 anos após seu fundamento, todo seu potencial como experimento de construção da democracia e reinvenção dos novos direitos para os brasileiros: “A consciência critica da saúde construiu três diagnósticos para os impasses históricos que enredam o SUS: subfinanciamento, sistema mercantil privado, e impasses de gestão”, explicou o professor.
Os estudiosos do campo apontam subfinanciamento como o maior problema a ser enfrentado para a resistência do SUS porque, desde o início, o programa recebeu recursos aquém de sua dimensão. Já a lógica mercantil fortalece o setor privado na saúde – como as empresas de planos de saúde – em detrimento da saúde pública. A terceira linha de argumentação diz respeito às dificuldades de se gerenciar um sistema desenhado com forte participação social, transparência e federalismo em um “Estado que não foi completamente republicanizado”, de acordo com Guimarães.
O pesquisador apontou, referenciando-se na figura histórica de Sonia Fleury, que é necessário unificar estes diagnósticos em um só: o gargalo temporal entre a fundação e a institucionalização do SUS. Isto é, houve uma distância entre a consolidação da Constituição Federal de 1988, que estabeleceu o Sistema Único de Saúde como o marco civilizatório mais importante da sociedade brasileira, e a estruturação do SUS, o que causou uma tensão entre o “fundador programático” do SUS e o “construtor pragmático” do SUS. De novo, recorreu ao tempo: é preciso a reconexão com o ethos da fundação do SUS como “momento decisivo da refundação da própria democracia brasileira”.
Atacar o SUS é trazer a morte para o povo brasileiro
De acordo com Juarez, que pesquisa políticas públicas relacionadas aos Estados do Bem-Estar Social, predominava no pós-guerra uma lógica de construções de direitos, apesar do liberalismo econômico. O neoliberalismo, entretanto, quebra essa dinâmica: ataca a macroeconomia do setor público, provoca um processo de crescimento da privatização e desorganização. Há também a desconstrução da cultura de direitos, porque, para os entusiastas do neoliberalismo, a “liberdade está apartada da ideia de igualdade”, explicou. Por fim, o neoliberalismo ataca a própria democracia: rompe com eleições livres, destrói a possibilidade de construção de direitos públicos, “ataca a economia, a cultura e as instituições políticas ao mesmo tempo”.
Esta desapropriação dos direitos, ainda segundo o professor, corrói as bases do que é considerado dever do Estado, como a saúde. Por isso, a reprogramação do SUS deve estar no centro dos programas de enfrentamento ao neoliberalismo, a exemplo de outros países: “O Partido Trabalhista do Reino Unido [Labour Party] agora posiciona-se fortemente sobre a taxação de grandes riquezas em prol do refinanciamento do National Health System (NHS). Nos Estados Unidos, políticos de oposição colocam em pauta a construção de um sistema sanitário, em meio a maior crise da democracia do país – quando a extrema direita assume a presidência, eleita por Fake News“, afirmou.
Ao falar das práticas neoliberais no Brasil, Juarez citou o ministro da economia Paulo Guedes, que ele chamou de “profeta do apocalipse” (em referência ao artigo de Sonia Fleury, “O adereço de Guedes e o sentido do governo”), e as medidas do atual governo que, somadas à Emenda Constitucional 95, estrangulam o financiamento do SUS e deterioram as condições de vida da população brasileira: “Atacando o programa de prevenção ao HIV/Aids, desorganizando a Estratégia de Saúde da Família, a Vigilância Sanitária… o que trarão se não a peste para os brasileiros? Estão trazendo a fome. A guerra”.
Tensões políticas atravessam o 8 º Simbravisa
As palavras fortes do professor geraram um tensionamento na plateia: enquanto cerca de 400 pessoas permaneceram aplaudindo de pé, aproximadamente 30 simposiastas retiraram-se do espaço, em protesto às críticas direcionadas ao Presidente da República: “As políticas do Bolsonaro são muito afirmativas neste sentido, políticas de violência contra os Direitos Humanos mais básicos, chamando ao armamento livre, à matança livre de culpa. É a política da morte: atacar o SUS é trazer a morte para o povo brasileiro. Não há como resistir sem construir alternativas. Não há como resistir sem derrubar o governo Bolsonaro”.
Ao final da palestra, Gulnar Azevedo e Silva, presidente da Abrasco, agradeceu as palavras de Juarez, lembrando que a Abrasco foi fundada há 40 anos, em plena ditadura militar, e reafirmando o compromisso da entidade com a refundação do SUS e da democracia: “Os fundadores [do SUS] estão de cabelos brancos, mas estão na luta. É nosso dever continuar a luta pelo direito universal à saúde”, concluiu.