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 NOTÍCIAS 

Não existe estratégia de saída segura sem um sistema robusto de rastreamento de casos e contactantes

Guilherme Werneck e Arthur Aguillar*

Ilustração: N. Güner

Na última quarta-feira, o Ministério da Saúde liberou R$ 4,9 bilhões adicionais para o apoio aos estados e municípios no enfrentamento da COVID-19. Esse valor representa cerca de 40% do total que havia sido liberado até então. Entre diversas demandas concorrentes na saúde, é preciso que os governos subnacionais considerem a implantação de estratégias amplas de rastreamento de casos e contatos. Nos locais onde a situação epidemiológica vem mostrando melhoria, a instauração de uma política de rastreamento de casos e contatos no âmbito do Sistema Único de Saúde é condição necessária para uma flexibilização gradual e segura das restrições ao contato físico. Entretanto, ainda são poucos os municípios brasileiros que vêm investindo nessa estratégia de forma ampliada.

A estratégia de rastreamento de casos e contatos é exatamente o que o nome sugere: um conjunto de medidas para identificar pessoas infectadas e seus contactantes, promovendo o isolamento do caso e a quarentena dos contactantes. Se um novo caso de COVID-19 ocorre  em um território específico do município, o seu isolamento e o rastreamento de seus contatos permitirá identificar e conter os focos de transmissão, evitando que a infecção se propague na comunidade. Com base nas ações de isolamento de casos e quarentena de contatos, a taxa de reprodução da infecção pode ser reduzida, levando à contenção do seu espalhamento por um certo território. Este tipo de abordagem, em conjunto com medidas de etiqueta respiratória, uso de máscaras e limitação de aglomerações, pode ser efetivo para limitar a transmissão comunitária, evitando assim que uma infecção atinja toda a população. Se implementada de forma ampliada, essa estratégia permite poupar vidas e minimizar o impacto econômico da pandemia.

Em um momento em que o discurso dos gestores municipais foca em como e quando retomar as atividades sociais e econômicas, como sempre ocorre nas políticas públicas que tratam de problemas complexos, o mistério está nos detalhes: mesmo que a flexibilização das medidas de distanciamento físico ocorra no momento epidemiológico apropriado, esta só será segura se acompanhada de uma política efetiva de rastreamento em larga escala e adequadamente concebida. Implementar uma estratégia efetiva de rastreamento de casos e contatos não é tarefa simples. Em artigo deste blog, o ex-diretor do CDC, Tom Frieden, estimou que seriam necessários 200 mil profissionais trabalhando no rastreamento de contatos no Brasil. É preciso o aporte de novos recursos financeiros para a implementação dessa estratégia, que envolve não só contratação e treinamento de pessoal, mas também a elaboração de um protocolo de rastreamento, a ampla disponibilização de testes diagnósticos, em particular RT-PCR, cujos resultados precisam ser rapidamente liberados, e a aquisição de equipamentos de proteção individual para os rastreadores. Para ser bem sucedida, ela deve, ainda, estar integrada às ações da atenção básica e Estratégia Saúde da Família (ESF) no território, e a um sistema de vigilância em saúde bem estruturado, tudo isso em um cenário de restrições fiscais e de sobrecarga das secretarias de saúde. Há de se considerar, também, a possibilidade de incorporar ferramentas digitais e contatos telefônicos ao rastreamento territorial.

Se o desafio é hercúleo, já vemos iniciativas bem sucedidas sendo implementadas em municípios de diferentes portes populacionais de todo o Brasil, como São Caetano do Sul/SP, Jaboticabal/SP e Araxá/MG, cada um com uma estratégia específica, mas todos tendo em comum a ampla disponibilização de testes de RT-PCR, o isolamento dos casos positivos e o rastreamento de contatos.  Em Jaboticabal, localizada no Departamento Regional de Saúde de Ribeirão Preto (DRS XIII), por exemplo, a paralisação do transporte público e as restrições ampliadas do contato físico foram implementadas muito precocemente, permitindo a organização de um serviço específico para testagem de pessoas com sintomas gripais funcionando 24 horas por dia. Aos indivíduos sintomáticos, recomenda-se isolamento de 14 dias, sendo que a cada dois dias estes recebem ligação telefônica para ter sua condição clínica avaliada. Enquanto isso, é feito o rastreamento por telefone de todos os familiares mais próximos com quem ele teve contato. A cidade tem hoje 134 casos e 11 mortes confirmadas por COVID-19, taxas de incidência e mortalidade menores que a maior parte dos municípios vizinhos e que o restante da regional de saúde.

São Caetano do Sul, na região metropolitana de São Paulo e com cobertura de 100% da ESF, investiu em parcerias com universidades e empresas para desenvolver uma plataforma on-line de monitoramento remoto dos pacientes por equipes de saúde e a coleta domiciliar de amostras para diagnóstico. No primeiro mês de funcionamento do serviço, 1.583 indivíduos foram testados por RT-PCR e quase 30% deles tiveram resultado positivo, confirmando a infecção. Destes, apenas 30 tiveram que ser hospitalizados, enquanto os demais puderam ser monitorados em casa sem maiores complicações. Em Araxá, na região do triângulo mineiro, o processo de flexibilização das regras de distanciamento social vem acompanhada da ampliação da testagem com RT-PCR e por uma estratégia de rastreamento que se baseia na ESF. No município, os indivíduos sintomáticos que testam positivo no RT-PCR são isolados por cerca de duas semanas e acompanhados diariamente por telefone.

Em um momento onde falta coordenação entre os diferentes níveis de governo no enfrentamento da COVID-19 no país, é urgente implementar estratégias criativas em nível local de forma simbiótica com o sistema de saúde municipal, sem se contrapor à estrutura existente da atenção primária, e levando em conta a capacidade de implementação de cada ente da federação. Quando possível, construir este tipo de ação em conjunto com a Estratégia Saúde da Família, caracterizada por sua capilaridade e conhecimento do território, suas normas sociais e idiossincrasias. Os cerca de 266 mil agentes comunitários de saúde que atuam no Brasil podem ser o principal suporte deste tipo de estratégia no território, em conjunto com uma equipe de rastreadores de casos e contatos especificamente treinada para essa atividade e contando com a retaguarda de especialistas focados na coordenação e resolução de situações mais complexas. Além disso, no caso dos municípios pequenos, que sofrem com os desafios de escala em tantas dimensões da crise, o papel dos governos estaduais na implementação deste tipo de política será fundamental, apoiando as ações das secretarias municipais.

Embora estejamos vivendo uma das maiores crises sanitárias dos últimos 100 anos, o Brasil, este país de grande problemas e grandes soluções, conta com um histórico de experiências, tanto no rastreamento de casos e contatos de doenças infecciosas, quanto na rápida mobilização de profissionais durante emergências sanitárias e crises. Os serviços de vigilância epidemiológica já fazem cotidianamente o rastreamento de casos e contatos de meningite meningocócica e sarampo, entre outras doenças infecciosas. Essa estrutura de vigilância disseminada pelo território nacional pode ser acionada para orientar as ações de enfrentamento da COVID-19 no que tange ao rastreamento de casos e seus contactantes. Em sintonia com o Sistema Único de Saúde, em particular com as ações de atenção básica e Estratégia Saúde da Família no território, uma estratégia ampliada de testagem e rastreamento de casos e contatos vai se apresentando como uma alternativa cada vez mais necessária para que uma eventual flexibilização das regras de distanciamento físico seja paulatinamente implementada de forma racional e segura.

*Guilherme Werneck é vice-presidente da Abrasco, médico, doutor em imunologia e doenças infecciosas pela Universidade de Harvard, professor de epidemiologia do Instituto de Medicina Social da UERJ e do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ. Arthur Aguillar é economista, mestre em Administração Pública e Desenvolvimento pela Universidade de Harvard e pesquisador do IEPS. Artigo originalmente publicado na Folha de S. Paulo, em 21 de julho de 2020. 

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