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Lígia Bahia: a invenção do isolamento vertical e certeza da fragilidade humana

Comunicação Abrasco, com informações de O Estado de S. Paulo

Foto: George Magaraia/Abrasco

Em entrevista à jornalista Cecília Ramos, da coluna Direto da Fonte, do jornal O Estado de S. Paulo, Lígia Bahia, médica sanitarista, professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (IESC/UFRJ), e integrante da Comissão de Política, Planejamento e Gestão da Abrasco, aumenta o coro na defesa do pensamento científico : “Isolamento vertical é uma invenção política, sem fundamento científico”, diz a abrasquiana.

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“O coronavírus não escolhe vítimas levando em consideração a faixa etária ou social”, completa a abrasquiana, que destaca como grande lição da pandemia a defesa do SUS, da ciência, e a consciência da fragilidade humana. Leia abaixo e confira aqui a publicaçao original.

Estadão: Que riscos corremos se o Brasil quebrar o isolamento domiciliar agora?
Lígia Bahia: Estamos no início do crescimento da epidemia no Brasil e justamente no momento de buscar reduzir ao máximo os contatos para retardar a velocidade de disseminação. Esse intervalo temporal é essencial para evitar sobrecarga aos hospitais, ganhar tempo para expandir a rede assistencial.

Estadão: O que pensa sobre o isolamento vertical? A Inglaterra, por exemplo, tentou mas voltou atrás…
Lígia Bahia: É uma invenção política, sem nenhum fundamento científico. É política porque tenta identificar o “inimigo” e o “aliado”. Mas o coronavírus não escolhe suas vítimas considerando condição etária ou social. O vírus infecta seres humanos, não escolhe raça, cor, idade, condição social, sexo. Os idosos são mais suscetíveis a desenvolver quadros graves causados pela Covid-19 mas os jovens também ficam doentes e alguns infelizmente muito doentes. Portanto, o isolamento, o distanciamento social, é para todos ou não tem sentido.

Estadão: Considerando a origem do coronavírus, ele é uma doença da classe média, ‘importada’ e de alta transmissibilidade. Mas ainda se desconhece com qual velocidade vai se espalhar em comunidades onde existe grande aglomeração. O que se sabe dessa transmissão?
Lígia Bahia: Os casos no Brasil evidenciam transmissão comunitária e um padrão de disseminação rápido – similar a de países que demoraram para adotar estratégias de distanciamento social.

Estadão: Quais orientações a senhora dá para as pessoas das comunidades ou que moram com muitos familiares?
Lígia Bahia: Lavar as mãos sempre, muitas vezes por dia. Tentar não sair de casa e se precisar higienizar roupas e sapatos – se possível deixar do lado de fora ou na entrada da casa. Se alguém da moradia apresentar sintomas, tentar usar máscara ainda que de pano, pode improvisar, e separar copos, talhares e pratos, toalhas e roupa de cama.

Estadão: A pandemia jogou luz na necessidade de investir em ciência?
Lígia Bahia: Estão postas duas coisas muito claras: a importância da ciência e do SUS. Sem a ciência, a pesquisa, a universidade não vamos desenvolver vacina, testar medicamento, produzir kits diagnósticos e não vamos enfrentar nem essa nem outras pandemias que virão. E sem o SUS seria muito pior. É preciso que o governo reconheça qualificado o sistema à altura, e assim, que ele seja melhor financiado. A gente não pode brincar com isso.

Estadão: No ano passado, o governo federal fez cortes em bolsas do Capes para mestrados e doutorados, reduziu em mais de 40% o orçamento do Ministério da Ciência e Tecnologia… Tem expectativa de que agora voltarão a investir mais em pesquisa?
Lígia Bahia: Pois é. Os recursos foram cortados pela metade e está se fazendo agora das tripas coração, mas as tripas não constroem um coração. É preciso muito mais dinheiro para a ciência no Brasil. Inclusive para constituir uma rede de pesquisa de vírus. A gente conseguiu avançar na pesquisa do zika, mas ainda tínhamos recursos.

Estadão: Pesquisadores e autoridades da área médica falam, diante desta pandemia, para nos prepararmos para o pior…
Lígia Bahia: Então… Pois é. Isso é científico. É pesquisa, não é pessimismo. Nós da universidade temos projeções que isso vai durar mais dois a três meses. É muito duro. Com essa pandemia, fica claro também a fragilidade humana. Nos lembra que não há imortalidade. Nos conscientiza da nossa fragilidade. E é ela que nos impõe a buscar saídas, sermos mais solidários, valorizarmos a pesquisa, o estudo, a ciência, a medicina. E também nos questionar: quem vai cuidar de quem cuida? Todo dia temos notícias de médicos, enfermeiros, a linha de frente infectada.

Estadão: Como essa linha de frente pode se proteger?
Lígia Bahia: A gente está nesse estágio da pandemia agora, com vários médicos, inclusive infectologistas, infectados e com sintomas. Os serviços de saúde estão tomando uma medida, a meu ver, acertada neste estágio, que é a de proteger os profissionais mais velhos. Os mais jovens estão passando para a linha de frente e mesmo eles precisam ser testados pra Covid-19 o tempo todo. Os mais experientes, com mais idade, estão indo para a retaguarda.

Estadão: Temos visto gente jovem também morrer de coronavírus…
Lígia Bahia: Aumentamos a população idosa, mas ainda não chegamos a ter uma parte tão significativa como existe na Itália, Espanha e Reino Unido. Ainda somos um País jovem. Portanto, temos que ter, sim, preocupação com a população jovem. Inclusive pelos casos graves que vêm se confirmando com jovens aqui. Essa coisa de dizer que só é para isolar grupo de risco, idoso, etc, é uma bobagem irresponsável.

Estadão: Bolsonaro tem sido contra isolamento social…
Lígia Bahia: Aí é a tragédia elevada ao quadrado. Nós brasileiros tivemos o azar de ter um presidente da República como ele justamente no momento dessa tragédia sanitária. Bolsonaro vem mantendo uma indiferença moral em sucessivos pronunciamentos e entrevistas. Chega a dizer que pessoas vão morrer mesmo. São atitudes desumanas, irresponsáveis. Note que há mais pessoas nas ruas depois que ele se pronuncia. Nos estarrece, mas ainda esperamos que ele mude de posição.

Estadão: Dos 27 governadores, alguns mudaram de posição também, como Wilson Witzel, do Rio. E a maioria afirma seguir “a ciência” para combater a Covid-19. Vê acertos?
Lígia Bahia: É interessante essa união. Ações conjuntas ganham mais força. Estão certos em seguir com o isolamento. Pegue o caso do Rio, que você citou. Nosso governador (Witzel) é muito polêmico. No início, reagiu mal à pandemia, mas mudou de posição e começou a acertar, ao adotar o afastamento social e dar declarações públicas com base na OMS e no Ministério da Saúde. Já o prefeito Marcelo Crivella está muito mal nesse processo. Mandou abrir o comércio e diz que prefere ouvir autoridades religiosas do que autoridades científicas.

Quem são as pessoas públicas que estão contribuindo neste debate de enfrentamento à Covid-19?
Lígia Bahia: O Drauzio Varella, por exemplo, é um ‘ministro da Saúde’ eterno. Médico extraordinário, humano. E que faz diferença num momento em que a informação correta pode salvar vidas. Esta não é uma ‘gripezinha’, definitivamente. Eu destaco também o papel que podem ter os ex-ministros da Saúde. Esses deveriam ser convocados para ampliar o debate, a busca de soluções e ações práticas. Tem o José Serra, o Saraiva Felipe, o José Gomes Temporão. Ou seja, gente de diversos partidos políticos. São pessoas com enorme capacidade de reflexão.

Estadão: Como avalia o ministro Mandetta, que é médico?
Toma medidas acertadas, responsáveis, a meu ver. O Mandetta sair agora seria um desastre, mas há risco.

Estadão: Embora cada país tenha sua realidade, em qual deles o Brasil pode se inspirar?
Lígia Bahia: Podemos aprender com países cujos presidentes e primeiros-ministros estão liderando a implementação de medidas sanitárias e econômicas adequadas, como na França. O presidente Macron não hesitou em apresentar um plano, que não ficou só no papel, Ele destaca estratégias de distanciamento social que estão compatibilizadas com apoios sociais e financeiros tanto para a população bem como para empresas.

Estadão: Que lições podemos tirar disso tudo?
Lígia Bahia: Tivemos dois meses, entre a declaração da pandemia pela OMS e os primeiros casos de morte no Brasil. Mandetta acertou, por exemplo, em logo pedir decreto de emergência. Mesmo assim os recursos demoraram a chegar. Ações concretas, idem. Precisamos responder rápido. O auxílio emergencial tem que chegar, de fato, na mão do trabalhador para ele ficar em casa. E, de novo, precisamos do trabalho de base na área médica, do agente de saúde, da valorização do SUS. Defenda o SUS, a ciência, a medicina e tenhamos consciência da fragilidade humana.

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