“A soberania começa pela boca”: a frase de Eduardo Galeano perpassou a palestra de Larissa Bombardi, professora de Geografia Agrária da Universidade de São Paulo, durante a tarde de segunda-feira (26/08), a convite do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (Cesteh/ENSP/Fiocruz). Diante de estudantes, trabalhadores, pesquisadores e integrantes de movimentos sociais a autora do Atlas “Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia” começou sua fala pontuando que a temática dos agrotóxicos tem a potência de reunir as pessoas: “A discussão do alimento e dos agrotóxicos une as questões agrárias e urbanas. Discutir os agrotóxicos é discutir qual pacto de sociedade e qual projeto de nação a gente tem”.
Bombardi, que há dez anos estuda a temática, se debruça sobre a contradição em que o Brasil, país que mais consome agrotóxicos no mundo, se insere no mercado, através da agricultura. Paradoxalmente, as substâncias utilizadas em solos brasileiros são produzidas majoritariamente por indústrias sediadas na União Europeia, local onde essas mesmas substâncias são proibidas, ou permitidas em quantidades muito menores. É o caso do princípio ativo glifosato, que representa mais de 30% do volume de agrotóxicos comercializado no Brasil, classificado como provável cancerígeno humano do grupo 2A (IARC): o Brasil permite na água potável quantidade 5 mil vezes maior de resíduos de glifosato que o permitido pela União Europeia.
A monocultura é quimicamente dependente
Para a pesquisadora, a lógica de monocultura é diretamente associada ao uso intenso de agrotóxicos. O processo de plantar em larga escala apenas soja, milho ou cana – principais produtos do agronegócio brasileiro – é quimicamente dependente, sobretudo pela quebra do ambiente natural, o que atrai mais pragas: “A gente fala de monocultura a gente fala de uma agricultura que é avessa ao arranjo natural dos trópicos. O clima tropical tem calor e umidade, alta biodiversidade e alta produção de biomassa, impor monocultura significa caminhar avessamente à maneira como o arranjo natural se dá”, explicou a geógrafa. O ciclo desse modelo de agricultura envolve mais que inseticidas: quando utilizam maquinário pesado nas lavouras, por exemplo, aumenta-se a compactação do solo, prejudicando o crescimento das raízes e o consequente aumento de doenças e pragas, sendo necessário utilizar, além dos inseticidas e fertilizantes, fungicidas.
Antes mesmo do crescimento considerável nos registros de agrotóxicos no país – encabeçado pelo governo de Jair Bolsonaro ainda nos primeiros meses de 2019 – já houve uma escalada no uso dos químicos, associada à expansão do plantio de soja. Dados de um novo mapa, que serão divulgados em breve pela pesquisadora, sinalizam alta na utilização dos agrotóxicos, sobretudo na região onde está a Amazônia – os estados que compõe o chamado arco do desmatamento: Maranhão, Tocantins, Pará, Acre e Rondônia. “É um processo que vem se intensificando nos últimos dez anos, o deslocamento da soja do cerrado para o bioma amazônico – queima, desmatamento, avanço do gado e depois plantio da soja. O que a gente vê claramente é que a região onde mais aumentou o uso dessas substancias é a região norte do país, aumentou em 50% o uso de agrotóxicos”, comentou Larissa.
Larissa também questionou a narrativa presente no Brasil de que “somos um grande produtor de alimentos”. Segundo ela, a agricultura hoje significa produção de ração animal e energia – como biodiesel e etanol, agrocombustíveis – commodities, comercializadas na Bolsa de Mercadorias & Futuros (BM&F): “Para quem comercializa na Bolsa de Mercadorias e Futuros, pouco importa se aquilo que está sendo vendido é minério de ferro ou grão de soja”. Em paralelo diminuímos a produção de alimentos como o feijão, que compõe a dieta básica no país.
Aumentos na intoxicação por agrotóxicos
Enquanto a BM&F comercializa safras de grãos de soja, também cresce o número de pessoas intoxicadas por agrotóxicos no Brasil. De 2007 a 2014, 25 mil pessoas foram atendidas por envenenamento relacionado às substâncias, uma média de 8 pessoas por dia e 3100 pessoas por ano. Dados mais recentes sinalizam a piora no quadro: em 2015 foram registradas 4520 intoxicações, 4532 em 2016, 5238 em 2017, uma elevação de pelo menos 20%. Isso sem considerar os casos não notificados: estima-se que a cada um caso notificado, 50 não são registrados. As mortes causadas por essas intoxicações também aumentaram: de 2007 a 2014 foram registradas 2186 mortes em decorrência de agrotóxicos, uma média de 148 pessoas –”uma Brumadinho” – por ano. Em 2015 registraram-se 197 mortes, 207 em 2016 e 180 em 2017.
Os agrotóxicos atingem toda a população – do campo e da cidade – e estão presentes nos alimentos, na água, no ar, no leite materno e até na chuva – segundo dados do “Dossiê Abrasco – Um alerta sobre o impacto do uso de agrotóxicos na saúde”.Um retrato da gravidade da situação é o registro de bebês de 0 a 12 meses contaminados: “Qual é o grau de vulnerabilidade dessa população para que bebês, que não se locomovem sozinhos, se intoxicarem? Como falar de uso seguro de agrotóxicos se a gente teve 343 bebês intoxicados no Brasil? Como esses bebês estão se intoxicando? É um atentado à infância. Falar de agrotóxico é falar de direitos humanos”, afirmou Larissa. Ao concluir a palestra, Bombardi retoma Galeano: “[A discussão sobre agrotóxicos] Diz respeito a todos nós. Não é só o trabalhador rural, os camponeses – que em si já é muito importante. Como a gente lida com isso? Se a gente pensar na boca, no alimento, a gente chega nas questões de fundo da sociedade brasileira”.
A Abrasco e a discussão sobre agrotóxicos
A presidente da Abrasco, Gulnar Azevedo, participou da abertura do evento, frisando o compromisso da Abrasco na luta contra os agrotóxicos e em defesa da saúde da população: “O Brasil é um exemplo do que não deve ser feito no mundo: o descaso com as políticas públicas representa tudo o que a gente gostaria de não estar vivendo. O que devemos fazer é continuar trabalhando juntos, unir as pessoas que queiram mudar essa realidade. No que diz respeito ao combate aos agrotóxicos, o nosso GT de Saúde e Ambiente tem feito um trabalho muito bom, o Dossiê é referência no Brasil e fora do Brasil – e é um trabalho que a gente muito se orgulha, fruto de uma construção coletiva de vários abrasquianos”, disse a epidemiologista.
Luiz Cláudio Meirelles, integrante do GT Saúde e Ambiente da Abrasco, pesquisador do Cesteh e articulador da palestra, afirmou que é imprescindível trazer para a discussão da saúde uma perspectiva interdisciplinar: “Trazer outras áreas do conhecimento para um debate de saúde, que não coloque só a questão da assistência, é fundamental para compreensão integral dos problemas. A Larissa mostrou claramente que a geografia tem muito a contribuir na forma de olhar para o território, interpretar esse território e entender os impactos na saúde humana, no meio ambiente – a curto e a longo prazo. Enquanto GT a gente tem que buscar essa articulação, e não só nos campos tradicionais de conhecimento. Temos que buscar também com a sociedade civil organizada, sindicatos, produtores rurais, agricultura familiar, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, todos que vivem e fazem, no dia a dia, a agricultura do país”.
Perguntamos à Larissa Bombardi se há perspectivas otimistas de futuro – considerando o cenário tão favorável ao agronegócio no país – e a pesquisadora apontou como caminho a articulação da PNaRA (Política Nacional de Redução de Agrotóxicos), em trâmite na Câmara dos Deputados: “Eu penso que tem potência da sociedade civil organizada se manifestar favoravelmente. Se isso acontecer, a gente vai ter o banimento de produtos proibidos fora do Brasil e incentivo à transição orgânica e agroecológica”. A PNaRA foi sugerida à Comissão de Legislação Participativa em 2016, pela Abrasco, como solicitação da sociedade civil.
A TV ENSP fez o registro em vídeo da palestra Geografia do uso de agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia, assista: