A Marco Zero Conteúdo conversou esta semana com a especialista Lia Giraldo, a profissional mais experiente de Pernambuco e uma das mais experientes do Brasil em contaminação por materiais tóxicos. Num papo de quase uma hora em sua sala no Instituto Aggeu Magalhães, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), ela teceu fortes críticas à omissão com a saúde e o meio ambiente no desastre do petróleo que atingiu os nove Estados do Nordeste e também o Espírito Santo e que segue impune há quase três meses. Ela diz estar perplexa com a situação e afirma não haver justificativa para tanto sigilo.
Lia é doutora em Ciências Médicas e pesquisadora titular aposentada da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Pioneira nos estudos sobre contaminação por benzeno (substância encontrada no petróleo), é uma cientista atuante na área da saúde pública. Nascida em São Paulo capital, trabalhou por 21 anos na região da Baixada Santista. Sua grande escola, porém, foi a região de Cubatão, onde houve, nas décadas de 1980 e 1990, graves problemas ambientais incluindo uma epidemia por intoxicação de benzeno.
Morando no Nordeste há muitos anos, Lia também integra o Grupo Temático Saúde e Ambiente da Associação Brasileiro de Saúde Coletiva (Abrasco). Apesar de aposentada, continua na ativa como docente no Programa de Pós-graduação em Saúde Pública no Instituto Aggeu Magalhães e no Doutorado em Saúde, Ambiente e Sociedade da Universidade Andina Simón Bolivar (visitante), em Quito, no Equador.
Na sua avaliação e pela sua experiência, quais são os efeitos do contato com o petróleo nesse desastre a curto, médio e longo prazos?
O petróleo é uma mistura de hidrocarbonetos aromáticos policíclicos, às vezes também sulfúricos e com outros produtos, como metais. Alguns desses produtos têm uma penetração muito rápida no organismo por contatos pelas vias aéreas, pela pele e até por ingestão. A quantidade não é muito importante no processo da intoxicação crônica. Os efeitos agudos é que dependem mais da quantidade e também da susceptibilidade da pessoa – se ela é, por exemplo, mais alérgica, se tem desnutrição, se é uma criança, se é mais magra ou gorda. Isso porque os produtos são lipofílicos, têm afinidade com a gordura, vão para os tecidos gordurosos e vão sendo liberados aos poucos. Então pode-se ter efeitos agudos e subagudos, mesmo meses depois.
Além disso, não se trata de uma única substância, é um conjunto. Então, no organismo, elas são metabolizadas e, nesse processo, há interações. Há uma variação de pessoa para pessoa e também uma variabilidade da exposição. Então por isso temos que valorizar todos que foram expostos, agudos, subagudos e crônicos. O grande problema desses crônicos é que, além da gravidade, as pessoas não fazem a relação com a exposição. Depois de um tempo, elas esquecem e os profissionais de saúde não perguntam. E aí a doença muitas vezes é confundida com outra causa e institui-se um tratamento que pode até complicar o quadro.
Nos efeitos mais agudos, tem-se principalmente os distúrbios relacionados ao sistema nervoso central porque, ao entrar no organismo, esses produtos vão direto para o cérebro e dão manifestações como tontura, vômito, efeito de embriaguez, perda de atenção, tremor, distúrbio de visão e até perda auditiva. Gestante expostas podem ter efeitos no concepto, desde os mais leves, como baixo peso ao nascer, até má formação congênita. Em Cubatão, tivemos casos de anencefalia, quando não há cérebro, por exposição a hidrocarbonetos aromáticos. A literatura científicas tem muita informação sobre isso.
Não quer dizer que isso vai acontecer, isso pode vir a acontecer. Então, as pessoas precisam ser alertadas e é necessário fazer o monitoramento das populações através de uma vigilância até para, caso aconteça, termos uma linha de base para comparar antes e depois dessa tragédia. Por isso, a pesquisa é importante. Porque já não temos medidas de prevenção, o desastre já aconteceu e a exposição também. Claro que há pessoas que continuam expostas, as que residem nos lugares afetados. Nesse caso, temos que ter um cuidado ainda mais intenso.
Essa política pública de vigilância está sendo feita?
Eu não sei por que tanta confusão diante de uma coisa que é relativamente já estabelecida. Nós temos um Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica para doenças infectocontagiosas, transmissíveis. Quando entra no campo dos agravos, das doenças relacionadas a fatores externos, acidentes e intoxicações exógenas, a rede de saúde não foi treinada. Quando foi instalada a Vigilância Epidemiológica de doenças transmissíveis, a rede foi capacitado várias vezes para saber o que fazer e ter os protocolos bem estabelecidos. Municípios e estados podem ter uma resolução para dizer “olha, para essas áreas aqui atingidas, vamos fazer um acompanhamento mais próximo, estabelecer fluxos”.
Isso é muito simples, a própria ficha de notificação de intoxicação exógena a nível nacional pode ser adaptada para essa situação. Ela tem campos pré-estabelecidos, e só a exposição já merece a notificação na medida em que o efeito pode acontecer a longo prazo.
Então todas as pessoas acometidas ou expostas deveriam ser notificadas, registradas no SUS (Sistema Único de Saúde) e passar por consultas de uma vez a cada seis meses nos dois primeiros anos. E, depois, uma vez por ano, durante 10 anos, no mínimo. E isso ainda não está acontecendo. O que saiu recentemente no boletim epidemiológico a nível nacional é de só notificar o caso exposto se for sintomático. Se não for, ele terá uma espécie de registro, mas não terá notificação. Mas para se fazer vigilância de longo prazo, é preciso notificar e investigar.
Tem que haver protocolos de acompanhamento que dizem, por exemplo, vamos fazer um exame hematológico, um teste neurológico, verificar se há outros queixas, se é preciso investigação citogenética. Isso tudo pode ser programado e ser realizado porque o sistema de saúde tem condições de fazer isso.
Como a senhora se sente diante dessas falhas?
Eu, como sanitarista, fico constrangida de ver tanta confusão e diz-que-diz em cima de uma coisa tão simples do ponto de vista normativo, pois há base de conhecimento científico. É só uma questão de organizar, nas áreas acometidas, o sistema de saúde para todos que se expuseram: crianças, voluntários, garis, pescadores, etc. O Sistema de Vigilância é nacional, mas estados e municípios, segundo suas especificidades, podem fazer uma ampliação desse sistema. Não se pode restringir, mas pode-se ampliar por razões peculiares da localidade. Como temos uma cultura de tudo depender do nível federal, está todo mundo aguardando que o Ministério da Saúde dê as diretrizes e se perde tempo com isso, o nível federal é mais lento para tomar atitudes.
Quando a Abrasco solicitou que fosse decretada emergência de saúde pública, era justamente para organizar o sistema na base, no local das ocorrências. Isso deveria ser feito sempre que tivéssemos uma situação em que a rede não está preparada, e a extensão desse desastre é muito grande. Estou sendo solicitada para dar orientações sobre coisas básicas que já deveriam estar internalizadas do processo. Há literatura, há manuais estabelecidos pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pela Organização Pan Americana da Saúde (Opas).
Em 1984, São Paulo fez para Cubatão uma vigilância para cinco agravos por causa do processo de poluição que havia lá e conseguimos descobrir uma epidemia de benzenismo que sequer era conhecida antes. Tínhamos algumas evidências, havia algumas denúncias de doenças ocupacionais aumentadas e o estado tomou a frente para fazer uma vigilância especializada específica para o município.
Poderíamos ter, para toda a costa brasileira, uma vigilância para comunidades afetadas, aqueles que trabalham na limpeza e os voluntários. Essa é uma medida de saúde pública muito básica. Eu fico constrangida como sanitarista de ver a dificuldade de se colocar isso em prática. Não são conhecimentos novos, coisas que não se sabe ou que não tenha dispositivos técnicos e legislação. Nós temos todas as ferramentas e deveríamos estar fazendo isso desde o começo do derramamento.
Por que essas medidas não estão sendo tomadas?
Essa situação é um indicador de que estamos com os profissionais de saúde pública amarrados. Há medo de se tomar iniciativas, de fazer as coisas acontecerem. Há burocratização, criação de problemas onde não há problemas. É medo de que a população saiba das coisas, discuta e reivindique. É medo de conflitos. Mas a área da saúde pública existe justamente para resolver conflitos, que são inerentes aos problemas de saúde pública, especialmente quando há questões ambientais e ocupacionais, porque envolvem questões econômicas. Nós temos que desembrulhar essa confusão, temos que ajudar a população a compreender o problema para que ela seja partícipe do processo de vigilância, que não pode ser feito só a quatro paredes.
Eu acredito que quanto mais se instituem carreiras públicas estáveis por concurso mais liberdade o servidor tem de atuar. Quando se criam processos de indicações políticas para cargos de gestão – e às vezes nem é gestão de alto escalão – começa um processo de amarração porque os conflitos de interesse passam a aparecer. Começa uma ocultação dos problemas porque vai ferir interesses de um ou de outro.
A saúde pública, uma área sensível, deveria ser carreira de Estado, em que os profissionais têm que ter liberdade para atuar e poder proteger a saúde da população mesmo contrariando interesses políticos locais. Como um promotor ou um juiz, essas pessoas precisam estar protegidas e ter estabilidade. Especialmente nos municípios, há o costume, quando se elege um prefeito, de mudar todo o staff, às vezes até do Programa de Saúde da Família ou dos Agentes Comunitários de Saúde.
No caso atual do Governo Federal, estamos vivendo uma situação em que eu, na minha vida – eu tenho 72 anos e 44 anos de vida profissional -, nunca vi, nem no período da ditadura militar, tanto diz-que-diz, contrainformação e confusão por falas idiotas e contradições que desconstroem o conhecimento, o saber e as coisas já estabelecidas, criando confusão e tirando proveito da confusão para poder aparecer ou empurrar o problema com a barriga. Essas questões são seríssimas e estão sendo tratadas de forma banal.
Eu, sinceramente, nunca vi isso na minha vida. Nunca vi tamanha falta de responsabilidade e compromisso com a saúde e o meio ambiente. Estou perplexa. Já vivi como servidora pública e sempre me coloquei, independente do governo, servindo, da melhor forma que pude, ao povo e ao Estado. O que vemos atualmente é um atrelamento, uma inibição, um intimidação que eu nunca vi antes. Acho que a forma, o destrato, a indiferença, a falta de uma voz sábia e sensata está fazendo falta neste País. Uma voz que oriente, que dê rumos, que coloque os problemas na sua real dimensão, e não que tente esconder e criar desinformação. O que estamos vivendo agora é também uma insegurança por desinformação, não é só a falta de informação. Quando você cria uma confusão, é mais difícil de consertar do que quando há um erro.
Qual a avaliação que a senhora faz sobre os sigilos impostos pelo Governo Bolsonaro?
Por que sigilo? Pela Lei da Transparência, essas coisas deveriam estar em boletins com todas as informações, os resultados, as metodologias empregadas para fazer as análises, qual foi o laboratório, quem são as pessoas responsáveis, como foram coletadas as amostras. Isso é importante. Se estou querendo verificar se o peixe está contaminado, eu tenho que pegar o peixe do local afetado, não posso pegar na peixaria sem saber de onde ele veio (Lia se refere à análise do Governo Federal em parceria com a PUC/RIO, que coletou pescados congelados em peixarias). E quem sabe mais do que os pescadores e as marisqueiras para nos ajudar a indicar onde deve ser coletado esse pescado? Teve contraprova? Tudo tem que ter contraprova, não se pode fazer isso num lugar só.
E por que o segredo? Se não tem contaminação, não tem. Se tem, tem que dizer qual é. Quais são os produtos, os componentes? Tudo isso tem que ser aberto. Não se trata de uma guerra, em que você tem que ter segredo. Isso tem que ser de domínio público, os pesquisadores têm que acessar toda essa base de dados, até para podermos nos orientar e interpretar resultados. Eu fui numa reunião do governo estadual maravilhosa, com várias informações ricas, tudo feito um bunker, fechado. Por que não tinha rádio, televisão, jornalista lá mostrando para a população o que se estava discutindo? Eram medidas, informações, balanços do que estava sendo feito, e não vi nada na imprensa.
Não tem por que não abrir, talvez seja uma cultura militar. Isso é uma coisa tão ultrapassada, porque, você abrindo a informação, vai ter um arranjo, uma organização dos fluxos de cuidado. Senão isso gera também medo e insegurança. A minha geração de sanitarista era mais madura, éramos já mais velhos quando nos tornamos sanitaristas. Hoje vemos pessoas que terminaram a faculdade, fazem o curso de Saúde Pública e vão trabalhar como gestores e têm insegurança porque há alguém acima deles que vai dizer “isso aí não pode ser falado”. Isso inibe. Não precisamos de sistemas paralelos de monitoramento, que acabam nascendo porque o estado se omite ou atrasando demais as suas ações.
Como está a situação de quem trabalha na atividade pesqueira? Essas pessoas estão com a segurança alimentar em risco?
Quem depende da pesca para sobreviver, as populações tradicionais, os pescadores e as marisqueiras, são as maiores vítimas dessa situação. Eles estão que nem marisco: entre o rochedo e o mar, sofrendo a pressão dos dois lados. Têm uma questão de sobrevivência econômica e vivem no ambiente que foi contaminado. Estão com insegurança alimentar e sofrendo uma pressão que vai gerar um comportamento de negar o problema ou desconsiderar, banalizar tudo isso e continuar como se nada tivesse acontecido para conseguir sobreviver. Ou ficar numa situação de revolta, indignação e reação porque vão precisar se organizar e reagir para poder se defender.
Temos aproveitadores neste País que estão torcendo para que eles saíam do território, para explorar para o turismo e construir resorts. Porque eles estão nas praias mais bonitas deste País. Pode ser que tenha gente que vá se aproveitar da desgraça dessas pessoas, que têm que estar preparados para resistir nesses territórios, que são deles, eles moram lá, vivem disso. É necessário um apoio para que, enquanto a pesca não for totalmente liberada e o comércio não for restaurado, eles tenham um suporte econômico e social. A saúde pública também tem que acompanhá-los, estar do lado, acolhê-los, monitorá-los. Mas não como se fossem uma amostra de sangue, eles não são pedacinhos, eles são íntegros. É uma população que antes tinha soberania alimentar, completamente sustentável, e que perdeu essa condição por um desastre que quem tem que assumir a responsabilidade é o Governo Federal e a indústria de petróleo.
Independente do culpado, qual a responsabilidade da indústria do petróleo nesse desastre?
A indústria do petróleo contribui para um fundo porque é uma atividade de altíssimo risco para desastre. Esse recurso não foi liberado, ele deveria apoiar as populações tradicionais e dar sustentabilidade. Eu não vi até agora a Petrobras aparecer nesse problema. Na reunião do governo, se falou algo na casa de R$ 8 bilhões, é muito dinheiro. Isso tem que ser descontingenciado para esse desastre. É preciso incluir as marisqueiras nesse apoio, elas têm uma invisibilidade grande e são elas que ajudam a sustentar as famílias. Os jovens pescadores, desde 2008, não têm novas carteiras de pescadores (o Registro Geral da Pesca – RGP). Eles estão pescando com os pais que têm o registro, mas não estão legalizados. As crianças que vivem na areia e no mangue contaminado precisam ser acompanhadas no longuíssimo prazo para ter um programa especial da saúde ambiental infantil, que já tem linha da Opas e da OMS. Tudo isso é insegurança para essa população.