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Lente bifocal – por Ligia Bahia

Vilma Reis

Membro da Comissão de Política, Planejamento e Gestão da Abrasco, a professora Ligia Bahia publicou no jornal O Globo desta segunda-feira, 19 de dezembro, artigo sobre a PEC 55, promulgada na quinta-feira, dia 15 de dezembro, que limita os gastos públicos. Para Ligia, o teto para as despesas públicas e a postergação das dívidas dos ricos, reduzirá ainda mais as receitas, situando-se em um campo visual oposto ao da perspectiva adotada pela maioria da população – “Mas a insensibilidade às prioridades populares é insustentável, especialmente diante do desequilíbrio provocado pelas falhas de cálculos e promessas de retomada do crescimento econômico e de uma coalizão política liderada por ministros e parlamentares acusados de corrupção. Então começou a se dizer que não é bem e nem tanto assim. De repente, a bancada da saúde — antes carimbada por defensores da PEC do corte de gastos como o suprassumo do atraso, um grupelho de defensores de interesses particulares, de verbas públicas para hospitais filantrópicos e privados — foi promovida a categoria de nobre e legítima defensora do direito universal à saúde”, pontua Ligia.

Confira o artigo na íntegra:

Pontos de vista restritos causam ilusão de ótica. As instituições governamentais que apoiaram e legitimaram a restrição das despesas públicas e transferência de renda para empresários não enxergaram um palmo adiante. Estão passando rápido pela História como defensores do dinheiro e opositores ferrenhos das políticas baseadas na solidariedade. Para a população, o principal problema a ser resolvido é a saúde. As expectativas em torno do uso rigoroso dos orçamentos públicos, fim da roubalheira, estão relacionadas com a melhoria de serviços coletivos.

Defeitos visuais podem ser corrigidos com óculos que facilitem a apreensão da realidade, de perto e de longe. Menores orçamentos para saúde não resultarão em mais dinamismo do setor privado e melhor qualidade das despesas no SUS. Degradação da rede pública, desabastecimento de medicamentos, queda de investimentos em pesquisas, combinados com redução da renda e desemprego, afetam toda a cadeia produtiva. Os motores setoriais movem insumos industriais, serviços especializados, instituições de formação de pessoal e mídia. Racionar remédios e limitar a variedade de estratégias terapêuticas não são necessariamente sinais positivos para o mercado farmacêutico.

Dependendo do problema, torna-se impossível tirar do bolso o pagamento do tratamento. As filas no SUS não estão integradas por sovinas ou oportunistas, e sim doentes que não poderiam pagar parte ou a totalidade do diagnóstico e terapia. Chegar antes de os serviços abrirem, ficar em lugar na frente para pegar senha, ter todos os documentos solicitados e comparecer nos dias e horários nos quais o especialista está e o equipamento funciona custam dedicação, dinheiro e falta ou atraso no trabalho. A insegurança sobre a realização e continuidade do atendimento e obtenção dos cuidados para evitar sequelas e mortes atormenta quem precisa e ameaça os que estão bem, mas um dia poderão experimentar o mesmo dissabor do parente, do amigo ou conhecido.

As conversas sobre as estratégias para obter uma boa assistência atravessam classes sociais. Os relatos incluem avaliações sobre a presença de médico, a educação dos profissionais de saúde (que quer dizer gentileza e empatia), as melhores combinações do uso de pagamento, se o exame é realizado e quitado na hora e a consulta fica por conta do plano ou vice-versa, a importância de poder recorrer a uma pessoa influente e ainda a necessidade de botar a boca no trombone e rodar a baiana. Mas ninguém sugere o fim e nem mesmo a diminuição do orçamento para o SUS.

O teto para as despesas públicas e a postergação das dívidas dos ricos, reduzindo ainda mais as receitas, situam-se em um campo visual oposto ao da perspectiva adotada pela maioria da população. Mas a insensibilidade às prioridades populares é insustentável, especialmente diante do desequilíbrio provocado pelas falhas de cálculos e promessas de retomada do crescimento econômico e de uma coalizão política liderada por ministros e parlamentares acusados de corrupção. Então começou a se dizer que não é bem e nem tanto assim. De repente, a bancada da saúde — antes carimbada por defensores da PEC do corte de gastos como o suprassumo do atraso, um grupelho de defensores de interesses particulares, de verbas públicas para hospitais filantrópicos e privados — foi promovida a categoria de nobre e legítima defensora do direito universal à saúde. E os argumentos sobre a premência da boa gestão de gastos foram reconvocados, e seriam sérios não fosse a ligeireza das avaliações sobre a localização dos erros. Jogar luzes apenas sobre o pagamento para servidores públicos e dar um sumiço na magnitude e aumento dos gastos tributários (não pagamento de impostos e contribuições que conformam receitas para a saúde) iludem e impossibilitam que os recursos existentes sejam bem utilizados.

Preços podem ser reduzidos e o acesso, ampliado, se o país expandir sua base produtiva de medicamentos e equipamentos. As regras estabelecidas para pagar valores extremamente elevados por insumos protegidos por patentes têm sido questionadas por organismos internacionais de saúde e por determinadas e populosas nações em desenvolvimento.

A análise criteriosa dos custos e benefícios de serviços de terceiros, tais como segurança, limpeza, recepção e com organizações sociais, que em certos casos representam mais da metade dos recursos disponíveis, também poderá redirecionar o financiamento para as atividades diretas de atenção aos pacientes. Olhar para o gato e para o peixe é um imperativo para tentar evitar a regressão definitiva de atividades essenciais de saúde. Mas mexer nos inúmeros e variados contratos que organizam o sistema não é simplesmente uma tarefa técnica, falta transparência e debate político sobre os interesses econômicos, situados atrás das convenções. Em 2016, os ciclopes apagaram a saúde da agenda pública. No ano que vem, caso se pretenda continuar propiciando atenção aos problemas mais frequentes de saúde, o uso de lentes bifocais deveria ser obrigatório para todos os responsáveis pelas decisões que envolvem políticas públicas.

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