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Maria Amelia Veras: “Em várias partes do Brasil já há sinais de fragilidade no cuidado das pessoas infectadas pelo HIV”

Vilma Reis

Às vésperas de mais um Dia Mundial da Luta Contra AIDS, a Abrasco reforça o esforço para estabelecer o entrelaçamento de informações, experiências e tolerância social, ouvindo especialistas. Confira a entrevista com Maria Amelia de Sousa Mascena Veras, da Comissão de Epidemiologia da Abrasco, Professora do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Amelia também coordena o Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva desta faculdade e o grupo de pesquisa NUDHES – Saúde, Sexualidade e Direitos Humanos da População LGBT+. É membro da International AIDS Society e da International Epidemiological Association.

Abrasco – Quais os números atuais da AIDS no Brasil?

Maria Amelia Veras – Os dados recém divulgados pelo Ministério da Saúde informam que de 1980 até 2017 foram registrados no Brasil cerca de 982.129 pessoas com AIDS. Somente no ano de 2017 foram notificadas 42.420 novas infecções por HIV e mais de 37 mil casos novos da doença. Apesar desses números muito expressivos, são dezenas de milhares de casos, a taxa de detecção (casos novos registrados em algum dos sistemas de informação utilizados para ter conhecimento dos casos) de 18,3 por cem mil habitantes é menor do  que em uma série de anos anteriores (em 2012, por exemplo, era 21,7 por cem mil habitantes).

A taxa de mortalidade por AIDS também apresentou uma redução de quase 16% quando comparada com o ano de 2012. No entanto quando olhamos para as várias regiões do Brasil, há disparidades muito importantes, nem todas as regiões tem decréscimo, por exemplo a região norte, as mulheres no Rio Grande do Sul, não estão apresentando queda nas mesmas taxas.

Os números que vemos para o país, com quedas nas taxas de detecção e na mortalidade, são sem dúvida resultado de um trabalho de médio e longo prazo, que vem sendo realizado no Brasil por múltiplos atores, mas em especial pelo SUS, nos seus diversos níveis, federal, estadual e municipal. Ao fragilizarmos o SUS, com diminuição de recursos, materiais e humanos, o impacto sobre os indicadores do HIV/AIDS também se fará sentir. Aliás em várias partes do Brasil já há sinais de fragilidade no cuidado das pessoas infectadas.

Vale destacar que esses números são relativos ao conjunto de casos que chegaram de alguma maneira ao sistema de saúde. Mas não sabemos exatamente quantas pessoas já se encontram infectadas e ainda não sabem, porque ainda não se testaram.

Não conhecemos este número de um modo geral, mas para os grupos mais atingidos pela epidemia de HIV/AIDS, este costuma ser bastante significativo. Temos indicativos deste gap por meio das pesquisas. Estes podem variar entre regiões, cidades e populações específicas, mas são percentuais significativos das pessoas que participaram de pesquisas e que não conheciam ainda sua condição de infecção, seja porque nunca se testaram, ou se testaram e nunca foram buscar o resultado, ou ainda testaram alguma vez muito tempo atrás. Em um dos estudos realizados aqui em São Paulo pelo nosso grupo, o estudo SampaCentro, cerca da metade dos gays e outros homens que fazem sexo com homens (HSH) que tiveram testes positivos na pesquisa não sabiam que estavam infectados. Outros estudos mais recentes indicam percentuais variáveis de desconhecimento que vão de 10 (entre travestis e mulheres transexuais) até 40% entre gays e outros HSH. São estas pessoas que precisam ser atingidas pelo SUS, testadas e vinculadas a serviços para tratamento.

O que quero dizer é que apesar dos dados positivos apresentados neste 1º de dezembro, não dá para arrefecer em nenhuma das dimensões. Precisamos fazer mais na prevenção, aumentar a testagem, a vinculação das pessoas aos serviços de saúde e a adesão ao tratamento. Um percentual alto das pessoas que tem o diagnóstico no Brasil encontra-se em um serviço de saúde, mas a adesão ao tratamento, que faria sua carga viral ficar indetectável pode melhorar.

Abrasco – Sobre a Profilaxia Pré-Exposição Sexual (PrEP), a mais recente estratégia de prevenção da transmissão do HIV, qual o avanço?

Maria Amelia Veras – A PrEP está em uso no Brasil há muitos anos, porém com uma taxa de uso ainda muito baixa. Incorporar a PrEP foi um passo importante e necessário, considerando todos os estudos que demonstram a sua efetividade. O Brasil iniciou a disponibilização da PrEP no SUS em 2018, e  milhares de pessoas já utilizam – mas a adesão inicial é majoritariamente pelo grupo de gays e outros homens que fazem sexo com homens, são poucas as mulheres (profissionais do sexo ou em casais sorodiscordantes) e as pessoas trans que já estão se beneficiando. A adesão à PrEP também depende de educação e informação. Precisamos falar sobre quais são as formas de prevenção disponíveis e quais são mais adequadas ou mais aceitáveis para cada pessoa sob risco de se infectar. Precisamos aproveitar a introdução e distribuição de PrEP para investigar e cuidar de outras infecções sexualmente transmissíveis, que crescem em outras partes do mundo, mas sobre as quais temos pouquíssima informação.

Abrasco – Quem são atualmente os mais vulneráveis?

Maria Amelia Veras – Do ponto de vista epidemiológico, se considerarmos as mais altas taxas de prevalência, são as mulheres transexuais e travestis. Os estudos recentes, por exemplo em São Paulo, indicam taxas de infecção que variam entre 30 e 40%. É muito alto. Mas o crescimento dos casos entre jovens homens que fazem sexo com homens também preocupa. De um modo geral eu diria que a população jovem nas grandes e pequenas cidades do Brasil, que precisa ter educação e orientação sobre saúde sexual.

Abrasco – Sobre a doação de sangue por homossexuais: qual seria o desperdício de doadores em potencial, e quais os estudos científicos que corroboram para a atual proibição da doação de sangue por homossexuais?

Maria Amelia Veras – Esta é uma questão complexa. A questão das restrições à doação precisam ser pensadas sob o ponto de vista de dois grupos que precisam ser protegidos, os doadores, protegidos de quaisquer discriminação, e os que recebem sangue ou produtos derivados de sangue, que precisam estar certos que o que estão recebendo para tratar ou combater alguma doença é seguro.

O sangue já foi uma das formas mais importantes de transmissão do HIV. Como não lembrar a família do Betinho e do Henfil, em que três irmãos, além deles dois o irmão Francisco, que era músico, todos foram infectados e morreram devido à AIDS. Foi a implementação de uma série de mecanismos, especialmente a testagem obrigatória de todo o sangue transfundido, mas também entrevistas entre potenciais doadores para prevenir aqueles com algum risco de estarem infectados, não somente com HIV, mas com várias outras doenças, como Doença de Chagas, que impactaram significativamente esta forma de transfusão. Em função dessa avaliação, para diversos riscos potenciais, são excluídos cerca de 20% dos doadores no Brasil. Não estudo esta questão em particular, não analisei os instrumentos utilizados, não sei se estão sendo efetivos, que é o que a epidemiologia faz. Mas tenho conhecimento de alguns poucos estudos que demonstram que o risco de alguém se infectar por HIV no Brasil em uma transfusão de sangue, mesmo após as entrevistas que excluem pessoas com certas características e a testagem é cerca de 10 vezes maior do que nos Estados Unidos e na Europa.

Neste, como em qualquer outro aspecto de Saúde Coletiva, precisamos usar a epidemiologia sob a lente do respeito aos Direitos Humanos, precisamos saber como avaliar os riscos sem promover discriminação. Creio que precisamos atualizar o debate sobre esta questão no Brasil e fazer com que a população que se sente discriminada possa avaliar e participar da decisão.

Abrasco – O que gostaria de evidenciar como o mais importante na questão HIV/AIDS deste nosso Brasil, já com 2019 na porta?

Maria Amelia Veras – Avançar com uma política desenhada, implementada e avaliada sob a ótica dos direitos humanos. São inúmeros os exemplos de que este é o caminho. Veja o exemplo de São Francisco, que foi uma das cidades mais atingidas pela epidemia e que com uma política centrada na não discriminação, testagem acessível e aceitável, prevenção e tratamento gratuitos, busca agora ser a primeira cidade a zerar novos casos.

Sabemos que este não é um problema de saúde fácil de ser resolvido, em especial em um país das dimensões do Brasil com enormes desigualdades sociais, mas sabemos também que não há alternativas que assegurem nenhum sucesso fora de uma resposta desenhada considerando as especificidades da população mais vulnerável. Tendo em vista que no Brasil hoje são mais atingidas as pessoas da população LGBT+ e as pessoas mais pobres – pessoas negras como as mais afetadas – temos que levar em consideração o conjunto de determinantes envolvidos, da educação à moradia, combater o estigma e a discriminação à doença e contra essas populações, e priorizá-las no acesso aos cuidados.

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