Aonde vamos buscar os modelos? A América Espanhola é original. Logo, originais hão de ser as instituições e seus governos e originais terão de ser os meios para fundar tanto um como outro. Ou inventamos ou erramos. O aforismo escrito no século XVIII pelo intelectual venezuelano Simón Rodriguez foi o ponto de inspiração abraçado por Maurício Barreto para expor os desafios da produção científica brasileira frente ao cenário da austeridade na conferência “Superando crises econômicas: o papel do desenvolvimento científico tecnológico”, abrindo o primeiro dia de programação científica do X Congresso Brasileiro de Epidemiologia na manhã de 09 de outubro. A mediação foi de Nísia Trindade, presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Coordenador do Centro de Integração de dados e conhecimentos para a saúde (Cidacs/IGM/Fiocruz), Barreto iniciou sua participação explicando que aceitou o desafio de elaborar uma reflexão sobre um tema que não é sua especialidade, trazendo à cena suas vivências no campo da ciência e tecnologia e as emoções suscitadas pela conjuntura atual.
Os primeiros elementos apontados por Maurício Barreto situaram o contexto brasileiro dentro do quadro internacional. “Quando nos sentimos partilhando uma comunidade global e uma comunidade nacional científicas, temos de lembrar que o Brasil detém menos de 2% na produção global. Se nos juntarmos à América Latina, somos cerca de 4% da produção mundial em ciência. Então, seremos sempre parte de uma cadeia imensa de produção de conhecimento. A questão que isso coloca é que temos muito pouco para errar – temos de acertar. Ao errarmos esses 2%, não temos mais lugar aonde ir”, lembrou o pesquisador, engatando o tema da crise. Ele resgatando alguns indicadores dos cenários socioeconômicos dos últimos 20 anos que, mesmo a anos-luz de um cenário ideal, sinalizavam, nas suas palavras, alguma esperança na busca da equidade e na organização do Sistema Único de Saúde (SUS) e no campo da Ciência, Tecnologia e Inovação. “Hoje o que vemos são notícias de desmobilização e destruição, como as modificações na PNAB [Política Nacional de Atenção Básica], notas técnicas mostrando os riscos com a constrição dos gastos públicos, expansão de planos privados que vão competir com a estruturação do sistema de saúde. São notícias que nos assolam”.
Os ciclos de ampliação por quais passaram a educação superior e a ciência e tecnologia, com aumento no número dos campi e de universidades, promovendo o processo de interiorização e difusão da universidade brasileira, junto com o aumento absoluto no número de pós-graduados titulados, foram outros dados trazidos por Barreto, que destacou a importância política que representou a Agenda Nacional de Prioridades em Pesquisa em Saúde, lançada em 2006 e que constituiu uma cara própria – e meios de financiamento – para apontar diretrizes do que queremos pesquisar como sociedade. No entanto, o atual projeto de desmonte mostra suas garras. “A luta, que era pelo crescimento, transformou-se numa luta de resistência, de famintos, para manter o que construímos com muita dificuldade”, sentenciou.
A saída tem de ser com todos nós: A curva ascendente e consistente do crescimento da produção científica do campo da Saúde Coletiva e da Epidemiologia brasileira em particular mostra uma construção coletiva dessa comunidade científica que reflete sua dimensão de conjunto no grande número de pesquisas, projetos e iniciativas de diversos grupos citados por Barreto. Uma marca expressiva desse desenvolvimento é a segunda colocação mundial nos estudos sobre o zika vírus e as consequências da microcefalia, estando atrás somente dos Estados Unidos. No entanto, o ciclo auspicioso iniciado a partir de 1990 apresentou no biênio 2015-2016 seu primeiro momento de queda. Seria esse o primeiro sinal de consequência da crise em nossa área? perguntou o decano.
“Para enfrentar os tempos chuvosos e escuros pelo que estamos passando e que esperamos ser mais curto possível, precisamos reforçar a ideia da ciência como bem comum, com compromisso ético nas suas ações em prol da saúde e da vida. Essa é a principal contribuição da Saúde Coletiva para a sociedade”, apontou o pesquisador ao ressaltar o conceito de ciência aberta e dados abertos em ciência como as principais estratégias de resposta da comunidade científica. “Grande parte do custo de nossas pesquisas é produzir os dados. Logo, o máximo que usarmos desses mesmos dados pode trazer uma imensa importância”, trouxe Barreto, propondo a criação de uma frente nacional para maximizar os usos desses dados como forma de sustentar o desenvolvimento cientifico, mantendo sua excelência, tendo como experiência a plataforma SciELO.
O papel capital dos estudos sobre iniquidades em saúde também foi outra estratégia apontada. “A desigualdade dificulta nosso futuro. Existiu a ideia de que a tuberculose estaria sobre controle antes da metade deste século XXI. No entanto, o estudo liderado por Maria Gabriela Gomes mostra que, com os atuais padrões de desigualdade, essas metas não serão alcançadas”, exemplificou Barreto, antes de trazer sua consideração final. “A crise nos assombra e vemos, pelos nossos estudos, como a austeridade traz efeitos negativos. Conclamo a comunidade científica brasileira que se arregimente em grupos para promover debates e intensificar a produção científica sobre os efeitos futuros que as políticas de austeridade podem ter no campo da saúde. Evidentemente, a questão anterior, de termos base de dados abertas e comuns, pode ser um catalisador desse processo, utilizando uma série de esforços agora diversos e dispersos e que, se coordenados, podem oferecer essa contribuição à sociedade brasileira, na perspectiva da construção do SUS e das condições de saúde da população. Ou inventamos ou erramos novamente”.
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