O ressurgimento de surtos de sarampo nos Estados Unidos, o caso de uma morte por difteria na Espanha e uma crescente onda internacional baseada em desinformação, medo e má-fé são anúncios de uma grande tempestade na saúde pública e na sociedade brasileira e que exigirá posicionamentos mais firmes da academia, da mídia e de demais formadores de opinião. A mesa-redonda “A perspectiva epidemiológica sobre os movimentos anti-vacina” debateu esses assuntos no segundo dia do X Congresso Brasileiro de Epidemiologia, em 10 de outubro, e contou com a participação de Arthur Reingold, professor e chefe do Departamento de Epidemiologia da Universidade da Califórnia – Berkeley; Carolina Barbieri, professora do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Católica de Santos, e Kenneth Rochel Camargo, professor titular do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj).
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Reingold marcou o estrondoso avanço da medicina e das técnicas de imunização em massa nos últimos 50 anos. A eficácia da ação conferiu sucesso diante de toda a relutância, historicamente reconhecida em todas as épocas. “Fizemos um grande calendário vacinal, o que exige que cada criança receba muitas doses nos primeiros dois anos. Naturalmente pela força da coincidência, elas acabam desenvolvendo doenças após a imunização. Apesar da relutância histórica, fazemos um bom trabalho de imunização. Atualmente, vacinamos também os adolescentes e assumimos os créditos e esforços para o controle das doenças imunopreviníveis. A vacinação permitiu acelerar a redução de muitas doenças”.
O pesquisador vê o mesmo movimento em diversos países – há condados nos Estados Unidos com mais de 25% de suas populações sub-imunizadas – e identifica na crise da representatividade da ciência e da política uma das respostas possíveis. A disseminação da internet e a força da circulação de fake news e versões incorretas dão os traços contemporâneos do debate. “Nos dias de hoje não sabemos a diferença entre as notícias certas e erradas. A preocupação com a segurança das vacinas não é um fenômeno novo, mas o fim da confiança sim. As pessoas não confiam mais em ninguém, nem em professores de cabelo branco de Berkeley”, disse com sua graça peculiar.
Carolina Barbieri apresentou parte de sua tese de doutorado intitulado “Cuidado infantil e (não) vacinação no contexto de famílias de camadas médias em São Paulo/SP”. Por meio de pesquisa qualitativa e numa perspectiva sócio antropológica, a médica entrevistou 16 casais que imunizaram seus filhos e filhas com todas, algumas ou nenhuma vacina. Das descobertas, chamou a atenção da pesquisadora a mistura deste debate com o tema do parto. “Ao buscar a crítica ao abuso de cesáreas, surgiu para essas famílias a dúvida quanto a vacinação, iniciando um processo de ressignificação da vacinação, entendendo-a como uma ameaça. Para eles, não vacinar tem um sentido de fazer o melhor para seus filhos”, explicou Carolina, citando que as justificativas são sempre muito particulares e iguais às que traz a literatura de estudos similares feitos no exterior. “Em comum é forte uma visão social marcada pelo dualismo – há nós e os outros – e a visão de que vacina é uma coisa para pobres e que, por terem acesso aos serviços privados de saúde e hábitos de vida saudáveis, estariam em condições imunológicas vantajosas. Em nenhum momento, foi considerada a função coletiva da vacinação”, definiu Carolina.
Kenneth Camargo avalia que o movimento anti-vacinação pode ser mais uma grande tempestade na saúde pública e na sociedade brasileira. “A dificuldade de entender os produtos tecnológicos e a facilidade de circulação de informação falsa na web causam um mundo de assombrados, que se apegam a ideias erradas numa falsa sensação de segurança. Isso é uma das facetas da atual facilidade de comunicação, para o bem e para mal. Não são só as pessoas, mas movimentos fazem proselitismo nesse sentido e estão ganhando terreno”, alertou.
As vacinas são vítimas do seu próprio sucesso como instrumento de imunização, segundo o docente. Em momentos de grande individualismo social, tal visão de falsa segurança ganha força em certa parcela da sociedade, que passam a defender seus posicionamentos de maneira raivosa, num mecanismo que as tornam mais reativas diante das evidências científicas, arrasadas pela crise de confiança e representatividade. “Os cientistas hoje são suspeitos a priori. Nessa lógica de circulação, é tudo virado ao contrário, como se toda a ciência biomédica fosse a mesma coisa e estivesse comprometida pela big pharma”, argumentou Kenneth, lembrando o poeta e pensador Alexander Pope que, em seu Ensaio sobre a Crítica, cunhou a máxima ‘O conhecimento pequeno é coisa perigosa’. Para Kenneth, cabe à Academia comunicar-se melhor com a sociedade, contando para isso com instrumentos próprios e com a parceria de jornalistas e produtores de conteúdo de mídias engajadas, e não apenas falando para si própria como é de prática.