10 de setembro de 2013
A professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Ligia Bahia, defende em entrevista ao Cebes que as manifestações de junho significaram uma vitória para os movimentos e entidades que defendem um SUS integral e gratuito. Ela explica que o clamor por "saúde pública padrão Fifa" acalmaram o ímpeto de setores do governo que viam no mercado a melhor alternativa para oferecer saúde aos cidadãos. Ligia lembra que quem foi para a rua sabia que o plano privado não garante direitos.
Cebes – Nos últimos sete anos tem crescido o número de empregos formais, que impulsionam os serviços privados de saúde com planos empresariais. Simultaneamente, o discurso oficial é que essa nova classe de trabalhadores compõe uma "nova classe média". Como essa classificação trabalhara para legitimar diversas ações e propostas do governo para a saúde pública brasileira?
Ligia – Por meio de uma associação espúria. Deduziu-se do fenômeno de mudança na base da nossa pirâmide ocupacional a existência de uma nova classe média e daí a justificativa para a intensificação da privatização da saúde. Inventaram um álibi para a privatização: o de que a nova classe média não gosta do SUS e já que é assim é importante ampliar os subsídios públicos para os planos privados de saúde. Ou seja, projetaram por cima de um fenômeno real que o aumento da formalização dos postos de trabalho e da valorização do salário mínimo uma baita ideologia privatizante. Não existe fundamentação teórica, nem antecedentes históricos e nem mesmo bom senso mercadológico que justifique a privatização da saúde.
Cebes – As manifestações de junho recolocaram a saúde na agenda pública e fortaleceram núcleos de debates na academia, movimentos sociais e entidades históricas da reforma sanitária, por direitos e cidadania. As ruas pediam uma "Saúde padrão FIFA" e não apontavam o mercado como a saída. Os manifestantes cobravam os governos. Qual o significado desse desejo para o setor de saúde?
Ligia – Significou uma divisão de águas. Certamente existia uma agenda antes das manifestações que era nitidamente privatizante que deixou de ser o carro chefe da política de saúde governamental. Estamos vivendo nesse momento uma brutal crise. O governo insiste em tentar matar “o inimigo” encarnado nas entidades médicas com uma bala de prata e não apresenta uma proposta para a implementação do SUS. O programa "Mais Médicos" enfoca o problema dos vazios sanitários e periferias de grandes cidades. Mas as manifestações ocorreram nas grandes cidades, onde as pessoas são atropeladas por ônibus caros e ruins e não conseguem ou são mal atendidas tanto nos serviços públicos quanto nos privados. Portanto, as manifestações expressaram claramente as demandas por um sistema de saúde público bonito, abrangente e de qualidade. Palavras de ordem como "se estiver doente vá para um estádio" ou "da copa eu abro, mas não do direito à saúde e a educação" denotam o desacordo com as prioridades dos governos em relação à política pública.
Cebes – Entretanto, uma pesquisa feita pelo Ibope, divulgada em agosto, apontava que um plano privado de saúde é considerado indispensável por 96% dos brasileiros. O serviços privados ficam em terceiro lugar, atrás apenas da casa e do carro. Que leitura você faz dessa informação? Porque não existe contradição entre as ruas e a pesquisa?
Ligia – As pesquisas desse tipo apresentam uma lista fechada para os entrevistados que não contém um item como um sistema de saúde público de qualidade. Ninguém preferiria pagar por plano privado de saúde ou escola particular se as políticas universais fossem efetivas. As pesquisas de opinião são importantes, mas não para a formulação de políticas públicas. Todos querem bons serviços de saúde se público ou privado depende de governos e partidos políticos. Querer atribuir a responsabilidade pela privatização à população, aos trabalhadores recém-ingressos no mercado formal de trabalho é puro cinismo.
Cebes – Desde junho a saúde pública tem tido uma crescente exposição na mídia. Entretanto, o enfoque e discussões não mudaram. O SUS ruim, falho, sem médico, as emergências lotadas continuam sendo referência para as discussões. O privado que parasita o público não aparece. Em sua opinião, essa exposição ajuda no debate pela consolidação de um sistema público de saúde universal, igualitário e equanime?
Ligia – Pois é. Esse é um problemão. Temos que reverter esse preconceito. Não é fácil porque está super entranhado em todos nós e não adianta tapar o sol com a peneira. É necessário traçar uma estratégia que comece impedindo, por exemplo, a ultra-exposição de pacientes em serviços públicos. Mas como dizer que é um absurdo que as TV´s filmem situações super constrangedoras se o próprio governo instalou câmaras com o propósito de controlar a qualidade de algumas emergências. O preconceito é tão absurdo que os próprios governantes não se dão conta filmar pessoas sofrendo em macas nos corredores de hospitais é inútil no que diz respeito a qualidade e profundamente antiético. Esse tipo de invasão pública (consentida e utilizada pelo governo) e de empresas de comunicação públicas e privadas não ocorre nos serviços privados.
Cebes – Descartando a possibilidade de que o privado seja um complemento para o público e que o SUS (como descrito na constituição) não é compatível com os planos que visam lucro, você tem perspectivas boas no sentido de que a relação existente hoje, prejudicial ao SUS, possa ser revertida por ações de governo em médio ou longo prazo? Por que?
Ligia – Considero que no médio e longo prazo o Brasil conseguirá efetivar o SUS universal e de qualidade porque o padrão predatório de disputa pelo fundo público que mantém a privatização da saúde tem sido questionado e é insustentável. Existem duas perspectivas opostas o investimento no SUS ou na privatização. No entanto, as coalizões governamentais empurraram esse conflito com a barriga e na prática a privatização ganhou novos espaços. Mas quem foi para a rua sabe que o plano privado de saúde não atende direito e se manifestou veementemente pelo fortalecimento do sistema público. O significado de “enfia 0,20 no SUS” é obvio.