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“É fundamental o protagonismo dos movimentos sociais na resposta ao HIV”

Bruno C. Dias

Constatada e consolidada, a atual fase de disseminação do HIV encontra um Brasil com enormes diferenças daquele de meados da década de 1980, quando a epidemia emergiu. No entanto, ainda falta conscientização solidária e corajosa para o devido enfrentamento. Para Kenneth Rochel Camargo, professor titular do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj), um novo ciclo de ação precisa passar diretamente pela atuação dos movimentos sociais e por condições efetivas para o exercício dos direitos à saúde e à informação, requisitos esses que se encontram alijados pelo crescente conservadorismo na sociedade brasileira e pelo subfinanciamento crônico do SUS, ampliado estruturalmente com a Emenda Constitucional 95/2016.

Da quebra da patente às novas formas de tratamento pós e pré-exposição (PEP e PrEP), bem como a inclusão de indicadores sociais, demográficos, étnicos e econômicos para melhor conhecimento das populações mais vulneráveis à epidemia foram avanços importantes, avalia o estudioso do tema há mais de 25 anos. No entanto, são necessárias novas medidas para alcançar impacto significativo diante do fato de a doença ter deixado de ser uma sentença de morte. “É fundamental a retomada do protagonismo dos movimentos sociais e de uma perspectiva fundada em direitos humanos na resposta à epidemia”, diz o abrasquiano, integrante da coordenação do Fórum de Editores em Saúde Coletiva, da Abrasco, e também membro da Associação Brasileira Interdisciplinar de aids (Abia). Confira a entrevista abaixo. A imagem que ilustra a matéria é a performance Contagiar, de Kako Arancibia, que integrou a ação Corpos, HIV e espaço público – arte como ferramenta de informação, apresentada em maio, na cidade de Santos (SP), com impulso do Laboratório Cidadão da Baixada Santista|LABxS.

Abrasco: Você é autor da obra A ciência da Aids e a Aids da ciência, fruto da sua tese de doutorado e na qual discute como a racionalidade médica ocidental contemporânea construiu seus saberes e visões sobre a epidemia. Passados 25 anos, o que mudou no olhar da sociedade sobre o vírus HIV?

Kenneth Rochel Camargo: Do ponto de vista biomédico alargou-se em muito a compreensão dos mecanismos de interação do vírus com o sistema imunológico, o que permitiu produzir drogas eficazes, os anti-retrovirais, e estes por sua vez mudaram completamente o panorama da pandemia, reduzindo em muito a mortalidade pela doença. Mais recentemente a utilização dessas medicações na prevenção ajudou a ampliar o escopo das ferramentas preventivas, o que é bem-vindo. Ao menos no Brasil, acredito que isso reduziu um pouco a estigmatização das pessoas vivendo com HIV/aids, mas não a fez desaparecer. Por outro lado, ocorreu uma certa “banalização” da doença, o que talvez tenha levado muitas pessoas a “baixarem a guarda” com a prevenção. Perdido o sentido de urgência das primeiras décadas, não temos tido a mesmo grau de combatividade política, o que infelizmente abriu espaço para retrocessos lamentáveis na prevenção, especialmente no que diz respeito a certos grupos mais vulneráveis e discriminados, não por acaso entre os quais se acha a maior incidência da infecção pelo HIV, como homens que fazem sexos com homens e trabalhadoras e trabalhadores do sexo. Campanhas publicitárias extremamente bem-feitas dirigidas a essas populações foram vetadas em nome de um conservadorismo religioso retrógrado, com péssimas consequências do ponto de vista da prevenção. Por fim, a ênfase em meios preventivos exclusivamente biomédicos também contribui para uma certa desmobilização da resposta da sociedade à aids.

Abrasco: Já no artigo Pobreza e HIV/AIDS: aspectos antropológicos e sociológico, de 2000,  você e Richard Parker apontam que as condições da desigualdade social brasileira reproduziam internamente os motores globais da epidemia, identificados como as migrações, o encolhimento do mercado formal de trabalho e a desintegração social causada pela violência. Na sua percepção e leituras, essas condições continuam sendo determinantes para o atual estágio da epidemia?

Kenneth Rochel Camargo: Com certeza. O agravamento das condições de vida por conta de políticas econômicas equivocadas, que também restringem o financiamento das ações de saúde, aumenta a vulnerabilidade a vários agravos de saúde, e a aids não teria como ser exceção. A repercussão dessas políticas são piores ainda para os mais frágeis, num somatório de vulnerabilidades econômicas e sociais.

Abrasco: Como as Ciências Sociais e Humanas da Saúde podem contribuir para entender as novas dinâmicas dos grupos sociais mais atingidos pelo avanço da epidemia?

Kenneth Rochel Camargo: De vários modos. Ajudando a compreender como diferentes grupos sociais apreendem noções de risco, ou como adequar às estratégias de prevenção a populações específicas. A grande proximidade do então programa nacional com o movimento social facilitava esse trabalho, mas vejo infelizmente um grande recuo também nesse aspecto em nosso país.

Abrasco: Você também compõe a Rede zika Ciências Sociais. Em que pese as grandes diferenças entre os quadros etiológicos e as épocas, ambas as doenças possuem grande inserção na mídia. É possível traçar paralelos e diferenças em como esses temas têm sido explorados?

Kenneth Rochel Camargo: Eu acho que o grande paralelo é com a ideia das três epidemias originalmente proposta por Jonathan Mann, que falava de uma primeira epidemia, silenciosa, do vírus HIV, uma segunda cada vez mais visível, já da aids propriamente dita e, finalmente, uma epidemia de significados, filtrada pela mídia. Aqui no Brasil a terceira epidemia chegou antes da segunda, o que ajudou a dar características específicas à resposta brasileira à aids. No caso da zika tivemos também uma epidemia silenciosa da virose, uma epidemia aos poucos revelada de casos de microcefalia, com ampla repercussão midiática. As grandes diferenças são o crescimento do papel da internet na difusão de informações (e de bobagens), e o fato de que, felizmente, as pessoas afetadas pela doença não foram culpabilizadas.

Abrasco: Diante desse quadro, quais caminhos a sociedade brasileira deve tomar e abraçar para enfrentar a segunda onda da epidemia com solidariedade e coragem?

Kenneth Rochel Camargo: É fundamental a retomada do protagonismo dos movimentos sociais e de uma perspectiva fundada em direitos humanos na resposta à epidemia. Para além disso e de forma mais geral com relação a qualquer política social é fundamental o combate ao “austericídio” que foi imposto à população brasileira.

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