Pesquisar
Close this search box.

 NOTÍCIAS 

Moyses Szklo: participação do mercado na produção do conhecimento torna distorcido o processo de tradução de conhecimentos

Os sentidos da produção do conhecimento na área da Saúde, e em especial da Saúde Coletiva, historicamente, têm estreita ligação com a resolução do quadro vital das populações e em busca de soluções e de melhorias das condições de vida de homens, mulheres, crianças e idosos. No entanto, interesses das empresas que compõem o Complexo Econômico e Industrial da Saúde em valorizar seus produtos e equipamentos e predominância dos estudos etiológicos têm trazido distorções na hora da aplicação dos conhecimentos epidemiológicos, o que influencia o conjunto dos saberes da Saúde Coletiva, tanto nos desenhos das políticas públicas e de programas e intervenções, como nas avaliações das Ciências Sociais e Humanas do campo. Um equilíbrio entre o conhecimento dito “puro” e o aplicado é fundamental. Essa é a avaliação de Moyses Szklo, pioneiro da epidemiologia brasileira, professor da Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health e convidado de honra do 11º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, no qual proferirá na quarta-feira, 29, a comunicação Epidemiologia Translacional: Desafios Semânticos e Outros, na Conferência Ruy Laurenti. A coordenação será de Maurício Barreto.

Para Szklo, não bastam cálculos para a tradução dos conhecimentos epidemiológicos ser efetiva. Tão necessário quanto eles são a observação da realidade, os princípios éticos e a compreensão de que diversos atores, fatores e condições influenciam na análise das evidências científicas e nos modelos de decisão. Essas interferências e nuances são o centro de seu artigo Epidemiologia translacional: algumas considerações, publicado em março deste ano na revista Epidemiologia e Serviços de Saúde, fruto de suas indagações em mais de 50 anos de carreira e que será o ponto de partida para a Conferência.

Mesmo radicado nos Estados Unidos desde a década de 1970, onde alcançou elevado reconhecimento acadêmico em diversas áreas da Medicina e da Saúde Pública, o decano não perdeu suas ligações afetivas e sociais com o Brasil e, em entrevista à Abrasco, fala de seu compromisso com a universalidade dos sistemas de saúde, do cenário da produção científica nacional e da perda de Nina Pereira Nunes, que junto com Szklo e Hésio Cordeiro fundou o Instituto de Medicina Social (IMS/Uerj). Ao final, o vídeo Advice to young Students traz as palavras de Szklo aos formados do Programa Erasmus, do Netherlands Institution for  Health Sciences – NIHES/Erasmus University MC, Holanda, no qual ele fala das armadilhas da vida acadêmica e da produção do conhecimento, com a humildade, a inteligência e o humor digno dos grandes mestres,

Abrasco: O conceito de epidemiologia translacional está diretamente ligado à aplicação dos conhecimentos frutos da pesquisa epidemiológica nos serviços de saúde. Em um mundo com recursos cada vez mais escassos para a pesquisa pura e acadêmica, uma epidemiologia aplicada tende a ganhar mais espaço nos centros de pesquisa?

Moyses Szklo: A epidemiologia translacional é fundamental para a aplicação de conhecimentos a programas, políticas públicas e intervenções baseados em evidências. Nos centros acadêmicos, nas últimas décadas a epidemiologia etiológica (“acadêmica”) tem predominado. Uma não é mais importante do que a outra; o importante é re-estabelecer o equilíbrio entre a ‘acadêmica’ e a ‘translacional’.

Abrasco: Há um grande número de pesquisadores da Saúde Coletiva que criticam o que chamam de fetichização da evidência, devido à importância dadas às evidências o que, segundo eles, não vale como métrica/razão para todos os campos da Saúde. Na EpiTrans, a evidência é a base. Como o senhor entende essa crítica?

Moyses Szklo: Eu não sabia que alguns colegas brasileiros na área de Saúde Coletiva têm criticado a importância das evidências para tomada de decisões. Eu não acho que evidências epidemiológicas sejam o único instrumento da Saúde Coletiva, que também exige o “input” de áreas não quantitativas, como por exemplo, a ética, a gestão e a política. Embora não suficientes para a Saúde Pública, as evidências epidemiológicas são absolutamente necessárias.

Abrasco: No exemplo utilizado no artigo, é possível entender que conceitos e ferramentas como de risco populacional atribuível, árvore de decisão e análise de sensibilidade são importantes para o planejamento de ações em Saúde Pública. Como o senhor avalia o uso ferramental da epidemiologia translacional nos serviços de saúde, tanto dos Estados Unidos quanto do Brasil?

Moyses Szklo: Nos Estados Unidos, o uso da epidemiologia translacional depende da ação de diferentes sociedades especializadas (“American Heart Association”, “American Cancer Society”, etc), que elaboram recomendações com relação a prevenção e tratamento.  Além dessas sociedades, periodicamente, a United States Preventive Services Task Force (USPSTF) prepara recomendações nas áreas de prevenção e rastreamento. No entanto, se desconhece o quanto essas recomendações são implementadas.

No Brasil, o Ministério da Saúde criou a rede de avaliação de tecnologias de saúde (REBRATS). Essa rede tem como um dos seus principais objetivos a avaliação de custo-efetividade de programas e políticas de saúde. A contribuição da epidemiologia concentra-se na avaliação de efetividade, sem a qual análise de custo-efetividade e, consequentemente, priorização de recursos tornam-se impossíveis. Particularmente em um país como o Brasil, que possui um sistema de saúde socializado, é fundamental levar em consideração o velho cliché de que necessidades são ilimitadas, mas recursos são sempre limitados. Faz-se, consequentemente, necessária a alocação custo-efetiva de recursos, o que torna necessário o “input” da epidemiologia translacional.

Abrasco: O senhor traz em perspectiva a questão do viés de publicação como uma variável real e com possibilidade efetiva de alterar a percepção na hora da implementação de uma política de saúde. O poderio das publicações científicas, marcado historicamente pelo estatuto de verdade e o interesse de indústrias por trás de estudos financiados é também questionado por outros pensadores do nosso campo. A lógica do “publish or perish” pode trazer consequências ainda mais danosas à Saúde Pública e à produção do conhecimento científico?

Moyses Szklo: Várias meta-análises têm demonstrado que estudos financiados pela indústria têm uma probabilidade mais elevada de favorecer os seus produtos do que estudos financiados publicamente. Esses resultados indicam viés de publicação e sugerem que, quando o estudo financiado pela indústria conclui que certo produto é ineficaz, seus resultados não são publicados. Como tomadas de decisões frequentemente se baseiam na literatura, o processo de tradução de conhecimentos torna-se distorcido. A lógica do “publish or perish” no meio acadêmico epidemiológico está relacionada à publicação de artigos “científicos” – particularmente os etiológicos – em revistas de alto fator de impacto. Artigos na área translacional, por outro lado, devem ser publicados de acordo com a lógica de disseminação de conhecimentos sobre efetividade de programas e políticas e, consequentemente, deveriam priorizar, além de revistas de alto impacto, meios de comunicação de grande alcance para os tomadores de decisões. Por exemplo, fiquei muito feliz ao ser convidado para publicar, na revista do SUS (Epidemiologia e Serviços de Saúde), meu artigo sobre epidemiologia translacional, baseado em palestras que fiz em meios universitários americanos e no “National Institutes of Health”.

Abrasco: Dentro dessa discussão do viés de publicação, o senhor destaca que registros de estudos devam ser acessíveis aos autores de revisões sistemáticas, bem como os estudos devam trazer as descrições de desenhos e de metodologias utilizadas. Essas medidas deveriam ser regras para qualificar ainda mais o campo da epidemiologia? E, se são tão importantes, por que não são regularmente disponibilizadas?

Moyses Szklo: Eu acredito que há duas formas de se prevenir viés de publicação: com a publicação da descrição de desenho do estudos assim que for financiado para que os epidemiologistas tomem conhecimento da existência do estudo e por meio da criação de registros de estudos –como por exemplo, a “Cochrane Collaboration”, que contém resultados de milhares de ensaios clínicos aleatorizados. Como tomadas de decisões dependem em grande parte de artigos publicados, a prevenção desse viés é vital. Há também formas indiretas de se avaliar viés de publicação, como por exemplo o “Beggs funnel” e testes de simetria.

Abrasco: O Abrascão é um momento de reunião da comunidade científica da Saúde Coletiva. Como os conhecimentos e conceitos da EpiTrans podem ser úteis no cotidiano de profissionais, docentes e pesquisadores das demais áreas, como as Ciências Sociais e Humanas em Saúde e os estudos em Políticas de Saúde?

Moyses Szklo: Não sou especialista em Ciências Sociais e Humanas, mas creio que a EpiTrans possa ser útil para essas ciências e todos os campos da Saúde Coletiva, na medida em que os conhecimentos gerados por esse segmento de pesquisa tenha potencial de implementação.

Abrasco: O senhor está desde 1975 na JHU, mas sempre manteve o contato com o universo da academia brasileira. Que diferenças vê entre os dois cenários e em que a produção científica brasileira deve melhorar para ter maior peso no cenário internacional?

Moyses Szklo: Os Estados Unidos continuam tendo papel predominante na produção científica, mas no Brasil houve um grande avanço na pesquisa epidemiológica. Alguns centros de pesquisa epidemiológica brasileiros têm nível elevadíssimo, como reconhecido pela CAPES. Um grande obstáculo que os epidemiologistas brasileiros têm que enfrentar é a burocracia das agências de financiamento, que diminui a eficiência com que estudos são conduzidos. A forma de financiamento, possivelmente decorrente de leis trabalhistas no Brasil, impede contratação de pessoal de nível intermediário, necessário a, por exemplo, condução de trabalho de campo. Consequentemente, fazem-se necessários o uso de bolsas, frequentemente muito insuficientes e o envolvimento de docentes em atividades que poderiam ser facilmente delegadas a pessoal de nível intermediário.

Abrasco: Quais são os principais desafios hoje para a Epidemiologia ser uma ferramenta humana num cenário evolucionário com maior expectativa de vida, prevalência das doenças crônicas sobre as infectocontagiosas e riscos globais de grande impacto e que exigem respostas imediatas, como destacado neste ano pela Assembleia Mundial da Saúde?

Moyses Szklo: A epidemiologia translacional tem como uma das suas funções a rápida avaliação de riscos na população avaliados através da vigilância epidemiológica (que, no Brasil, é de ótima qualidade) e condução de estudos para investigação de epidemias e tradução de conhecimentos já disponíveis. Como exemplo, eu cito a doença coronariana. Seus fatores de risco principais já são conhecidos há décadas, mas o conhecimento é limitado com relação a estratégias de cessação em indivíduos expostos a esses fatores (obesidade, tabagismo). A epidemiologia social tem também grande importância, pois, desigualdades sociais e pobreza são fatores de risco universais.

Abrasco: O senhor foi um dos fundadores do Instituto de Medicina Social (IMS/Uerj). Recentemente, perdemos o convívio com Nina Nunes, também co-fundadora. O que destacaria da memória dos primeiros momentos do IMS e da convivência com Nina?

 Moyses Szklo: Nina era a grande motivadora e funcionava como o “tecido conjuntivo” do processo. Ela era completamente engajada no processo e seu idealismo era incrível. Era a “mãe de todos” e teve influência enorme na vida pessoal e professional de numerosos colegas, como já testemunharam alguns que tiveram a sorte de interagir com ela.

Abrasco: O tema do Abrascão 2015 é “Saúde, desenvolvimento e democracia: o desafio do SUS universal”. O senhor é partidário do conceito de universalidade para os sistemas de saúde? Seja em caso positivo ou negativo, o que fundamenta o seu posicionamento? Acredita que a universalidade deva ser uma busca internacional para os sistemas de saúde?

 Moyses Szklo: Sou 100% partidário da universalidade para os sistemas de saúde e acredito que o SUS foi uma conquista importante do povo brasileiro. Na minha visão, talvez não muito realista, acesso deveria ser universal e a qualidade dos serviços deveria ser a mesma, independentemente de poder aquisitivo e classe social.

Confira Advice to young students, mensagem de encerramento de Moyses Szklo aos alunos do Programa Erasmus, do Netherlands Institution for  Health Sciences – NIHES/Erasmus University MC, realizada agosto de 2014

 

Associe-se à ABRASCO

Ser um associado (a) Abrasco, ou Abrasquiano(a), é apoiar a Saúde Coletiva como área de conhecimento, mas também compartilhar dos princípios da saúde como processo social, da participação como radicalização democrática e da ampliação dos direitos dos cidadãos. São esses princípios da Saúde Coletiva que também inspiram a Reforma Sanitária e o Sistema Único de Saúde, o SUS.

Pular para o conteúdo