A edição 83 (abril a junho) do TCE Notícias, o Informativo do Tribunal de Contas do Estado do
Rio de Janeiro traz a entrevista com Ligia Bahia, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro da Abrasco. Para a pesquisadora, o pacto firmado pela Rede de Controle da Gestão Pública no Estado, o PRA Saúde, é uma iniciativa “bem-vinda” no cenário em que os serviços, a pesquisa e o ensino no setor estão se deteriorando por falta de planejamento, investimento e vontade política decorrentes da desunião entre as redes municipal, estadual e federal, como aponta na entrevista.
Confira na íntegra:
Qual a sua opinião sobre o pacto firmado pela Rede de Controle da Gestão Pública no Estado para melhorar a gestão da saúde no Rio de Janeiro?
Acho a iniciativa muito boa. Tenho acompanhado algumas ações do Tribunal de Contas e o pacto é bem-vindo. Temos que aproveitar essa entrada do TCE-RJ no assunto. O Tribunal está com uma agenda mais positiva, menos punitiva. E isso é muito importante. Os municípios, o estado e a União precisam se unir. E isso não acontece
Por quê?
Por conta dos interesses político-partidários, por exemplo, e também porque não temos uma legislação que favoreça as relações federativas. Como criar uma região de saúde sem que os interesses imediatistas sejam feridos? Penso que a entrada dos tribunais e dos
demais órgãos de controle com essa ação é muito importante. Inclusive no caso do levantamento, do inventário de recursos, pois existe desperdício.
O diálogo entre as redes vai beneficiar o paciente que está na ponta do sistema?
A população já faz isso sozinha. Ela busca isso. Então, o esforço enorme que a população faz, de sair de um município para outro, pegar ônibus, em busca de um serviço de saúde, de atendimento, pode ser muito facilitado se houver, de verdade, esse trabalho pela articulação entre os municípios, o estado e a União. Acho que o TCE-RJ está entrando numa agenda muito importante e nós temos total interesse em participar, em ajudar. Os tribunais, aliás, têm realizado outras ações que considero da maior importância, como a fiscalização de empresas privadas que atuam na saúde. E estão encontrando inúmeras irregularidades.
Como a senhora avalia a saúde pública hoje no Rio de Janeiro?
A saúde pública no Rio de Janeiro faz sístoles e diástoles. Agora, por exemplo, nós avançamos um pouco na cobertura da Atenção Básica, mas em compensação os hospitais foram para o beleléu. É como se fosse um joguinho de montar, monta uma pecinha e cai a outra. Então, temos uma saúde no Rio de Janeiro que não corresponde ao que nós poderíamos ter. Tínhamos uma tradição de excelente padrão de atendimento no Rio e por que perdemos isso? É uma pergunta que tem que ser feita e uma questão que precisa ser fiscalizada. Não é possível retroceder na saúde. É muito cruel esse retrocesso. Ter quatro hospitais universitários grandes que não funcionam, isso tem que ser cobrado. Isso é muito ruim. Como vamos formar bem? Como ter qualidade? Isso compromete em pelo menos 30 anos a qualidade da saúde.
Quais são os principais problemas?
O principal problema é o dos hospitais universitários. O Rio concentra uma área grande de ciência e tecnologia. Acho que a saúde deixou de participar dessa área porque os hospitais universitários não funcionam. Como são hospitais federais, não são prioritários para o governo, para os municípios e nem para o MEC. Então, ficaram numa espécie de limbo. Mas acho que essa é a prioridade zero até porque as unidades são formadoras, são emissoras de valores simbólicos. A segunda prioridade, eu diria, é a da desprivatização. Nós temos essa tradição pública e hoje a gente tem um processo interno de privatização.
As redes federal, estadual e municipal na capital fluminense funcionam de forma igual ou uma é melhor do que a outra?
Sempre houve serviços melhores no município, no estado e em unidades federais. Percebo que isso continua, o problema é que alguns ficaram piores. Não é que tudo tenha ido para trás, o problema é que não há um ir para frente juntos. Para ir para frente se sucateia um conjunto de importantes serviços. Isso o Rio tem realizado. O Rio não tem sido capaz de cuidar de uma maneira mais articulada do sistema de saúde. Ora se prioriza a Atenção Básica, ora se prioriza o Instituto do Cérebro, ora se prioriza outra coisa que vai virar marca de campanha, marketing, mas não se fala do SUS.
O SUS ainda é um sistema bom para o Brasil?
Não tenho dúvida. Os dirigentes públicos deveriam ser atendidos no SUS. Quem é eleito, quem diz que o SUS é bom, deveria ser atendido no SUS. Não é mais possível esse certo estelionato nas plataformas eleitorais. Os candidatos dizem que está tudo bem e quando chega na hora do seu próprio atendimento eles não são atendidos no SUS. Secretário de Saúde, governador, prefeito, toda a classe política deveria ser atendida no SUS.
Pacientes estão recorrendo à Justiça para obter atendimento ou remédios. É um sintoma de sistema doente?
A judicialização da saúde é uma anomalia porque se tudo funcionasse bem não haveria isso. É um sintoma, tem que ser tratado. O que está judicializado? Primeiro, cobertura de planos de saúde, e segundo, cobertura do SUS. No caso de medicamentos, isso muitas vezes ocorre de maneira perversa, pois alguns medicamentos sequer foram aprovados pela Anvisa e temos que pagar sem ter a efetividade comprovada. A indústria farmacêutica se vale desse mecanismo para empurrar goela abaixo do SUS um conjunto de gastos que não deveria ocorrer.
Isso tende a terminar ou a crescer?
Há mais de 20 anos está assim. O número de ações judiciais não muda. Ou seja, a judicialização se tornou uma porta de acesso para os serviços de saúde, infelizmente.
As Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) são importantes?
Não. Nós avisamos que ia dar errado e deu errado. As UPAs hoje são um problema, porque elas retêm os pacientes. O paciente não consegue encontrar vaga em hospital e morre na UPA.
O que falta para melhorar a saúde?
Falta planejamento. Falta saber quanto precisa, quem vai investir, onde direcionar os investimentos, pensar o futuro.