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Luta antimanicomial: 4 razões para votar contra o PL 1637/2019

Foto: Divulgação

Entidades e associações científicas e profissionais componentes da Frente Parlamentar Mista de Saúde Mental vêm solicitar a rejeição do PL 1637/2019. Além de não contribuir para a implementação da Lei nº 10.216/01, que dispõe sobre os direitos das pessoas com transtorno mental, o substitutivo aprovado na Câmara entra em choque com diversos outros direitos já estabelecidos. Principais pontos:Sustenta-se no arcaico e ultrapassado conceito de periculosidade para prever futuros comportamentos, o que não tem base normativa ou científica estabelecida;Determina prazo de internação ou sua ampliação, quando tal conduta não pode ser nem do legislador nem do juiz, pois cabe aos profissionais de saúde;Cria uma nova modalidade de medida forçada, a “liberdade vigiada” sob o motivo de “garantia da ordem pública”, o que seria na pratica oficializar a discriminação, uma vez que amplia a lógica da internação para a solução de qualquer questão; e por fim, reforça a prática do asilamento, ou seja, a privação de liberdade, por motivos vagos o que nos faria retroceder ao cenário do século passado, anterior à reforma psiquiátrica brasileira, e colocar a internacionalmente reconhecida política de saúde mental do país na contramão dos movimentos mundiais que mais avançaram em conquistas científicas e humanitárias deste campo

  1. A reforma psiquiátrica acabou com a possibilidade de internação compulsória e até mesmo com a possibilidade de internação em hospitais psiquiátricos?

Falso! O que a lei da reforma psiquiátrica de 2001 determina é que a internação seja proposta após terem se esgotado os recursos territoriais de cuidado. E mais: Caso uma internação seja necessária, é previsto que ocorra em um estabelecimento de saúde digno, com boa estrutura física e que garanta os direitos e necessidades de saúde daqueles que procuram ajuda. Não podemos esquecer que até hoje existem hospitais e comunidades terapêuticas que restringem e violam direitos humanos básicos. Além disso, a internação não é a única solução para os problemas relacionados ao sofrimento mental.

Você sabia? Diferente do que propagam, a reforma psiquiátrica e as políticas subsequentes a ela relacionadas melhoraram e diversificaram as estratégias de cuidado para as pessoas em sofrimento mental. Se nos anos 1990 tínhamos cerca de 90.000 pessoas trancadas em manicômios, e pouquíssimos ambulatórios de psiquiatria no país, hoje existem mais de 3.000 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), sendo 10% deles com leitos para acolhimento noturno, 800 serviços residenciais terapêuticos (SRTs) para os egressos de manicômios, 170 equipes de consultório na rua, 1500 equipes multiprofissionais com profissionais de saúde mental atuando nas unidades básicas de saúde e ainda 17 mil leitos qualificados de internação em saúde mental. Assim a reforma ampliou os pontos de acessos e diversificou as formas de cuidado para tratar os diferentes sujeitos em seus diferentes momentos de sofrimento e demandas de atenção.

  1. Pessoas com transtornos mentais têm maior propensão para os crimes e representam um perigo para a sociedade

Falso! As pessoas diagnosticadas com transtornos mentais são muito mais frequentemente vítimas do que perpetradores(as) de violências. Uma pesquisa na Inglaterra e País de Gales calculou que 5,3% de todos os incidentes violentos nesta região em 2015-16 foram cometidos por pessoas com transtornos mentais, o que representa apenas uma pequena proporção do número total de atos violentos cometidos em toda a população. No Brasil, o censo realizado nos 26 manicômios judiciários existentes em 2011 concluiu que não “não há periculosidade inerente ao diagnóstico psiquiátrico”, ou seja, não é possível predizer-se um tipo de ato violento, a partir do tipo de adoecimento psíquico.

No que diz respeito, em particular, aos homicídios, muitas vezes retratados como a maior preocupação nos meios de comunicação, são extremamente raros os cometidos por pessoas com psicose. São tão raros que poucos casos conseguem ser lembrados por nomes ou mesmo apelidos preconceituosos dados pela sociedade. Na verdade, os homicídios cometidos por pessoas com psicose vêm diminuindo nos últimos 50 anos, de acordo com algumas pesquisas. 

  1. A resolução do CNJ irá libertar criminosos e “pedófilos” condenados por crimes para voltarem a cometer crimes?

Falso! Em 2023 o Conselho Nacional de Justiça publicou a Resolução CNJ nº 487 que se assenta nas legislações já existentes no país, na Lei 10.216/01 (a lei da reforma psiquiátrica) e nas diretrizes e recomendações dos organismos internacionais (ONU e OMS) sobre a implementação de processos de desinstitucionalização e de cuidado humanizado para as pessoas com diagnósticos de transtorno mental. A própria Resolução apenas reafirmou o redirecionamento do modelo assistencial à saúde mental para serviços substitutivos em meio aberto, de preferência no território em que a pessoa vive, que já é uma política de Estado brasileira desde 2001. Ou seja, nada de novo foi criado, apenas reforçou uma lei de 2001, já bem consolidada, e que foi responsável pela melhoria do cuidado em saúde mental no país.

Também é importante ressaltar que a pessoa com algum diagnóstico de transtorno mental e em conflito com a Lei, cumprindo Medida de Segurança, continuará sendo acompanhada pelo Judiciário. Inclusive, em seu Artigo 13, a Resolução recomenda à autoridade judicial a interlocução constante com a equipe do estabelecimento de saúde a que o paciente judiciário seja vinculado, e que deve emitir avaliações psicossociais a cada 30 (trinta) dias. Até mesmo antes da Resolução de 2023, o acompanhamento de pessoas absolvidas e que cumprem medida de segurança pelo SUS ocorre seguindo as premissas da lei 10.216 em estados como Goiás, Minas Gerais, Pará e Piauí. Exatamente para uniformizar tal legalidade para todos os outros estados que não seguiam a lei, o Poder Judiciário criou a Resolução CNJ n. 487/2023 e o CNJ.

  1. Segregar pessoas com transtornos mentais é a melhor forma de cuidar e reabilitar esses cidadãos?

Falso! O vasto compilado de denúncias e produções científicas acerca do tema demonstram o quão falso é o argumento de que prender e isolar as pessoas seja uma forma adequada de cuidado. A segregação de pessoas em sofrimento psíquico, distante de suas redes de apoio e de atenção em saúde, aumenta a taxa de mortalidade de cidadãos que, muitas vezes, para além dos problemas mentais possuem outras morbidades clínicas. Além disso, artigos também apontam que hospitalizações prolongadas são traumáticas, pioram a relação das equipes de saúde com os usuários dos serviços e podem levar a uma piora clínica de pessoas com diagnóstico, ao invés de ajudá-las.

A substituição progressiva do manicômio por serviços regionalizados, desde a promulgação da lei da reforma psiquiátrica, aumentou o acesso a tratamentos , fomentou a ampliação da rede de atenção em saúde mental e foi um grande avanço no cuidado em saúde mental. Assim, serviços territoriais, próximos aos locais em que as pessoas vivem, possuem capacidade de contextualizar os problemas vividos para além dos diagnósticos, relacionando o sofrimento mental e seus sintomas a determinantes sociais e dinâmicas de vida. Desenvolve-se, portanto, um cuidado que não apenas diminui o sofrimento humano, do usuário e das pessoas em seu entorno, mas também produz autonomia e amplia os laços sociais.


Referências

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Brasil, Ministério da Saúde. DADOS DA REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL (RAPS) NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS). Secretaria de Atenção Primária à Saúde (Saps). 2022. 

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Jones N, Gius BK, Shields M, Collings S, Rosen C, Munson M. Investigating the impact of involuntary psychiatric hospitalization on youth and young adult trust and help-seeking in pathways to care. Soc. Psychiatry Psychiatr Epidemiol. 2021 Nov;56(11):2017-2027. 

Kemper, Maria Lenz Cesar. Desinstitucionalização e saúde mental de privados de liberdade com transtornos mentais: a experiência do Rio de Janeiro, Brasil. Revista Ciência & Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, 27 (12): p. 4569-4577, 2022. 

Nascimento, Milene Santiago; SILVA, Martinho Braga Batista. Desinstitucionalização em debate: uma etnografia em eventos de saúde mental. Revista Saúde em Debate. Rio de Janeiro. v. 44, n. especial 3, p. 33-44, out. 2020. 

OMS. Organização Mundial de Saúde. Orientações sobre Serviços Comunitários de Saúde Mental: Promoção de Abordagens Centradas na Pessoa e Baseadas em Direitos. Brasília, DF: OPAS; 2022.

Senior, M ∙ Fazel, S ∙ Tsiachristas, A. The economic impact of violence perpetration in severe mental illness: a retrospective, prevalence-based analysis in England and Wales. Lancet Public Health. 2020; 5:e99-106

 Thornicroft, G. Danger or disinformation: the facts about violence and mental illness. Thornicroft, G. Shunned: discrimination against people with mental illness. Oxford University Press, Oxford, 2006; 125-149

Taylor, PJ ∙ Gunn, J. Homicides by people with mental illness: myth and reality Br J Psychiatry. 1999; 174:9-14

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