Pensar os desafios das políticas públicas no cenário atual e o papel dos movimentos sociais no enfrentamento da crise política. Com essa proposta, entidades do movimento sanitário e dos movimentos de moradia trocaram impressões e identificaram pontos comuns para assim iniciar um processo de construção de estratégias populares em torno da defesa e afirmação do SUS e de demais políticas públicas.
A roda de conversa aconteceu no último 29 junho, em São Paulo, e reuniu representantes da Abrasco, da Associação Paulista de Saúde Pública (APSP), do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes), da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares, do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e da Frente Povo Sem Medo, além de pesquisadores e profissionais de saúde que desenvolvem atividades junto às ocupações do MTST.
Três falas disparadoras abriram o encontro. Professor do Departamento de Saúde Pública da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e coordenador adjunto da Comissão de Política, Planejamento e Gestão da Abrasco, Tadeu de Paula Souza afirmou que a necessidade de ampliar a base de apoio ao SUS é percebida há tempos pelo campo da Saúde Coletiva e tem sido uma preocupação constante da atual direção da Associação, que vem buscando ampliar o diálogo com diferentes entidades, instituições e movimentos sociais fora do campo da saúde. “Quando assumi a coordenação adjunta da Comissão, apontei a necessidade de nossos congressos expressarem as articulações e interfaces que queremos produzir entre academia e sociedade. Entretanto esse movimento não pode ser unilateral. Trata-se de uma troca de experiências e de perspectivas e interessa muito ouvir as experiências e perspectivas políticas do MTST”, afirmou Tadeu de Paula, destacando o papel da mobilização diante do que o atual ciclo político brasileiro.
Antropóloga e militante-pesquisadora do MTST, Alana Moraes atentou para as modulações das relações de trabalho no capitalismo contemporâneo, apontando os desafios decorrentes para as mobilizações sociais. “Isso exige a construção de uma militância que passa pelos territórios, lá onde o sofrimento da precarização pode ganhar expressão política. É muito comum, no MTST, relatos de sofrimento das pessoas quando se aproxima o dia do pagamento do aluguel. O corpo paralisa e deprime. Quando essas pessoas chegam aos acampamentos, a primeira atitude é acolhê-las e ouvir suas histórias. É uma militância que passa pelo corpo, que se constrói pelo afeto e se efetiva nos territórios. ”
Guilherme Boulos, liderança do MTST e da Frente Povo Sem Medo, ressaltou a conexão dos movimentos sociais de diferentes naturezas com as mobilizações nos territórios e nas ruas. “Estamos correndo atrás de um tempo perdido, pois deixamos de fazer o dever de casa. A rua, os territórios, os bairros são o espaço da política, e não exclusivamente e essencialmente o Estado”, afirmou ele, considerando que tal conexão é fundamental para a construção de um novo projeto de sociedade. “É necessário maturidade política, pois somente uma aliança que consolide um projeto de esquerda seria capaz de alterar o cenário político. As diferenças são necessárias, mas nesse momento elas não podem significar rupturas. A Frente Povo Sem Medo tem dialogado com a Frente Brasil Popular e demais movimentos sociais para a elaboração de um programa social de governo amplamente debatido com a sociedade em plenárias e assembleias populares em espaços públicos. ”
Findas as falas iniciais, os demais presentes fizeram suas análises e considerações. Marília Louvison, professora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP), presidente da APSP e diretora da Abrasco, relembra que o movimento sanitarista sempre teve um compromisso com a articulação social e movimentos de base. No entanto, com a construção e estruturação do SUS e a ascensão dos governos petistas levaram o movimento sanitário a entrar na máquina estatal. “Assim capturamos e fomos capturados. O momento atual exige uma revisão radical do nosso modo de atuação. Retomar o diálogo com outros movimentos é fundamental para o SUS e para a democracia”.
Carlos Botazzo, também da FSP/USP e APSP, ratificou a fala de Marília e abordou a distância que o movimento sindical tradicional tomou do movimento sanitário ao colocarem os planos de saúde para suas categorias como uma das principais reivindicações nas greves e construções de acordos coletivos durante a década de 1990. “Os sindicatos não abraçaram o SUS”.
Pedro Tourinho, médico sanitarista e vereador em Campinas, afirmou que o interesse em destruir o SUS se dá pelo fato do SUS ser a principal e mais bem-sucedida política pública criada no país. “Um sistema universal num país periférico como Brasil tem um valor simbólico e real que o torna alvo de ataques”.
Tendo como perspectiva a história da construção do SUS, Tadeu analisou que o processo constituinte da Reforma Sanitária consolidou um certo sentido do conceito público que nunca foi devidamente abraçado pelo Estado, sempre permeado por disputas. “O público seria, nestes termos, uma expressão coletiva que ganhou certa estabilidade, mas não se concretizou. Isso nos ajuda a entender porque, apesar de política pública e de Estado, o SUS nunca tenha se tornado uma política de nenhum dos governos que vieram depois da Constituição de 1988. É porque existe uma política muito bem traçada pela racionalidade neoliberal que delimita o campo de atuação do público delimitado pelos interesses do mercado. Em termos foucaultianos vivemos hoje o apogeu de um Estado governamentalizado pelo mercado”, avaliou o coordenador adjunto da Comissão de Política.
Ao final, três diretrizes foram construídas entre os presentes: estreitar laços para a formação de uma frente ampla de esquerda, que consolide um campo democrático comum nas diferenças; atuação junto aos territórios concretos, como bairros e ruas, no centro e nas periferias, refundando assim a cidade enquanto espaço da política; e construir uma plataforma macropolítica que traga a renovação de um projeto de esquerda, apontando diretamente a reforma tributária, a reforma política e a democratização radical das instituições, e construção de uma agenda ampla em defesa dos direitos sociais. “Apesar de ser um encontro que ocorre já com um certo atraso, é sem dúvida um marco e que devemos agora pensar em agendas concretas”, encerrou e sintetizou Henrique Satter, do MTST.