Ligia Bahia escreve sobre a relação da privatização do ensino e o descaso com a qualidade da formação de médicos. Bahia é professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro da Comissão de Política, Planejamento e Gestão em Saúde da Abrasco. O artigo foi publicado na edição de sábado, 10 de agosto, no jornal O Globo, confira:
Polêmicas sobre quantidade, localização e formação de médicos vieram para ficar. Abertura de faculdades, número de vagas, requerimentos mínimos para os cursos — assuntos antes restritos ao circuito Ministério da Educação e entidades médicas — se tornaram mais familiares. Seja por desconfiança ou aprimoramento democrático, interessa saber quem é o médico, onde foi formado, onde fez pós-graduação. A ideia de que todos os médicos são igualmente competentes tem sido interrogada pela própria categoria e pelos pacientes.
Testes apenas para médicos estrangeiros ou também para os brasileiros? Diplomas nas paredes dos consultórios particulares querem dizer alguma coisa? Insinuam diferenças. Os que se formaram em instituições públicas são superiores? Modelos públicos, privados e terapêuticos e a formação e inserção de médicos não são lineares.
Ao contrário da intuição prevalente, os “médicos de pés descalços” chineses não eram funcionários públicos. Foram financiados por cooperativas agrícolas. Durante a Revolução Cultural, nos anos 1960, e com as discordâncias com a então União Soviética sobre a hegemonia da medicina ocidental, houve valorização da formação simplificada para a prevenção e permissão do uso de ervas e técnicas tradicionais. A experiência durou pouco. Tornou-se exemplar, por evidenciar a associação positiva entre a qualificação, mesmo de curta duração, e a melhoria das condições de saúde, bem como relevância do trabalho de médicos com formação completa. Atualmente, os currículos na China são similares aos do resto do mundo, mas incluem disciplinas de matrizes orientais do conhecimento médico, antes consideradas feudais e conservadoras.
Mais tempo e melhor formação do pessoal tornaram-se elementos-chave para a organização da atenção à saúde. Países europeus exigem que os médicos contratados para seus sistemas públicos sejam muito qualificados, aqueles que não tenham passado por cursos de residência médica tendem a assumir postos de trabalho marginais. Recentemente, o Brasil deixou de seguir essa orientação. A abertura de faculdades de medicina privadas, sem hospitais universitários ou centros complexos de assistência e pesquisa, empurra o sistema de saúde para o abismo da má qualidade assistencial. Seria demais pretender instituir aqui e agora a harmonia plena entre mercado de trabalho e direito à saúde. Mas, é pouco, é o de menos, formar um contingente de médicos que cursam faculdades por seis anos sem exposição às diversas práticas e especialidades da carreira e com poucas chances de admissão à residência.
Entre 2013 e 2019, o número de vagas para a graduação em Medicina dobrou, e as faculdades privadas passaram a concentrar 65% das matrículas. Para que esses profissionais tenham acesso à residência médica, seria necessário ampliar a capacidade instalada de hospitais universitários ou públicos de grande porte, aqueles nos quais ocorre o trabalho supervisionado de recém-formados. Do jeito que está, os médicos das faculdades públicas se tornarão mais especializados e inseridos em unidades assistenciais excelentes. Enquanto isso, a maioria, os que pagam pelo ensino — em faculdades que improvisam a obrigatoriedade do cumprimento da carga prática de seus alunos em hospitais não próprios — fica para trás.
Parece pouco provável que as nascentes faculdades privadas construam hospitais universitários e, pelo lado do setor público, as iniciativas de qualificação da formação médica são pouco promissoras. Cortes de recursos para as universidades e reedição da proposta de convênios privados (duplas portas) para os hospitais universitários públicos — inserida no projeto Future-se, do Ministério da Educação — impedem a expansão da residência médica, vinculada ao ensino e à produção científica. Conformou-se um estranho consenso em torno da privatização do ensino, descaso com a qualidade da formação de médicos, desprezo pelo sofrimento humano e ignorância sobre o custo elevado da incidência e disseminação de doenças. Espera-se que a indiferenciação entre papéis do público e do privado seja breve. A outorga de diplomas médicos e a qualidade e segurança dos atos médicos são responsabilidades inescapáveis, ainda que compartilhadas, de instituições governamentais.