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Léo Heller:”A chave está na democracia e nos direitos humanos”

Uma coisa é pôr ideias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas. A frase de Riobaldo é emblemática para Léo Heller. “A democracia e os direitos humanos não são receitas prontas ou conceitos abstratos. São valores e práticas que supõem um contexto, no qual vivem pessoas e em que se desenvolve uma dinâmica política, econômica e social” diz o pesquisador da Fiocruz-Minas e Relator Especial das Nações Unidas para os Direitos Humanos à Água e ao Esgotamento Sanitário Ele fará a conferência de abertura do Simpósio Brasileiro de Vigilância Sanitária – 8º Simbravisa, no dia 24 de novembro, no ExpoMinas, em Belo Horizonte.

Com quase 30 anos de atuação acadêmica e científica, Heller já passou por todas as funções na Escola de Engenharia e no departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da Universidade Federal de Minas Gerais (DESA/UFMG), no qual atua como professor voluntário. Desde 2014 é pesquisador do Instituto René Rachou (IRR/Fiocruz), e então convidado para a representação científica da ONU em sua especialidade. Recentemente, o abrasquiano foi titulado Doutor Honoris Causa pela University of Newcastle, do Reino Unido.

Heller fará a comunicação Guimarães Rosa, democracia, direitos humanos, saúde e desastres: onde estão as intercessões? A partir de lentes que trazem as relações interpessoais múltiplas, com seus interesses muitas vezes antagônicos para o primeiro plano, o conferencista irá analisar os elementos conjunturais que proporcionaram a série histórica de tragédias da mineração, questionando pela perspectiva crítica o papel das políticas públicas.

“Formular e implementar políticas públicas socialmente orientadas e que levem em conta contingências, como os inaceitáveis desastres ambientais que vêm crescentemente assolando o país, é “fugir das ideias arranjadas” e tomar em conta o “país de pessoas”, de Riobaldo/Guimarães. A chave está na democracia e nos direitos humanos, pois não há estado civilizatório fora do que seus valores representam” ressalta Léo Heller, que fecha o argumento costurando novamente com uma passagem de Riobaldo e seu pensamento roseano: Tem horas em que penso que a gente carecia, de repente, de acordar de alguma espécie de encanto. “Encanto que por vezes nos cega e paralisa…”

Abrasco: A sequência de desastres ambientais em Minas Gerais mostrou em ambas as vezes que o SUS chegou primeiro na hora dos resgates. No entanto, contrasta com a fragilidade da regulação da saúde do trabalhador/a nas áreas da mineração. Como esses dois SUS se articulam nessa triste realidade?

Léo Heller: Os desastres ambientais, que têm sido enquadrados como “acidentes de trabalho ampliados”, são sintomas da disfuncionalidade das instituições e das políticas públicas. Os trágicos acontecimentos em Minas Gerais poderiam ter sido perfeitamente evitados, poupando vidas e violações de direitos humanos. A regulação das atividades minerárias no Brasil vem sendo crescentemente fragilizada, com o enfraquecimento dos órgãos ambientais, com a maior permissividade da legislação ambiental e com processos de licenciamento pouco responsáveis e não respaldados em evidências e, precisa ser dito, com forte influência das próprias empresas em todas as etapas. Além disso, o distanciamento desses processos em relação a setores fortemente relacionados, como o da saúde, é histórico, e tem duas direções: a atividade minerária não se sente passível de regulação pelo setor saúde e o setor saúde atua muito precariamente em determinantes sociais e ambientais para a saúde humana. Então, se o setor saúde vem demonstrando boa capacidade de mobilização e resposta para atender essas emergências, e o caso de Brumadinho é notável, ele tem se mostrado omisso na incidência sobre os fatores que desencadeiam essas emergências.

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Abrasco: A cada dia as mudanças climáticas e ambientais causam mais impacto na saúde humana. E, infelizmente, ganham pouca ou baixa atenção das autoridades políticas. Qual o papel dos sanitaristas nesse debate?

Léo Heller: Mudanças climáticas necessitam ser um elemento a ser considerado em todos os planejamentos de políticas públicas, em todas as partes do mundo. Não se admite mais surpresas e imobilismo frente a eventos extremos, pois as evidências científicas não têm deixado dúvidas quanto à sua ocorrência. Esses eventos continuarão a acontecer, e de forma cada vez mais agravada. Chuvas, calor e frio extremos, secas, enchentes, inundações, maremotos são fenômenos que afetam a saúde humana, de forma aguda ou crônica. O desafio é que não temos controle sobre quando e como ocorrerão. Logo, requerem do poder público um planejamento flexível, adaptável a eventos pouco previsíveis. Isto vale para cuidados assistenciais, mas também para a promoção e prevenção. Vale também para outros setores, cujas deficiências afetam potencialmente a saúde, como ambiente, saúde, transportes, educação, planejamento urbanos e regional, atividades econômicas.

Abrasco: Além do ciclo de desastres da mineração vemos o aumento das queimadas na Amazônia e agora o derramamento de óleo no litoral nordestino. Por sua atuação como Relator Especial da ONU, qual e como tem sido a recepção do Brasil de Bolsonaro na comunidade internacional?

Léo Heller: Os desastres vêm chamando muito a atenção da comunidade internacional, não necessariamente devido à ausência de medidas preventivas, uma vez que em alguns casos as raízes da ocorrência foram anteriores ao atual governo – rompimento das barragens – ou possivelmente não provocados por ações ou inações do governo, como o derramamento de óleo. O que tem chamado a atenção é a insuficiente resposta e, muitas vezes, certa negação da gravidade dos efeitos desses desastres. Como minha área de atuação são os direitos humanos, nesse campo tenho visto muitas preocupações e reações negativas ao Brasil por parte de outros países, tanto em atos praticados no país (a ameaça de retorno do AI-5 é um exemplo de postura que gerou muita perplexidade), quanto posições adotadas pela diplomacia brasileira nas negociações de tratados internacionais, por exemplo rejeitando menções à igualdade de gênero ou ineditamente apoiando o embargo a Cuba. Eu poderia me estender com muitos exemplos, mas sintetizo dizendo que a comunidade internacional nota um realinhamento das posições brasileiras, anteriormente mais próximas à dos países democráticos e à dos países em desenvolvimento, chamados de não-alinhados, e atualmente se aproximando de posições retrógradas e conservadoras de países avessos à agenda dos direitos humanos.

Abrasco: Frente ao atual quadro, quais proposições ou apontamentos a sociedade brasileira deveria se preocupar para uma melhora da proteção social em saúde e como as ações de vigilância sanitária devem ser articuladas nesse sentido?

Léo Heller: Eu procuro evitar uma formulação prescritiva nesse caso, uma vez que não se tratam de meras mudanças de procedimentos, de posturas ou de normas, mas de causas muito estruturais, que vêm dilapidando a capacidade do Estado em dar continuidade e aperfeiçoar a implementação do SUS. Penso que a prioridade atual é a defesa intransigente dos princípios que moldaram – e vêm moldando – o SUS, como os da universalidade, integralidade e equidade, em uma atuação que respeita e valoriza a democracia, e sobretudo sempre enfatizar que não há justiça social sem forte presença do Estado e o consistente investimento público. Os experimentos neoliberais, que reduziram o papel do Estado, desestruturaram as instituições e entregaram para o mercado a regulação da economia, vêm produzindo pobreza e desigualdade, doença e morte. Em um país que já é um campeão da desigualdade, implementar esse modelo é trazer de volta a barbárie. É por isto que democracia e direitos humanos são os melhores antídotos contra investidas para solapamento do poder público. Riobaldo responderia à sua pergunta com uma metáfora: “O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo”. Ou, simplesmente: “Obedecer é mais fácil do que entender”.

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