É com o olhar de quem milita há mais de 30 anos em prol da saúde das mulheres negras que Jurema Werneck faz a afirmação-título dessa matéria que anuncia a participação desse nome central de nosso país como a conferencista de abertura do 4º Congresso Brasileiro de Política, Planejamento e Gestão da Saúde.
“Desigualdades e pandemia: que democracia é necessária para um projeto efetivamente includente?” será o nome dessa sessão especial, que acontecerá na terça-feira, dia 23, às 9 horas, com transmissão aberta pela TV Abrasco. A moderação será da presidente da Abrasco, Gulnar Azevedo e Silva.
Com uma extensa trajetória no ativismo, tendo sido uma das fundadoras da ONG Criola, trabalhado e militado como pesquisadora do CEAP e sido conselheira nacional de saúde, Jurema está à frente do escritório brasileiro da Anistia Internacional desde de 2017. Tal cargo tem possibilitado ela acompanhar de perto importantes pautas jurídicas e sociais do país, como o assassinato de Marielle Franco, que completou ontem (14/03) três anos sem resposta.
Formada em Medicina, com mestrado em Engenharia de Produção pela COPPE/UFRJ (2000) e doutorado em Comunicação e Cultura pela ECO/UFRJ (2007), os interesses de Jurema Werneck têm se ampliado e migrado da saúde para a cultura e para o conjunto dos Direitos Humanos, mas sem perder as lentes que permitem sua forte presença e atuação, tanto na militância como na produção intelectual, que pode ser atestada nas obras “Esterilização de mulheres: um desafio para a bioética?” (1995), “O livro da saúde das mulheres negras: nossos passos vêm de longe” (2000), “Under the Sign of Biopolitics: Critical Voices from Civil Society” (2004), “Saúde da população negra” (2005) e, mais recentemente, “O samba segundo as ialodês: mulheres negras e cultura midiática” (2020).
“Esse foi o jeito que consegui aprimorar essas lentes que adquiri e construí na vida. Esse ziguezague formativo diz mais da estrutura da universidade e suas limitações do que sobre mim. Sempre estive olhando para o mesmo objeto: as mulheres negras”, diz Jurema. Confira a entrevista:
Abrasco: O que você trará para a sua Conferência de abertura?
Jurema Werneck: Mais do que uma conferência temática sobre um tema específico, estou pensando em propor num diálogo com as pessoas que pensam e agem em saúde e que estarão presentes no congresso e que juntas possamos refletir sobre os desafios colocados nesta conjuntura.
O pensamento em saúde é muito avançado no Brasil, de alta qualidade. Só que nossa prática, nosso exercício não é. Há razões internas, do corpo de todas e todos as pessoas que fazem saúde; e há uma razão nas causas das causas das desigualdades. Mesmo que o campo da Saúde Coletiva tenha tratado dessas causas nos últimos anos, nossas respostas não estão à altura da inteligência e do que se produziu de pensamento em saúde no país. A inteligência em saúde coletiva precisa radicalizar na sua capacidade de formulação, implementação e produção de respostas.
Abrasco: Essa radicalidade deve dialogar com o momento presente da pandemia?
Jurema Werneck: Não podemos perder de vista as vantagens que este momento traz. Apesar de ser um momento péssimo, nunca houve tanta abertura para se falar de saúde pública para o grande público. A ciência está ocupando uma posição nunca antes na história desse país. Há gente falando de saúe e de ciência o tempo todo na imprensa. Claro, há uma presença maior das áreas clínicas e de base. Precisamos então fazer com que os demais porta-vozes, detentores de outros olhares sobre saúde, também encontrem e consigam espaço nesses canais. Diante dos descalabros que vivemos, há de haver um lugar para a inteligência de saúde coletiva se apresentar e se expressar com mais consistência na esfera pública.
Abrasco: Como a saúde e a militância ganharam este espaço na sua vida?
Jurema Werneck: Fazer medicina não foi uma escolha, um sonho. Na verdade, foi um grande acaso. No último dia da inscrição do vestibular eu ainda não havia decidido que curso fazer, apesar dos esforços de tentar me encaixar em algo. Chegou no último dia, e meu pai precisava ir trabalhar e levar o formulário aos Correios… me perguntou e disse para colocar Medicina.
No entanto, tinha um olhar para a saúde como usuária, como cidadã. Cria de uma família negra de favela, a questão da saúde sempre foi um drama; e tudo isso antes do SUS. Logo, desde o início do curso, olhei a medicina por essa lente da desigualdade. Já nos primeiros períodos me engajei num projeto de extensão numa comunidade semi-rural em Niterói e, em paralelo, o ativismo no centro acadêmico e movimentos sociais. Não é um despertar para o tema. Somente a nossa presença em determinados espaços, antes negados, faz com que tais questões emerjam, pois sabemos na pele o que é injustiça e maus tratos, porque experimentamos, direta e indiretamente; e ainda vivermos tais situações, mesmo com tantas mudanças. Meu olhar carrega e passa por essa lente, pois foi assim que o mundo se apresentou para mim.
Abrasco: Sua produção como escritora diz muito de uma carreira multifacetada. Como entende esse caminho?
Jurema Werneck: Esse foi o jeito que consegui aprimorar essas lentes que adquiri e construí na vida. Esse ziguezague formativo diz mais da estrutura da universidade e suas limitações do que sobre mim. Sempre estive olhando para o mesmo objeto: as mulheres negras. Ao terminar o curso de Medicina desenvolvi uma trajetória ativista no CEAP, quando comecei a escrever sobre o tema da esterilização em massa. Nem sabia que havia bioética, um campo estruturado do conhecimento. A partir de então, fui entrando pelas janelas que permitiam espaço para pensar a vida das mulheres negras. Na engenharia de produção, havia uma área do Programa que debatia tradição e modernidade, com espaço para o tema da ética. Foi quando conheci o Roberto Bartholo Junior e fui sua orientanda na COPPE. Já quando fui para ECO, me vi inspirada pela Toni Morrison (escritora negra norte-americana e a primeira a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura) que destaca em sua obra que o importante são as estratégias para a mudança. Achei isso no samba, que tem uma produção discursiva muito forte das mulheres negras em todos os sentidos, e que é desprezada, sempre vista de forma ingênua; o que não é.
Abrasco: Para encerrar, como a Anistia Internacional vê o trato que a pandemia tem tido do governo brasileiro nos fóruns internacionais?
Jurema Werneck: Temos acompanhado de perto essa tragédia da pandemia e dos Direitos Humanos no Brasil. Somos um dos primeiros países em número de mortos e um dos poucos que tem lideranças negacionistas e incompetentes. Esse somatório leva a esse alto número de mortes, que seguimos contando ao milhares, diariamente. Apesar de eles tentarem, nem a Anistia nem os demais governos confundem-se com os falsos discursos dos representantes do Brasil na arena pública. As bobagens que Ernesto Araújo e Damares Alves falam são mentiras que encontram ouvidos informados e que não se enganam sobre as reais intenções. Eles colocam o governo e a nação em descrédito. No entanto, nós, da Anistia Internacional, organizados em 150 países, e demais entidades brasileiras de defesa dos Direitos Humanos, temos recebido apoio e solidariedade internacional, o que alimenta e amplia nossas articulações, mantendo vivo esse forte desejo de que a gente consiga virar essa página no Brasil. A gente precisa.