Os jornalistas Pedro Capetti* e Marlen Couto do jornal O Globo ouviram a pesquisadora Ligia Bahia, da Comissão de Política, Planejamento e Gestão em Política da Abrasco sobre o déficit de profissionais nos municípios que tinham os médicos de Cuba. O reportagem foi publicada na edição deste domingo, 26 de maio.
Seis meses após o governo de Cuba anunciar sua saída do Mais Médicos , quatro em cada dez cidades brasileiras (42%) onde profissionais do país atuavam no momento do encerramento da parceria ainda não conseguiram preencher todas as vagas ofertadas no programa. O déficit de médicos nessas 2.853 cidades cresceu. Antes da saída dos cubanos, em outubro, 23% desses municípios tinham postos em aberto, em decorrência da desistência de brasileiros ou da não renovação de contratos com duração de três anos.
O levantamento do GLOBO comparou dados do Mais Médicos de novembro, quando houve a saída dos cubanos, e do fim de abril deste ano, considerando o total de 18.240 vagas do programa, com base em pedidos de acesso à informação respondidos pelo Ministério da Saúde .
MAPA DA FALTA DE MÉDICOS
Cada ponto representa um município que era atendido por médicos cubanos do programa Mais Médicos e que estava com algum déficit de vagas até o fim de abril.
Os municípios que abrigaram os profissionais estrangeiros concentram hoje 80% do déficit registrado no programa. A maior parte está nas regiões Nordeste (38%) e Sudeste (24%). Entre os estados, a Bahia lidera o ranking com maior número de vagas desocupadas (eram 132 em abril), seguida por São Paulo (131) e Minas Gerais (103).
O Ministério da Saúde argumenta que todas as 8.517 vagas do edital do Mais Médicos, lançado após o fim da cooperação com Cuba, chegaram a ser preenchidas por brasileiros, mas ressalta que 1.325 profissionais com registro no Brasil se desligaram do programa nos últimos meses. A desistência fez com que o déficit fosse ampliado.
A falta de estrutura do programa foi agravada após o governo de Cuba anunciar, unilateralmente, o fim do acordo para ceder profissionais ao Brasil. A decisão aconteceu logo após a vitória do presidente Jair Bolsonaro, crítico da parceria. Os médicos cubanos ganhavam cerca de 30% do valor integral dos salários pagos pelo Brasil. O restante ficava com o governo cubano.
Sem emergência
Em 139 cidades, a situação é mais delicada: não conseguem ocupar nenhuma das vagas ofertadas pelo último edital. Um terço desses municípios é classificado pelo governo como vulnerável ou de extrema pobreza. Mais de 60% estão no Nordeste.
É o caso de Candeal, cidade no interior da Bahia com pouco mais de 9 mil habitantes, classificada como vulnerável. Até outubro, dois médicos cubanos atendiam nos dois pontos de saúde da cidade. A reposição foi feita em poucos dias, mas há três meses os profissionais deixaram o município para fazer residência médica em outros centros. Sem médicos, moradores têm que andar cerca de 20 quilômetros para ter atendimento na emergência.
— Programas de saúde básica que existem, como saúde da criança e mental, não estão acontecendo. Estamos encaminhando todos para o hospital. Os médicos que atendiam na emergência estão fazendo ambulatório, mas a repercussão é muito negativa para a população. Tenho que gastar com transporte dessas pessoas para que tenham atendimento — afirma Kamila Santiago, secretária de saúde da cidade.
Candeal ainda tem uma médica cubana remanescente do programa, mas impossibilitada de trabalhar. Yanay Indira Quezada, de 35 anos, deixou o Brasil após o fim do contrato com seu país, mas retornou em janeiro na tentativa de reingressar no Mais Médicos com o Revalida. Com ajuda do prefeito, trabalha em uma farmácia até que consiga revalidar o diploma.
— Somos muitos sem trabalho. H á uma população esperando para ser atendida e a gente trabalhando com outra coisa. É difícil depois de três anos trabalhando como médico não poder ajudar por não ter Revalida. Quero trabalhar como médica — lamenta.
Dois mil remanescentes
Segundo Mauro Junqueira, presidente do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde, cerca de dois mil cubanos continuam no país após o término do Mais Médicos. Para ele, é necessário criar mais vantagens ao programa a fim de que profissionais sejam realmente atraídos pelos novos editais. Segundo ele, nas atuais condições, as cidades são dependentes da presença de médicos estrangeiros:
— Os municípios pequenos são os que mais estão sofrendo, principalmente no Norte e no Nordeste. O médico brasileiro não quer ir para área indígena, não quer ir para o Nordeste, não quer ficar isolado. Nós dependemos de médicos estrangeiros, não há outra opção.
O Ministério da Saúde lançou este mês um novo edital do Mais Médicos com 2.037 vagas voltadas para os municípios com maior vulnerabilidade. A pasta também declarou que vai criar um novo programa para ampliar os serviços de Atenção Primária à Saúde, que contemple as demais cidades.
Para Ligia Bahia, pesquisadora da UFRJ e da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), as medidas anunciadas pela pasta, porém, não devem solucionar o problema. Segundo ela, a melhor forma de atrair médicos nas regiões mais remotas é realizar parcerias com universidades, modelo adotado pelo Canadá, que também enfrentou déficit de médicos nas áreas localizadas mais ao norte do país.
— É impossível manter pessoas por muito tempo em locais inóspitos. A gente precisa ter um programa permanente de vinculação das universidades com esses interiores, em que as universidades públicas se responsabilizem com seus residentes, com supervisão e remuneração adequada, e no qual a gente faça uma combinação de estudantes que já estejam formados com médicos mais experientes, que costumam permanecer por pouco tempo, de maneira que a continuidade se dê pela instituição universitária. Essa experiência ocorreu em países capitalistas. O Canadá tem uma região norte que é pouco atraente e lá há forte apoio das universidades — avalia a pesquisadora.
Para Carlos Eduardo Aguilera Campos, pesquisador da UFRJ na área de atenção primária e autor de estudos sobre o Mais Médicos no Rio de Janeiro, mesmo com um novo edital previsto para as cidades mais vulneráveis, o Ministério da Saúde deveria concentrar esforços em como realizar a reposição dos médicos mais antigos, com o contrato próximo do encerramento. Até o final do ano, cerca de 1.300 contratos devem ser finalizados.
Ele aponta, ainda, para necessidade de contratação novos médicos para capitais, municípios de região metropolitana e cidades de médio porte, uma vez que já apresentam déficit de profissionais, principalmente em unidades de saúde nos bolsões de extrema pobreza desses municípios, fora do edital a ser aberto nesta semana. Das 152 vagas programas no município do Rio de Janeiro, por exemplo, 116 estavam ocupadas no fim de abril.
— Muitos ciclos estão vencendo e não há sinais de renovação desses contratos. Estados como Rio de Janeiro, Santa Catarina e São Paulo quase não possuem municípios contemplados por esse edital desta semana. O Mais Médicos tem uma bomba relógio para explodir. Se não fizermos essa reposição, de alguma forma, teremos um retrocesso e voltaremos a cair num modelo de pronto-atendimento, das pessoas procurarem o programa somente quando possuem problemas de saúde — alerta.
(*Estagiário sob supervisão de Flávio Tabak)