Interpretações conflitantes sobre o direito à saúde, conquista do povo brasileiro expressa na Carta de 1988, têm gerado na última década uma epidemia de ações judiciais e uma acirrada disputa conceitual. Esta ocorre entre os gestores de saúde pública, os operadores e doutrinadores do direito, as representações corporativas de saúde e do direito e, mais recentemente, os operadores e prestadores da saúde suplementar. O centro da questão é a definição da integralidade no cuidado à saúde. No mundo jurídico, a repercussão pública do problema encontrou seu ponto de máxima nas audiências públicas realizadas em 2009 no STF. Infelizmente, as conclusões das audiências, expressas no relato final do ministro que as convocou, Gilmar Mendes, não lograram oferecer terreno firme de orientação aos envolvidos, muito embora na minha percepção tenham propiciado uma diminuição da intensidade do debate público.
Entretanto, mais recentemente, o tema parece estar voltando à pauta com intensidade. No meu ponto de vista, isso decorre de: (1) a continuidade do aumento das despesas realizadas pelo SUS no atendimento a demandas judiciais (Na Lei Orçamentária federal de 2014, há uma provisão de R$ 3,9 bilhões para o atendimento a essas despesas); (2) da entrada forte da saúde suplementar como demandada de ações judiciais.
Uma novidade positiva nesse renascimento tem sido o concomitante aumento do diálogo das esferas judicial e sanitária com o objetivo de cotejar pontos de vista e tentar construir um terreno comum de visões e procedimentos. Nele, é central o papel do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), cujo objetivo é o aperfeiçoamento do trabalho do sistema judiciário brasileiro. Penso que está embutida nesse objetivo uma função pedagógica muito importante.
Ainda sob a influência das audiências de 2009, o CNJ instituiu em 2010 o Fórum Nacional do Judiciário para monitoramento e resolução das demandas de assistência à saúde (Fórum da Saúde). Recentemente foi constituído seu Comitê Executivo. Por orientação deste, o Fórum ampliou sua área de atuação para incluir a saúde suplementar e as ações resultantes das relações de consumo.
Em 14 e 15 de maio passado, em São Paulo, este Fórum do CNJ patrocinou a Ia Jornada de Direito da Saúde. Seu objetivo foi “debater os problemas inerentes à judicialização da saúde e apresentar enunciados interpretativos sobre o direito à saúde”. Iniciativa extremamente relevante e localizada no centro dos objetivos do CNJ.
Foi aberta uma consulta pública para receber propostas de enunciados e estes foram selecionados por uma comissão científica organizada pelo CNJ. A resultante das propostas e da seleção foi um conjunto de 45 enunciados destinados a orientar advogados, procuradores, defensores públicos, magistrados, gestores públicos e privados de saúde, prescritores, acadêmicos, etc. quanto às melhores práticas com vistas a garantir os direitos dos demandantes, bem como os possíveis limites normativos e institucionais das demandas. Pela importância do evento e pelas repercussões potenciais que dele podem advir, o exame e a análise dos enunciados são essenciais.
Uma primeira observação, diz respeito à separação dos enunciados destinados às demandas contra o SUS e contra os planos privados de saúde. Razoável supor que diferenças técnicas e procedimentais entre os dois justificassem uma separação parcial dos enunciados, mas razoável também pensar que poderia haver um conjunto comum de enunciados, em particular num certame imerso no universo formal e doutrinário do direito. Mas entendo que essa separação radical no encaminhamento das sugestões sugere a extensão das diferenças para um nível conceitual inaceitável, pois leva a crer que o direito à saúde para os portadores de planos privados seja distinto do direito à saúde dos usuários do SUS, o que não é previsto na Constituição Federal. E, infelizmente, o exame dos enunciados a uns e outros reforça a sugestão. Foram 19 enunciados destinados à ‘saúde pública’ e 17 enunciados destinados à ‘saúde suplementar’ (além de nove enunciados relativos ao ‘biodireito’ que, na minha leitura, talvez ficassem mais bem caracterizados como relativos à bioética).
Uma exegese completa dos 45 enunciados não cabe neste texto, mas alguns comentários são essenciais para o debate. O mais abrangente deles diz respeito ao foco da observação. De um modo geral, os enunciados destinados ao SUS orientam os demandantes de ações quanto aos limites do demandado (SUS). Os enunciados destinados à saúde suplementar orientam os demandantes quanto às prerrogativas dos demandados.
Assim, o enunciado de número 4, destinado ao SUS, reza: “Os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) são elementos organizadores da prestação farmacêutica, e não limitadores. Assim, no caso concreto, quando todas as alternativas terapêuticas previstas no respectivo PCDT já tiverem sido esgotadas ou forem inviáveis ao quadro clínico do paciente usuário do SUS, pelo princípio do art. 198, III, da CF, pode ser determinado judicialmente o fornecimento, pelo Sistema Único de Saúde, do fármaco não protocolizado”.
Os enunciados correspondentes destinados à saúde suplementar, de números 21 e 27, rezam, respectivamente: “Nos contratos celebrados ou adaptados na forma da Lei n.º 9.656/98 [regulamenta os planos de saúde], recomenda-se considerar o rol de procedimentos de cobertura obrigatória elencados nas Resoluções da Agência Nacional de Saúde Suplementar, ressalvadas as coberturas adicionais contratadas” e “As Resoluções n.º 1956/2010 do Conselho Federal de Medicina, n.º 115/2012 do Conselho Federal de Odontologia [regulamentam a prescrição de implantes, órteses e próteses] e o rol de procedimentos e eventos em saúde, vigentes na Agência Nacional de Saúde Suplementar, e suas alterações, são de observância obrigatória”.
A distinção de enfoques é evidente. Na recomendação destinada às ações contra o SUS, a obediência aos protocolos e diretrizes é relativa; na saúde suplementar, o rol de procedimentos é recomendação mandatória. Alguém poderia ponderar que a diferença está em que a previsão do rol de procedimentos é estabelecida em Lei, (bem como as resoluções dos Conselhos Federais, que têm força de Lei) enquanto os PCDT são definidos mediante portarias. Mas isso não procede, haja vista que a Lei 12.401/2011 – 100% ausente dos enunciados – estabelece em seu artigo 1º que a “A assistência terapêutica integral a que se refere a alínea d do inciso I do art. 6o [da Lei 8080/1990, que criou o SUS] consiste na dispensação de medicamentos e produtos de interesse para a saúde, cuja prescrição esteja em conformidade com as diretrizes terapêuticas definidas em protocolo clínico para a doença ou o agravo à saúde a ser tratado”.
Outro comentário relevante diz respeito à diferença de enfoque que aparece com nitidez nos enunciados referentes às precauções a serem tomadas pelos demandantes ao SUS e aos planos de saúde. Nas demandas contra o SUS, o enunciado de número 13 estabelece que: “Nas ações de saúde, que pleiteiam do poder público o fornecimento de medicamentos, produtos ou tratamentos, recomenda-se, sempre que possível, a prévia oitiva do gestor do Sistema Único de Saúde (SUS), com vistas a, inclusive, identificar solicitação prévia do requerente à Administração, competência do ente federado e alternativas terapêuticas”. Destaco a expressão “sempre que possível”, algo etérea na medida em que não são estabelecidas as condições da impossibilidade. Por outro lado, a “prévia oitiva ao setor público” é prática já rotineira e formal realizada como demanda administrativa prévia à formulação da demanda judicial.
Os enunciados correspondentes destinados à saúde suplementar têm os números 23 e 24. Respectivamente, rezam: “Nas demandas judiciais em que se discutir qualquer questão relacionada à cobertura contratual vinculada ao rol de procedimentos e eventos em saúde, editado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar, recomenda-se a consulta, pela via eletrônica e/ou expedição de ofício, a esta agência Reguladora para os esclarecimentos necessários sobre a questão em litígio”; “Cabe ao médico assistente, a prescrição terapêutica a ser adotada. Havendo divergência entre o plano de saúde contratado e o profissional responsável pelo procedimento médico, odontológico e/ou cirúrgico, é garantida a definição do impasse através de junta constituída pelo profissional solicitante ou nomeado pelo consumidor, por médico da operadora e por um terceiro, escolhido de comum acordo pelos dois profissionais, cuja remuneração ficará a cargo da operadora”.
A distância que separa a ‘prévia oitiva ao setor público sempre que possível’ e a recomendação de consulta por via eletrônica e/ou expedição de ofício à ANS e a garantia de uma junta médica para a solução de divergências é oceânica.
O terceiro comentário sobre os enunciados da Jornada é tributário dos outros dois. Trata-se do enunciado 29 e é destinado às demandas da saúde suplementar. Diz ele: “Na análise de pedido para concessão de tratamento, medicamento, prótese, órtese e materiais especiais, os juízes deverão considerar se os médicos ou os odontólogos assistentes observaram a eficácia, a efetividade, a segurança e os melhores níveis de evidências científicas existentes. Havendo indício de ilícito civil, criminal ou ético, deverá o juiz oficiar ao Ministério Público e a respectiva entidade de classe do profissional”. Na hipótese mais suave, um alerta para desestimular prescritores. Na mais dura, uma ameaça aos mesmos. Vale observar que nada parecido está presente nos enunciados dirigidos ao SUS.
Finalmente, registro a minha decepção com a quase ausência da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC), nos enunciados. Para ser preciso ela, que tem sido a expressão maior do esforço do Ministério da Saúde na política de avaliação e incorporação de tecnologias, aparece apenas uma vez no enunciado 33 que, curiosamente, é dirigido à saúde suplementar e não ao SUS.
Fico curioso em saber quais participantes do campo da saúde estiveram presentes. Assim como também fico curioso para saber se as entidades representativas da saúde coletiva, em particular a ABRASCO e o CEBES, foram convidadas. E se o foram, se lá estiveram. O que para mim fica de certeza é que a abordagem da questão produzida pela Jornada não foi das mais felizes. Dela, as prerrogativas e a importância do SUS saem diminuídas. O que de pior pode acontecer nesse tema da judicialização da saúde é as soluções convergirem para a saúde suplementar e o nosso SUS continuar a ser vítima dessa lamentável epidemia.
Clique aqui para acessar a Jornada, onde estão os enunciados. Nele também está a magnífica conferência de abertura do evento, proferida pela Professora Suely Gandolfi Dallari e intitulada “A democracia sanitária e o direito à saúde: uma estratégia para sua efetivação”. Suely foi também a presidente do Conselho Científico da jornada. Entendo, como mais uma homenagem à habitual transparência das atividades do CNJ, que seria positivo que todos conhecêssemos os componentes desse comitê.
Reinaldo Guimarães é médico sanitarista, e atualmente está como 2º Vice-presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades (ABIFINA).