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Kenneth Camargo fala sobre a conjuntura e a militância na saúde ao OAPS

Professor associado do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj), ex-vice-presidente da Abrasco e atualmente membro do Fórum de Editores da Saúde Coletiva pela revista Physis, Kenneth Camargo é o entrevistado do mês do Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS), ligado ao Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

A entrevista foi realizada durante o 7º Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde (7º CBCSHS), organizado pela Abrasco e pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Mato Grosso (ISC/UFMT) em outubro e dialoga com a fala de Camargo no Grande Debate Pensamento crítico, emancipação e alteridade: Agir em saúde na (ad)versidade, realizado na noite do dia 10.

Entre os temas em destaque na entrevista está o atual cenário de descrédito na política. “Eu acho que tem uma descrença no processo político democrático que é muito perigosa porque a gente sabe onde é que isso vai dar […] Se você não resolve as coisas por meio da mediação política, por meio da negociação, por meio do Estado, o quê que vai sobrar? Vai ser a força, vai ser a violência, e não necessariamente a gente tem mais força. Se a disputa se reduzir a isso é muito complicado, a gente já perdeu mais de uma vez no passado quando chegou nesse nível”.

O docente também critica o discurso da suposta necessidade de uma política de austeridade no país e o impacto da PEC 241, que segue como PEC 55 no Senado. “Quais as consequências dessa limitação do gasto? E a limitação do gasto é social porque o gasto com juros não tem teto. Tem uma série de coisas que ficam escondidas nesse discurso e a gente vê a intencionalidade do que está por trás disso que é de desmontar, eu acho que não só o que a gente conquistou pós Constituição, mas algumas coisas que vêm desde a CLT [Consolidação das Leis do Trabalho]”, afirma.

Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS): Assistimos sua fala no debate realizado no 7º Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde (7º CBCSHS) da Abrasco e uma das coisas que chamou a atenção foi que, ao discutir essa conjuntura que a gente vive no Brasil, você destacou que é preciso retomar a militância, que se achou que muitas coisas estavam conquistadas, mas agora foi percebido que não, que muitas coisas que estavam dadas como consolidadas estão novamente sob ameaça. Isso é fruto de uma autocrítica do papel da militância, da pesquisa?

Kenneth Camargo: Da militância, da perspectiva política, pensando de uma forma muito mais geral, a esquerda como um todo, não necessariamente um partido específico nem um movimento social específico. Pensando muito na trajetória de longa duração, não só nos acontecimentos recentes. A gente teve uma série de vitórias importantes com o fim da ditadura, mas sempre uma coisa negociada e uma tentativa o tempo todo de conseguir espaço no Estado. O que é necessário, não estou de forma alguma negando o papel do Estado, mas como se uma vez que você chega lá, você garantiu o teu espaço e aquilo não irá ter uma reversão. O problema é que sem você mudar as próprias relações do Estado, as relações políticas, essa conquista é provisória, como a gente infelizmente está tendo isso demonstrado constantemente, o verdadeiro rolo compressor que está sendo feito em cima de uma série de coisas, que mostra a necessidade, e eu acho que talvez tenha um pouco a ver com a questão da pesquisa e da própria militância política mais geral, de como é que você horizontaliza, capilariza mais o que a gente está pensando.

O resultado das últimas eleições mostra que não necessariamente você tem o grosso da população pensando em sintonia com o que a maior parte das pessoas que, por exemplo, estão nesse Congresso [7º CBCSHS] estão pensando. Eu acho que tem uma questão complicada com relação à mídia, a grande mídia empresarial, que é absolutamente monopolizada, ela é claramente direcionada, manipuladora, eu acho que não dá para negar nada disso. Tem um colega da UERJ, do IESP – Instituto de Estudos Sociais e Políticos, João Feres, que criou um dispositivo que é chamado “Manchetômetro” . Ele vem acompanhando há muito tempo o noticiário, as manchetes que saem nos principais jornais, mostrando se são favoráveis, indiferentes ou desfavoráveis ao governo, também em relação aos telejornais, e ele mostra total enviesamento contra o governo [Dilma]. Mas o que eu acho que foi mais preocupante, e a gente não teve tempo de discutir isso na mesa, foi uma coisa que apareceu depois no GT [grupo de trabalho] que eu estava e que me assusta mais. Não é nem necessariamente só o fato das pessoas terem votado em políticos claramente conservadores, alguns até muito reacionários de direita, é você ver que nas principais capitais brasileiras a maior parte dos votos foi de brancos ou nulos. E eu acho isso mais aterrador do que as pessoas votarem na direita, é as pessoas desistirem de votar. Eu acho que tem uma descrença no processo político democrático que é muito perigosa porque a gente sabe onde é que isso vai dar, pra aparecer um salvador da pátria… Porque você fica constantemente martelando essa coisa, ‘político é tudo igual, político é tudo corrupto’, você vai criando uma descrença no processo político. Se você não resolve as coisas por meio da mediação política, por meio da negociação, por meio do Estado, o quê que vai sobrar? Vai ser a força, vai ser a violência, e não necessariamente a gente tem mais força. Se a disputa se reduzir a isso é muito complicado, a gente já perdeu mais de uma vez no passado quando chegou nesse nível. Eu acho que, antes de mais nada, é uma questão de reestabelecer esse espaço da política com “P” maiúsculo, não no sentido da coisa partidária, mas no sentido da policy , dos vários discursos, de como a gente pensa, qualifica, equaciona as situações, como sair delas.

A outra coisa que acho que é complicada, e que me toca particularmente dentro da perspectiva que eu trabalho teoricamente, do ponto de vista da pesquisa, é a mistificação em torno de determinados aspectos da ciência, aí no caso particularmente da discussão mais geral da economia. O que eu falei na mesa, que é uma coisa que eu venho denunciando há muito tempo e que várias pessoas têm colocado, é essa ideia de que tem uma substituição do debate político por uma discussão econômica, e é uma discussão econômica apequenada porque ela fica restrita a uma teoria econômica, a teoria neoclássica, essa coisa de que você tem que ter austeridade fiscal, e é impressionante porque demonstravelmente isso é falso. Tem certos exemplos empíricos de que esses processos de austeridade, sobretudo em momentos de depressão, pioram o problema, fazem com que a depressão se aprofunde, com que a saída da recessão econômica demore mais, aumenta o desemprego. E é exatamente isso que está tentando se implementar aqui no Brasil com essa PEC infernal 241 [que segue como PEC 55 no Senado] né, mas vendida com argumento de racionalidade.

OAPS: Essa substituição da discussão política por essa perspectiva econômica bem enviesada encontra consonância na academia? Você citou que essa é apenas uma das correntes, mas é colocada como única, como a verdade. Por outro lado, tem uma dificuldade de se falar sobre economia para ampla população, não é?

Kenneth Camargo: Um dos autores que eu gosto muito de trabalhar é o Georges Canguilhem, de “O normal e o patológico”. Ele tem um livro que se chama “Ideologia e Racionalidade nas Ciências da Vida” e ele faz esse conceito muito interessante de “ideologia científica”, que seria o que se apresenta como ciência, mas faz um discurso, nas palavras dele, que é hiperbólico, é exagerado em relação ao que uma ciência poderia fazer. Então, parece que é ciência, mas é alguma coisa que está sendo ideológica e que está fazendo uma afirmação para além do seu potencial de validade.
Por mais que se possa utilizar de modelos matemáticos extremamente complicados, complexos e sofisticados, a economia é também uma ciência social, é uma ciência histórica e é também uma ciência humana, então esses modelos não são tão preditivos assim. Um exemplo que eu gosto muito de usar: na década de 90, nos Estados Unidos, foi criado um fundo de administração de capital chamado de Long-Term Capital Management (LTCM) que tinha no board de diretores dele o ‘quem é quem no mundo da economia americana’, incluindo dois prêmios Nobel de Economia. Os caras falharam tão miseravelmente que criaram uma crise sistêmica no Estados Unidos que precisou de uma intervenção maciça do governo, umas dessas crises periódicas que vêm acontecendo, e a gente precisava intervir maciçamente para evitar o colapso do sistema financeiro.

Tem uma jornalista canadense chamada Naomi Klein que escreveu o livro “ The Shock Doctrine ”, traduzido para o português [A Doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre], e ela mostra como é que você consegue implementar uma série de medidas antipopulares, não são só impopulares, elas são antipovo, dentro de um contexto de crise. Ela mostra alguns exemplos, o primeiro grande laboratório desse negócio foi no Chile com a ditadura Pinochet, a intervenção econômica foi patrocinada pelo o que se chamava de ‘Chicago Boys’, que foi a turma que estudou com Milton Friedman em Chicago. Então assim, a gente começa a estabelecer uma hegemonia por meios políticos e não acadêmicos, não é como se tivesse havido um grande debate na academia sobre economia e tivesse alguma evidência empírica ou científica de que essa teoria é melhor do que a outra ou não. Então, essa ênfase nessa lógica é muito boa para o mercado de capitais, é muito boa para uma economia que privilegia o rentismo, mas é muito ruim para todo mundo, para todas as outras pessoas. A crítica, com base em dados empíricos, que o Piketty [Thomas Piketty] faz em “Capital no Século XXI”, mostrando que essa questão do crescimento da desigualdade é estrutural do capitalismo, não é um incidente, e se não for mitigado com uma série de políticas redistributivas fica cada vez pior, eu acho que a gente está vendo as consequências disso. Mas existe toda uma mistificação, e aí entra a coisa interessada da mídia, quer dizer, a forma como isso é apresentado para a população é se como não tivesse outro jeito e quem se coloca contra isso é contra o país.

O que eu acho interessante e tem de novo em relação há alguns anos atrás é que na internet há algum espaço para dissenso, não sei até que ponto isso vai fazer alguma diferença no ponto de vista da política macro, mas você começa a ver que tem coisas como a Plataforma Política Social , tem determinados grupos que têm procurado fazer uma crítica consistente e tem pessoas da área de economia que não rezam pela mesma cartilha monetarista neoclássica que esse povo reza, mas fica muito difícil porque você apresenta uma coisa com essa voz de autoridade de uma suposta ciência… então assim, não há outra coisa a fazer, não tem outro jeito, e essa inevitabilidade tende a ser desmobilizadora do ponto de vista da política. É um pouco nesse sentido que eu estava falando, eu acho que tem que dizer “Ó, acorda! O buraco é mais embaixo, isso não é bem assim, estão te enganando. Olha o que aconteceu nesse país e naquele, onde essas medidas estão sendo implementadas o desemprego aumenta, aprofunda. Olha o que aconteceu na Grécia, olha o que está acontecendo em Portugal, estão querendo fazer a mesma coisa aqui, desmanche do Estado social que a gente nem conseguiu construir, já estão tentando desmontar”.

Quais as consequências dessa limitação do gasto? E a limitação do gasto é social porque o gasto com juros não tem teto. Tem uma série de coisas que ficam escondidas nesse discurso e a gente vê a intencionalidade do que está por trás disso que é de desmontar, eu acho que não só o que a gente conquistou pós Constituição, mas algumas coisas que vêm desde a CLT [Consolidação das Leis do Trabalho]. Tem uma campanha que eu estava lendo, não cheguei a ver, mas que o governo estava dizendo que o brasileiro tem mais férias do que qualquer povo do mundo. O Ministério do Trabalho não vai fazer uma propaganda sobre isso se não estiver com a intenção de reduzir o período de férias e é uma coisa que está escrita na lei. E isso de atacar a aposentadoria especial dos professores, quer dizer, eu acho que começam a eleger uma série de culpados e a estigmatizar. As pessoas no geral começam a repetir esse discurso sem se dar conta, até porque é difícil ter fontes alternativas de informação. A conjuntura que a gente está enfrentando é muito difícil, mas a gente tem que abrir a boca, não pode ficar calado.

Leia a entrevista na íntegra, em PDF ou diretamente no site do Observatório.

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