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Leosmar Antônio: “Para os indígenas, é preciso demarcar o espaço acadêmico”

Quando concluiu seu mestrado, em 2014, Leosmar Antônio recebeu do xamã Terena as benções por colocar seu conhecimento à serviço da comunidade. Da terra indígena Cachoeirinha, localizada no município de Miranda, estado do Mato Grosso do Sul, ele foi o primeiro de sua comunidade a chegar à formação pós-graduada e agora celebra novo passo, com a aprovação no curso de doutorado “Epidemiologia, Equidade e Saúde Pública”, formação recém-lançada pela unidade técnica da Fundação Oswaldo Cruz em Mato Grosso do Sul em parceria da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz).

O Censo da Educação Superior 2017 traz a marca de 56.750 mil indígenas nos bancos de graduação em todo o país. No entanto, não há dados consolidados sobre a presença indígena nos programas de pós-graduação. Maria das Dores de Oliveira Pankararu foi a primeira indígena a obter o título, doutorando-se pelo programa de pós-graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) em 2006.

“Atualmente, temos indígenas ministrando aulas e coordenando cursos de graduação e fazendo gestão de instituições que prestam assistência aos povos indígenas. No entanto, para continuarmos resistindo e existindo, é preciso ‘demarcar’, além dos territórios tradicionais, o espaço acadêmico da pós-graduação e da docência no ensino superior, das instituições públicas que prestam assistência, implementam políticas públicas e tomam decisões que afetam as comunidades indígenas”, argumenta Leosmar Antônio, que também é professor de biologia da rede estadual de educação do Mato Grosso do Sul, professor  do curso de licenciatura Intercultural Povos do Pantanal, oferecido pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), e coordenador do Coletivo Ambientalista Indígena de Ação para Natureza, Agroecologia e Sustentabilidade (CAIANAS).

Ele conquistou uma das 15 vagas do novo curso, coordenado por Carlos Coimbra Jr., Rui Arantes e James R. Welch, todos pesquisadores da ENSP/Fiocruz e integrantes do Grupo Temático Saúde Indígena (GTSI/Abrasco). “É sempre muito bem-vinda a entrada de alunos indígenas nos programas de pós-graduação no país, pois espera-se que, com isso, possamos aproximar mais as grandes lacunas que separam ‘indígenas’ de ‘não-indígenas’ no Brasil” destaca Coimbra, ressaltando que o curso preenche uma importante lacuna da formação em saúde coletiva por atender prioritariamente ao público da região Centro-Oeste. As aulas começarão em março.

“O curso tem como objetivo proporcionar a formação de epidemiologistas especializados não somente em técnicas e métodos de pesquisa, mas também nas dimensões sociais e desdobramentos filosóficos, possibilitando que os doutorandos e as doutorandas desenvolvam diálogos de seus objetos de estudo com demais áreas correlatas, em particular com as ciências sociais em saúde. Sem sombra de dúvida, este é um desafio para a formação de epidemiologistas, mas que se justifica diante da necessidade de renovar as tradições que marcam o campo da saúde coletiva no Brasil”, completa o abrasquiano.

A proposta apresentada por Leosmar Antônio visa estudar a relação das alterações ambientais e o sistema de saúde-doença do Povo Terena, considerando os processos sociais, políticos, econômicos, territoriais, ambientais, entre outros, os quais esse povo esteve inserido. “Meu objetivo para esta pesquisa é pensar como as mudanças ambientais refletem no perfil epidemiológico e quadro de saúde do Povo Terena”. Leia trechos da entrevista, feita especialmente para o Especial Abrasco – ABA sobre a questão indígena no Brasil:

Abrasco: Qual a maior ou a principal dificuldade que um indígena enfrenta ao ingressar em uma seleção tão concorrida como a do doutorado?

Leosmar Antônio: É importante que os programas de pós-graduação pensem mecanismos de ingresso que estejam concatenados com os contextos indígenas. Somos alfabetizados nas nossas línguas maternas e, normalmente, para ingresso nos programas de pós-graduação, é necessário proficiência de língua estrangeira que, no caso de candidatos indígenas, seria uma terceira língua, uma vez que o português é um segundo idioma.

Outro sentido é a consideração dos conhecimentos tradicionais. Em muitos casos, é desafiador, enquanto indígena, convencer uma banca de seleção da viabilidade da proposta de pesquisa, pois são construídas numa perspectiva de coletividade, buscando melhorias para os povos indígenas e, ao mesmo tempo, contribuindo com o desenvolvimento da ciência e das instituições de pesquisas. Os profissionais indígenas são considerados instrumentos em sua comunidade e o diploma é fruto da luta dos nossos ancestrais, do movimento indígena.

A percepção que tenho é que, na maioria dos casos, os estudantes purutuyes (não indígenas, na língua Terena) “vivem em função do currículo Lattes”. Já os estudantes indígenas vivem em função do seu povo, na luta diária pelo fortalecimento da resistência indígena, construindo alternativas a uma variedade de adversidades que suas comunidades enfrentam e, tendo ainda de alimentar seus currículos com produções científicas.

Abrasco: Qual a importância de ser o primeiro indígena da tua etnia nas frentes acadêmica, profissional e social?

Leosmar Antônio: É desafiador desconstruir e descolonizar muitas ideologias, filosofias e conhecimentos que se estabeleceram nas instituições de ensino e, ainda, fazer com que seja reconhecida a importância da ciência indígena.

Esta é uma luta diária, pois, no momento em que buscamos a promoção da autonomia indígena, muitos processos ocorrem concomitantemente no sentido contrário. O momento que nossas comunidades vivenciam é resultado de longos processos sociais, políticos, econômicos, territoriais, ambientais, entre outros, que promoveram uma série de crises. Viabilizar uma alternativa nos impõe a difícil tarefa de pensar de forma sistêmica e convergente.

O fato de a educação escolar nas aldeias ser gerida no âmbito da estrutura dos estados e municípios, num sistema burocrático e subordinado a decisões político-partidárias, por exemplo, dificulta a efetivação da educação indígena diferenciada que atenda as expectativas dos povos indígenas. Aí também está a importância de termos doutores indígenas nas mais diversas áreas para, em conjunto, construir uma saída para este momento atual que nosso povo enfrenta.

Abrasco: O que espera e como vê a área da Saúde Pública na perspectiva indígena?

Leosmar Antônio: A nossa concepção de saúde-doença é diferente do entendimento da Biomedicina. Nós compreendemos a saúde e doença para além do aspecto biológico e fisiológico. Nosso sistema de tratamento e cura de doença tem um alcance espiritual, cosmológico. A área da saúde pública precisa abrir espaço para outras alternativas terapêuticas, inclusive, o sistema médico indígena que há milhares de anos cuida da vida dessas comunidades. É necessário que a Saúde Pública considere o quadro de saúde e perfil epidemiológico dos povos indígenas, acima de tudo, a partir da dimensão territorial.

Abrasco: Como vê o SUS na perspectiva do subsistema de saúde indígena?

Leosmar Antônio: Não podemos negar que a reestruturação da saúde indígena nos últimos anos, com a criação dos distritos sanitários especiais indígenas (DSEI), foi um avanço importante, embora, diante do atual contexto político, está sob sérios riscos de ser extinta e municipalizada. Mesmo sem autonomia administrativa dos DSEI, há distrito que, a partir da luta de lideranças, compuseram equipes multidisciplinares de saúde com antropólogos, biólogos, entre outros, dada a complexidade e dinamismo do quadro de saúde indígena.

Contudo, percebo que pouco se efetivou a Política Nacional de Saúde Indígena, uma vez que, de maneira geral, as comunidades indígenas ainda estão altamente dependentes de um sistema medicalizado de saúde. No SUS não se criou condições para participação de agentes tradicionais (xamãs, curandeiros, parteiras, raizeiros, etc.) no processo de tratamento e cura de doenças dos indígenas. Sempre vejo pastores evangélicos e padres nos hospitais, mas, nunca vi um xamã fazendo seu trabalho no cuidado com um paciente indígena.

Abrasco: Qual o principal ensinamento que transmite a teus alunos indígenas?

Leosmar Antônio: É sempre importante reiterar que a terra onde estamos e os recursos naturais nela existentes são um legado dos nossos antepassados e, nesse sentido, devemos deixar um lugar melhor do que encontramos às futuras gerações. Que os nossos conhecimentos tradicionais são tão verdadeiros e importantes quanto os da ciência ocidental. Não são atrasados e nem empecilho ao desenvolvimento, mas sim uma alternativa para a humanidade.

Assista à fala de Leosmar Antônio feita durante oficina do Projeto de Sistematização da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA) junto ao Núcleo de Agroecologia, Extensão, Pesquisa e Ensino “Saberes Tradicionais do Mato Grosso do Sul”, realizada no primeiro semestre de 2017:

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