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Artigo – Mistanásia hoje: pensando as desigualdades sociais e a pandemia Covid-19

Roberta Santos, Andréia Gomes, Luciana Narciso, Fermin Schramm, Luciana Brito, Marisa Palácios, Rodrigo Siqueira-Batista, Sergio Rego, Sonia Santos e Suely Marinho

A pandemia de Covid-19 já produziu, em números de 04 de junho de 2020, mais de 6 milhões de infectados no mundo, com mais de 380 mil mortes. No Brasil, já são mais de 580 mil infectados e 32 mil óbitos, a despeito do pequeno número de testes realizados em relação à nossa população. A história nos informa que pandemias muito graves já aconteceram. Neste século, já tivemos algumas epidemias que foram decretadas como de interesse internacional e duas pandemias. Logo em seu início houve a epidemia pelo vírus H5N1, que provocou a gripe aviária e que aterrorizou o mundo pela possibilidade de provocar uma pandemia. Esta infecção só se transmitia através do contato direto entre humanos e aves e o temor era, e é, de que haja uma mutação que permita esse modo de contágio. Dois grupos de pesquisadores, um na University of Wisconsin, EUA e outro afiliado ao Erasmus Medical Center, na Holanda chegaram a produzir, artificialmente, uma cepa capaz de ser transmitida pelo ar, mas foram impedidos de divulgar seus trabalhos pelo risco de favorecer a criação de uma arma biológica (INTERLANDI, 2011).

A primeira pandemia deste século foi decretada para a gripe provocada pelo vírus H1N1 e os temores que ela provocou referiam-se ao fato de ser o mesmo tipo de vírus que havia causado a grande pandemia da “gripe espanhola”, em 1918-9 (que não teve início na Espanha). Entretanto, a taxa de mortalidade desta primeira pandemia do século XXI foi baixa, menor inclusive do que a das gripes sazonais, o que provavelmente estimulou a campanha negacionista que hoje se pode observar em muitos países, também entre nós, com relação à Covid-19.

No Brasil, investimos menos de 4% do PIB em saúde pública nos últimos anos, o que ocasionou importantes deficiências no sistema de saúde e aumento de desigualdades sociais. O sonho sanitarista de um modelo de atenção à saúde público, universal e gratuito, consagrado na Constituição Federal de 1988, sempre foi minado por entes interessados em favorecer o sistema privado, ainda que deixando descobertos os segmentos populacionais abaixo da classe média. A pandemia provocada pelo SARS-CoV-2 trouxe um aumento da demanda por leitos hospitalares de enfermaria e de UTI, o que tem levado o Sistema Único de Saúde (SUS) – na maioria das capitais brasileiras – ao limite de sua capacidade, evidenciando assim, a ausência de instalações de assistência apropriadas para o nível de complexidade que está sendo demandada.

A inexistência de um tratamento conhecido para a infecção por SARS-CoV-2, ou de uma vacina tornou o distanciamento físico (social) a principal estratégia para proteger a população, na tentativa de se evitar um colapso do sistema de atenção à saúde. Entretanto, seja por seu impacto sobre a saúde mental, o aprofundamento de violências ou impossibilidade de um efetivo distanciamento, alguns seguimentos sociais sofrem as consequências do isolamento de uma forma ainda mais problemática. É o caso de população de rua, pessoas em situação de cárcere, indígenas, mulheres, negros, moradores de favelas, pessoas com deficiências diversas, pessoas em situação de extrema pobreza.

Quem morre vira um número, que não possui história, ou vínculos, ou uma identidade. Aos seus familiares é negado – corretamente aliás – até mesmo o direito de velar seus mortos, já que a doença pode ser transmitida durante os rituais fúnebres. A face real de uma estrutura necropolítica, herança de uma sociedade escravagista onde não podemos parar toda uma cadeia de produção porque um ou dois “escravos” morrerão por uma “gripezinha”, surge aqui sem disfarce. Essa população mais vulnerável tem sido vítima da omissão do poder público em vários aspectos, de uma maneira sistemática e calculada, gerando profundas disparidades sociais e raciais que impedem o acesso à saúde, acesso à água potável ou saneamento básico. Desigualdade tamanha, que, ao longo de nossa história, vem levando à morte as cidadãs e os cidadãos do nosso país. O distanciamento social ou o isolamento dos infectados não é uma medida possível para todos, como ocorre em muitas de nossas periferias, em que as moradias contêm uma única saída de ar e abrigam 4 ou mais pessoas, em pouco mais de 12m². Nesta realidade, o home office que vem sendo implementado por muitas empresas é inexistente pois, para tal parcela da população, não há emprego compatível com o trabalho remoto.

Neste cenário de desigualdades, de impactos diferenciados segundo grupos sociais, a redução do financiamento do sistema de saúde brasileiro somada à má administração do dinheiro público destinado à saúde, acaba gerando um total descompromisso com a vida da população. É essa política de desinvestimento, desinteresse e descompromisso que condiciona a vida e a morte, afetando diretamente os grupos mais vulnerados caracterizando assim, a mistanásia. A mistanásia é um neologismo do bioeticista Márcio Fabri dos Anjos, que pode ser descrita como morte infeliz, miserável e evitável. Ela “(…) contribui para a responsabilização e conscientização de uma situação que pode ser evitada, visto que o previsível e evitado anulam o conceito de “morte natural” transformando-o em fato moral” (RACCI, 2017, p. 41). Para além disso, esse conceito mostra que o viver sofrido pode levar a uma morte fora do tempo e tanto o viver quanto o morrer devem ser amparados pela dignidade. Num país onde quase 35 milhões de indivíduos não têm acesso a água tratada e 46% da população não possui coleta de esgoto, vemos a desigualdade crescer a cada dia em decorrência das políticas ditas neoliberais, que nada oferecem para o seu combate.

Há um efeito imediato da pandemia nas comunidades e populações vulneradas, e tais indivíduos estão à mercê de uma opressão dos mais fortes (econômica e socialmente). Este critério está diretamente ligado à desigualdade. Para Neves (2006), “(…) o princípio do respeito pela vulnerabilidade humana e pela integridade individual articula-se com o da dignidade humana, cujo valor incondicional da pessoa é reforçado com a exigência da sua inviolabilidade” (p. 168).

O acesso limitado à saúde somado a uma maior exposição de fatores de risco resulta em situações que atingem diretamente a dignidade dos mais pobres. Isto provoca tristes cenas, como a divulgada por vários meios de comunicação, quando um idoso de 70 anos, com suspeita de Covid-19, morreu após uma espera de longos sete dias, numa cadeira de recepção de um hospital do Rio de Janeiro. Esse relato expressa uma realidade que não é rara, lamentavelmente, em decorrência da escassez de leitos disponíveis e até mesmo de medicamentos, como aqueles necessários para viabilizar a instalação de ventilação assistida de um paciente.

Histórias como essa se repetem todos os dias, enquanto o Brasil contabiliza seus mortos. Seja com pacientes que conseguem internação num hospital e ficam à espera de tratamento adequado numa cadeira de recepção, ou com usuários que recebem atendimentos num posto de saúde sem estruturas para receber pacientes graves. A escassez de leitos em Unidades de Terapia Intensiva não é uma novidade no Brasil. Todos nós somos capazes de lembrar inúmeros episódios passados onde a Justiça era acionada para obrigar o Estado a dar acesso a leitos de terapia intensiva para pacientes que receberam essa indicação médica. É fato que o desmonte do SUS foi incentivado com a aprovação da Emenda Constitucional 95 (em dezembro de 2016) que limita por 20 anos os gastos públicos. O progressivo fechamento de leitos públicos, em inúmeros hospitais, as ausências de concursos públicos e uma carreira de Estado para os trabalhadores de saúde contribuíram para o caos progressivo que observamos.

Casos como esses culminam numa morte por abandono, desinteresse e negligência do Estado, a despeito de constar na Constituição que a saúde é dever do Estado e direito de todos, no Brasil. Mortes como as citadas nesses casos, as quais temos assistido diariamente nos noticiários, são mortes precoces e que podem ser denominadas de mistanásia. As diferenças, injustas, nos dados de saúde durante a pandemia (calculada a partir dos dados de 24 de maio 2020, da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto e Voz das Comunidades) estão evidentes ao analisarmos a letalidade da Covid-19 na população residente em favelas no município do Rio de Janeiro (24%) e a letalidade para a cidade do Rio de Janeiro, incluídos os residentes em favelas, que foi de 12% e no Brasil 6%.

E como podemos, no curso de uma pandemia como a Covid-19, minimizar as possibilidades de ocorrerem mortes por mistanásia ou, como um dia definiu Berlinguer (2004), cacotanásia, ou seja, mortes ruins, posto que previsíveis e evitáveis? Investimento público em assistência pública associado a medidas de fiscalização e punição de gestores pela má administração de verbas públicas destinadas à saúde, ampliação do acesso à saúde, direito à assistência adequada, direito à água tratada, esgoto, alimentação ou moradia, com consequente emancipação da sociedade são abordagens importantes para minimizar tal quadro.

Mas, para além da luta política que é indispensável para possibilitar um incremento na proteção social, é indispensável também, que prestemos atenção a situações como a já mencionada e a que foidivulgada pelo sítio UOL. Tratava-se do enfermeiro Evandro da Silva Costa, de 42 anos, que relatou em mensagens enviadas a seus colegas, seus últimos momentos vivos: “Me mandaram pra morrer, estou sem assistência alguma. Só no oxigênio. Vou morrer, colegas”. Logo depois, disse: “Vou morrer sentado agonizando aqui. Minhas mãos estão cianóticas, saturando 60 agora e sem assistência alguma”. O profissional morreu após enviar as mensagens.

Entendemos como inaceitável que se permita que indivíduos morram, em agonia, sem que nada seja feito para minorar seu sofrimento. Caso se chegue a inaceitável situação em que não se disponha da terapêutica adequada para que se possa tentar evitar o desfecho letal, que não se deixe de ao menos utilizar os recursos disponíveis para aliviar os sintomas, inclusive, se pertinente, oferecendo sedação paliativa1 no sentido de diminuir o sofrimento do paciente. É mister não haver confusão desse procedimento com o que antes foi nominado como sedação terminal.

A morte miserável põe em xeque a dignidade do indivíduo em seu direito de viver e de morrer sem sofrimentos adicionais. Não nos resta dúvida que esta situação da pandemia acentuará as desigualdades que já eram evidentes no nosso país. Por isso, os direcionamentos tomados pela iniciativa pública devem buscar, além de soluções individuais para resolução do problema, fortalecer políticas públicas que enfrentem as desigualdades, atendendo às necessidades da população de uma forma mais justa no sentido de assegurar a atenção ao direito básico da saúde efetivamente para todos. Assim, quem sabe, teremos algum dia o orgulho de vermos o nosso SUS homenageado publicamente por nossa sociedade por atender a todos e todas sem privilégios, como foi o National Health Service nas Olimpíadas de Londres em 2012. Mas isso requer que a equidade seja efetivamente uma meta e uma realidade a ser procurada por todos e não apenas um conceito inserido em nossa Constituição Federal por sonhadores.

Referências:

BRASIL. Painel de casos de doença pelo coronavírus 2019 (COVID-19) no Brasil. Ministério da Saúde. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/ Acesso em: 11 de maio de 2020.

BERLINGUER, Giovanni. Bioética cotidiana. Trad. Lavínia Bozzo Aguilar Porciúncula. Brasília: UnB, 2004.

CORONAVÍRUS NAS FAVELAS. Atualização dos casos de coronavírus: Voz das comunidades. Disponível em: https://www.vozdascomunidades.com.br/2020/05/24/ Acesso em: 25 de Maio de 2020.

COSTA, Luis Fernando Johnston. Sedação paliativa. In: PET-Programa de Educação Tutorial: estratégia para o desenvolvimento da graduação. Brasília: Ministério da Educação (MEC), 2007. Disponível em http://petdocs.ufc.br/index_artigo_id_419_desc_Anestesiologia_pagina__subtopico_10_busca_ Acesso em 25 de maio de 2020.

COVID-19 Map Interactive. Coronavirus Resource Center: John Hopkins University and Medicine. Disponível em: https://coronavirus.jhu.edu/map.html Acesso em: 11 de maio de 2020.

COVID-19 Brasil. Monitoramento e análises da situação do Coronavírus no Brasil: FMRP – USP. Disponível em: https://ciis.fmrp.usp.br/covid19/analise-municipios-br/ Acesso em 25 de Maio de 2020.

FAVERET FILHO, Paulo; OLIVERIA, Pedro Jorge. A universalização excludente: reflexões sobre as tendências do sistema de saúde. 1990. Disponível em http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/7358

INTERLANDI, Jeneen Contagion: Controversy Erupts over Man-Made Pandemic Avian Flu Virus. December 9, 2011. Disponível em https://www.scientificamerican.com/article/contagion-controversyerupts/

ISTO É. Horas antes de morrer, enfermeiro pede socorro a colegas: “Estou agonizando”. Disponível em: https://istoe.com.br/horas-antes-de-morrer-enfermeiro-pede-socorro-a-colegas-estouagonizando/ Acesso em: 03 de junho de 2020.

NAÇÕES UNIDAS BRASIL. Disponível em: https://nacoesunidas.org/mulheres-representam-ate-70-da-forca-de-trabalho-rural-em-economias-agricolas-afirma-oit/ Acesso em: 11 de maio de 2020.

NEVES, Maria do Céu Patrão. Sentidos da vulnerabilidade: característica, condição, princípio. Rev Bras Bioética, v. 2, n. 2, p. 157-72, 2006.

NOVO RANKING DO SANEAMENTO BÁSICO. Relatório Trata Brasil. Disponível em: http://www.tratabrasil.org.br/images/estudos/itb/ranking2019/PRESS_RELEASE___Ranking_do_Saneamento___NOVO.pdf Acesso em: 11 de Maio de 2020.

OPAS BRASIL. Sistemas e Serviços de Saúde. Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5874:paises-estaogastando-mais-em-saude-mas-pessoas-ainda-pagam-muitos-servicos-com-dinheiro-do-propriobolso&Itemid=843 Acesso em: 11 de maio de 2020.

RICCI, Luiz Antonio Lopes. A morte social: mistanásia e bioética. Pia Sociedade de São Paulo – Editora Paulus, 2017.

SCHRAMM, Femin Roland. A saúde é um direito ou dever? Autocrítica da saúde pública. Revista Brasileira de Bioética, v.2, n.2, p.187-200, 2006. Disponível em: http://periodicos.unb.br/index.php/rbb/article/download/7969/6541 Acesso em: 02 de junho de 2020.

SOTERO, Marilia. Vulnerabilidade e vulneração: população de rua, uma questão ética, Revista Bioética, vol.19, n.3, p.799-817, 2011, Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=361533257016 Acesso em: 02 de junho de 2020.

STEPS CENTRE. Steps Briefing 51. Swine flu: what went wrong? Disponível em: https://stepscentre.org/wp-content/uploads/Pandemics_briefing_web.pdf Acesso em: 25 de Maio de 2020

1 Aqui entendida como “a administração deliberada de fármacos em doses e combinações necessárias para reduzir o nível de consciência, com o consentimento do paciente ou de seu responsável, e possui o objetivo de aliviar adequadamente um ou mais sintomas refratários ao tratamento específico em pacientes com doença avançada terminal. Considera-se também como uma forma de sedação primária, que pode ser contínua ou intermitente, superficial ou profunda.” (Costa, 2015)

Autores:

Roberta Lemos dos Santos –. Doutoranda PPGBIOS/Fiocruz, Sociedade de Bioética do Estado do Rio de Janeiro – regional da SBB (SBRio). Contato: roberta_o_lemos@hotmail.com

Andréia Patrícia Gomes – UFV, PPGBIOS

Fermin Roland Schramm – ENSP/Fiocruz, PPGBIOS.

Luciana Brito – UnB, ANIS, GT Bioética Abrasco – Rio de Janeiro Unit/Unesco Chair of Bioethics at Haifa.

Luciana Narciso – Nubea/UFRJ e Ensp/Fiocruz/PPGBIOS – GT Bioética Abrasco – Rio de Janeiro Unit/Unesco Chair of Bioethics at Haifa, Sociedade de Bioética do Estado do Rio de Janeiro – regional da SBB (SBRio).

Marisa Palácios – Nubea/UFRJ, PPGBIOS, GT Bioética Abrasco, Rio de Janeiro Unit/Unesco Chair of Bioethics at Haifa, Sociedade de Bioética do Estado do Rio de Janeiro – regional da SBB (SBRio)

Rodrigo Siqueira-Batista – UFV, FADIP, PPGBIOS, PQ CNPq, Rio de Janeiro Unit/Unesco Chair of Bioethics at Haifa.

Sergio Rego – ENSP/Fiocruz, PPGBIOS, PQ CNPq, GT Bioética Abrasco, Rio de Janeiro Unit/Unesco Chair of Bioethics at Haifa

Sonia Santos – Faculdade de Educação/UERJ, PPGBIOS

Suely Marinho – HUCFF/UFRJ, Nubea/UFRJ, Sociedade de Bioética do Estado do Rio de Janeiro – regional da SBB (SBRio)

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