A Reforma Psiquiátrica Brasileira teve um papel fundamental no enfrentamento do racismo estrutural ao criar uma rede de atenção substitutiva a uma das principais instituições de exclusão social e aniquilamento do povo negro: os manicômios. A Luta Antimanicomial expressou a faceta mais radical de um amplo processo de disputa de modelos de sociedade ao propor a reabilitação psicossocial dos ditos “anormais” que, na sua grande maioria, correspondia às pessoas pobres e negras. Nessa direção, cabe indagar sobre quais os estabelecimentos criados que operam a lógica manicomial fundada no racismo estrutural? Atenta/os à dinâmica do racismo em nossos dias, percebe-se como um modelo de “atenção” asilar e excludente se fortaleceu no ciclo político-governamental que se encerra em 31 de dezembro de 2022. O processo de desmonte de uma rede de saúde que assegure os direitos humanos para as pessoas em sofrimento mental, conhecido como contrarreforma psiquiátrica, trouxe à cena a institucionalização de um “novo” estabelecimento manicomial que muda apenas o nome e aparência em relação aos antigos manicômios do século passado. As ditas Comunidades Terapêuticas (CTs) apresentam uma constante aproximação entre a instituição psiquiátrica e uma racionalidade moral-religiosa que adentra a área de políticas públicas disputando o modelo de atenção, no qual a violação de direitos humanos se torna uma prática corriqueira. Como tem sido demonstrado por repetidas investigações e denúncias de egressos, parentes, ou sobreviventes das CTs1, as práticas de isolamento, tortura, contenção física e química (hipermedicalização), negligência com relação a comorbidades e imposição de ritos religiosos e de trabalhos mal ou mesmo não remunerados indicam que não há sustentação empírica que justifique o caráter comunitário e, menos ainda, terapêutico do que se instituiu chamar de CT em nosso país.
A renovação da esperança representada pelo próximo governo, dado o histórico em defesa dos direitos humanos dos partidos e gestores públicos que o compõem vem acompanhada da necessária crítica ao financiamento público de um estabelecimento que tem servido ao higienismo contemporâneo que assola, de forma mais contundente, as pessoas em situação de rua, as mulheres negras e mães destituídas do direito a seus corpos e sua prole, criando um pânico social em torno do complexo fenômeno do uso de crack nas grandes cidades. Novamente, são os mesmos corpos negros, carregados de histórias de violação de direitos que, sofrendo os efeitos da ampliação da miséria, são reduzidos às categorias psiquiátricas que autorizam o retorno da lógica manicomial em suas práticas racistas, patriarcais e violentas. Diante desse quadro, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO – por meio dos Grupos Temáticos Saúde Mental, Racismo e Saúde e Violência e Saúde – defende a construção de uma Rede em Saúde Mental em Álcool e Outras Drogas substitutiva às Comunidades Terapêuticas por meio da elaboração de um Plano Interministerial de Desfinanciamento Progressivo das ditas Comunidades Terapêuticas, com fortalecimento do papel da Atenção Básica, das Unidades de Acolhimento, Centros de Convivências, Centros de Atenção Psicossocial, Leitos de Internação em Hospitais Gerais em redes regionalizadas com retomada da diretriz da redução de danos. Assim, a ruptura com o modelo manicomial consistirá num movimento ético de mudança de saberes e práticas, de valores culturais e sociais, de salvaguarda dos direitos civis, da cidadania e respeito à dignidade humana, além de instrumento de enfrentamento ao racismo e outras formas de opressão social.
Rio de Janeiro, 09 de janeiro de 2023
Abrasco – Associação Brasileira de Saúde Coletiva