Uma experiência pioneira. Uma estratégia divisora de águas. De forma muito resumida, são esses os assuntos de dois livros que se dedicam a desbravar caminhos dentro de suas próprias áreas e foram lançados durante o 8º Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, que aconteceu entre 26 e 30 de setembro em João Pessoa. E ambos têm relação com a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz).
‘Atenção diferenciada: a formação técnica de agentes indígenas de saúde no Alto Rio Negro’ (Editora Fiocruz, 2019) conta a história da parceria entre o movimento indígena, o Instituto Leônidas & Maria Deane (Fiocruz Amazônia), a Escola Politécnica e governos para a realização de um curso que, ao mesmo tempo que preparou profissionais para a atuação no subsistema de atenção à saúde indígena, também enfrentou o desafio de elevar a escolaridade dos estudantes ao ensino médio. Os autores da obra são Ana Lúcia Pontes, do Grupo Temático Saúde Indígena da Abrasco – que, na época do curso, atuava na EPSJV –, Luiza Garnelo – membro do Conselho Deliberativo da Abrasco e Sully Sampaio, ambos da Fiocruz Amazônia.
Já ‘O pomo da discórdia? Drogas, saúde e poder’ (Editora CRV, 2019), de autoria do professor-pesquisador da Escola Politécnica, Dênis Petuco, investiga as controvérsias em torno do cuidado aos usuários de álcool e outras drogas, e procura entender o peso da contribuição que a estratégia de redução de danos trouxe a esse debate.
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O agente indígena de saúde atua no Brasil desde a década de 1980. Depois da criação do subsistema de atenção à saúde indígena, em 1999, eles passaram a integrar formalmente as equipes de saúde que atuam em 34 distritos especiais sanitários indígenas, os DSEIs. Estima-se que, hoje, existam seis mil agentes, que atendem aproximadamente 700 mil pessoas. “Muitas vezes, são os únicos profissionais a permitir um contato regular e constante da população indígena com o SUS”, conta Ana Lúcia Pontes.
Contudo, essa profissão ainda não foi legalmente instituída. E a incorporação efetiva do profissional ao subsistema é irregular. “Em 2007, o diagnóstico de parte do movimento indígena era de que os agentes estavam na periferia do subsistema, quando a expectativa era outra, de que esses agentes seriam valorizados e fortalecidos em seu papel político. Mas, ao contrário, eles atuavam mais na articulação e na viabilização do trabalho da equipe, sem autonomia, e a razão disso era a formação. Eles não tinham escolarização”, contextualiza a pesquisadora da ENSP.
É aí que a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro apresenta a demanda de um curso para o Condisi, o Conselho Distrital de Saúde Indígena. Essa estrutura do controle social dá início aos trâmites normais para a formação técnica, tentando estabelecer parcerias com as instituições locais. “Mas a resposta imediata que eles têm é que os serviços de saúde não se responsabilizavam pela elevação de escolaridade – e eles não abriam mão disso. E enquanto as necessidades desaguavam na formatação de um curso específico para indígenas, que trabalhasse a profissionalização no contexto da saúde, as escolas ofereciam apenas cursos-padrão”, relembra Ana Lúcia.
Com isso, eles vão atrás de outros parceiros, alguns de longa data, caso da pesquisadora Luiza Garnelo, da Fiocruz Amazônia, que foi responsável por articular a demanda institucionalmente dentro da Fundação. “É aí que a Escola Politécnica entra no projeto, como unidade com expertise na formação para o nível médio e que já tinha construído uma experiência de formação técnica para o agente comunitário de saúde”, explica Ana Lúcia, que coordenou o curso pela EPSJV/Fiocruz.
O resultado foi um curso pioneiro na elevação da escolaridade de nível médio e formação profissional que, ao fim de cinco anos, titulou 139 estudantes como técnicos em agente indígena de saúde. Em 2014, a experiência foi selecionada pelo Programa Especial de Pesquisa e Treinamento em Doenças Tropicais da Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma das iniciativas mais inovadoras de todo o planeta. “O livro é o primeiro grande investimento em publicizar e compartilhar a experiência do curso técnico em agente indígena de saúde”, resume a pesquisadora.
A publicação aborda de que forma o currículo foi desenhado para atender às premissas da interculturalidade, garantindo a complementaridade entre o conhecimento científico e os conhecimentos locais. “Também apresentamos uma discussão do que se entende da formação desse trabalhador, analisando os pontos de contato entre ele e o agente comunitário de saúde e, também, em relação aos trabalhadores comunitários de saúde no mundo de forma geral. Também trazemos dicas práticas de supervisão do aluno, inserção de trabalhadores dos serviços na formação”, lista Ana Lúcia. E completa: “O curso permitiu propor reorganização do trabalho do agente indígena na comunidade e na equipe, com indicações de rotinas de trabalho para visitas domiciliares, procurando definir com maior clareza a complementaridade de papeis entre ele, o enfermeiro, o médico e o odontólogo”. Para a pesquisadora, esse conjunto de reflexões pode contribuir para outras experiências em outros contextos indígenas – mas também em contextos não indígenas. “Isso porque a diversidade sociocultural não está só na relação com o indígena. Tendemos a subestimar essa dimensão em certos ambientes urbanos”.
Nesse sentido, o livro tenta ajudar gestores, escolas técnicas do SUS, profissionais de saúde e o movimento indígena na luta pela viabilidade da profissionalização com formação técnica. “Existe uma certa reticência, um senso comum de que é impossível elevar escolaridade e dar formação técnica para indígenas. Ou sob o argumento de que a escolaridade deles ainda é baixa – embora não seja bem assim. Ou mesmo por uma suposta dificuldade em construir os conteúdos. O livro questiona essa perspectiva”, pondera Ana Lúcia, que aposta também na movimentação do debate político atual, já que a deputada federal Joênia Wapichana (Rede-RR) apresentou em 2019 um projeto de lei para regulamentação dos agentes indígenas de saúde, que tem como uma das dimensões a escolarização e a profissionalização. “Esse debate está parado no momento, mas esperamos que a divulgação do livro ajude a impulsionar”.
Antes e depois da redução de danos
Se existe hoje um debate movimentado ele é o do cuidado aos usuários de álcool e outras drogas. A aposta na mudança de políticas a nível nacional, com a priorização da abstinência e do tratamento em comunidades terapêuticas descortinou, mais uma vez, a gama de controvérsias que há décadas alimenta esse debate. Em ‘O pomo da discórdia? Drogas, saúde e poder’, Dênis Petuco aposta na contextualização dessa história.
Tudo começou durante a 4ª Conferência Nacional de Saúde Mental, em 2010, a partir da provocação de uma amiga do autor, a psiquiatra Ana Simões. “Ela trabalha há muito tempo com o tema das drogas e me demonstrou o seguinte incômodo: será que tudo de novo, democrático e inovador só surgiu a partir da redução de danos? Ou já existiam cabeças pensantes e transgressoras antes?” Isso porque o marco mais conhecido dessa história é o surgimento da primeira experiência brasileira com redução de danos, na cidade de Santos (SP), em 1989.
Dênis levou a sério as perguntas e investigou o assunto no seu projeto de doutorado. “Ela estava certa”, diz o professor-pesquisador da EPSJV, que continua: “De fato, ao longo do século passado, conseguimos encontrar aqui e acolá controvérsias discursivas e práticas em torno de como se cuida de usuários de álcool e drogas, que se tornam mais densas e interessantes com o processo de redemocratização”.
Então se a redução de danos não inaugurou um cenário de disputas, será que ela seria apenas mais uma entre várias controvérsias? Ou se destacaria de alguma forma? O pesquisador entrevistou profissionais que trabalham no cuidado de usuários de álcool e drogas desde os anos 1970, tanto alinhados ao campo progressista quanto ao conservador. E todas reconheceram que depois da redução de danos tudo mudou. Um dos entrevistados é mais contundente: o campo se dividiu em dois.
“Como na mitologia cristã, algo que não veio trazer a paz, mas ser a espada que separa pai e filho”, compara Dênis. “Não sei se é bom ou ruim, mas o que a redução de danos traz é essa divisão. Hoje é impossível discutir drogas sem ter posição a respeito disso. É essa posição que vai demarcar seu lugar no campo de lutas”, conclui. Mas pondera: “Ser a favor ou contra não significa que todo mundo é a favor ou contra igual”.
De acordo com o professor-pesquisador da EPSJV, a redução de danos hoje é um conjunto de estratégias situadas no campo da saúde coletiva voltadas para pessoas que não conseguem ou não querem parar de usar álcool e outras drogas. “Ela enxerga os problemas relacionados ao uso não só do ponto de vista físico, orgânico, mas olha para o território, a comunidade, os determinantes sociais”, explica.
O exemplo mais conhecido de redução de danos é a distribuição de seringas descartáveis para quem usa drogas injetáveis, evitando o compartilhamento e, consequentemente, a contaminação entre usuários. Mas, segundo Dênis, a redução de danos em alguns lugares, dentre eles a América Latina, foi além. “É muito mais do que ofertar seringa limpa; é atacar os determinantes da saúde, a violência produzida pela proibição das drogas. Não é tão somente uma estratégia ou método de prevenção da Aids, não é simplesmente uma técnica, é um repertório maior. Há uma dimensão política que se diferencia da redução de danos mais tecnicista levada a cabo em lugares como Europa e Ásia.
(Reportagem publicada originalmente no site da EPSJV/Fiocruz)