Em entrevista ao portal da ESPJV/Fiocruz, a coordenadora do Grupo de Trabalho de Saúde Indígenas da Abrasco, traçou um panorama sobre as principais questões que vêm sendo enfrentadas pelos povos indígenas diante da pandemia de Covid-19. Além de uma série de mobilizações nas redes sociais, a pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) também aborda ações no campo do judiciário e do legislativo, tentando sensibilizar juízes e parlamentares para a gravidade da situação agravada pela inoperância do governo federal.
Confira como foi a entrevista.
Qual era o contexto da saúde indígena antes da pandemia e o que se agravou agora dentro desse novo cenário?
O subsistema de saúde indígena vem, ao longo dos anos, desde a sua implementação, com alguns problemas estruturais crônicos não resolvidos. Uma questão que ainda não está resolvida é o modelo de execução de contratação, que por vários anos foram feitos por contratos temporários, inclusive fazendo com que os trabalhadores fossem contratados anualmente. Depois passou para um outro modelo, quando a Sesai [Secretaria Especial de Saúde Indígena] foi criada, de conveniadas, com critérios mais rigorosos, mas que ainda é uma solução provisória. No ano passado, a crise se agravou na conjuntura de reorganização do Ministério da Saúde, quando se cogitou que a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) fosse incorporada dentro do Departamento de Atenção Primária. Essa crise foi resolvida com a pressão do movimento indígena que fez o Ministro Mandetta [Luiz Henrique Mandetta] rever sua posição, mas durante todo ano de 2019 ficou com a indefinição do que ocorreria com o término, previsto para novembro, dos convênios com as entidades que fazem as contratações das ações dos DSEI [Distritos Sanitários Especiais Indígenas]. Efetivamente, em janeiro de 2020, a gente estava com uma grande indefinição sobre a continuidade do subsistema a partir de abril. Todos os trabalhadores foram colocados em férias obrigatórias entre janeiro e fevereiro, e estavam em aviso prévio em março. A entrada do novo secretário veio junto com uma nova solução provisória prevista para encerrar em novembro deste ano, e temos a preocupação que a resposta encontrada esteja na ADAPS (Agencia para Desenvolvimento da Atenção Primaria a Saúde), que pode colocar a saúde indígena no setor privado e enfraquecer a transparência e controle social. Outra questão que a gente tem visto desde o ano passado, assim como o tudo SUS, é o impacto da Pec do corte de gastos [Emenda Constitucional n.º 95], que levou ao congelamento do orçamento e número de trabalhadores da Sesai. Daí quando você pensa na conjuntura da pandemia, uma grande preocupação era como seria dar conta da força de trabalho necessária para além das ações de enfrentamento, para suprir os profissionais que estão em afastamento, enfim, para as compras, inclusive, de estruturas e insumos. A gente sabe que as estruturas do subsistema já estavam muito prejudicadas. Com a Covid-19, sabíamos que seria necessário estruturar espaços específicos para isolamento, e para dar suporte respiratório para pessoas com quadro de agravamento. Sabíamos que ia ser necessário um conjunto de insumos e estruturas que não tinham no subsistema, então a gente, desde o começo, estava preocupada com a estruturação da resposta da Sesai a pandemia. Outro fator importantíssimo é a questão do controle social que, desde o ano passado, com o decreto 9759/2019, que enfraquece e extingue conselhos. E dentro desse contexto temos o Fórum de Presidentes de Condisi [Conselho Distrital de Saúde Indígena],que era um espaço que estava muito à frente das discussões e articulações do controle social indígena, foi extinto e está com suas reuniões suspensas até hoje aguardando uma decisão na justiça, e essa é uma das recomendações apresentadas na ADPF 709 em pauta no STF. Ou seja, desde antes do começo de enfrentamento da Covid temos visto dificuldades no diálogo da Sesai com as organizações e controle social indígena, por exemplo, quando a Sesai cria o comitê de crise nacional, não inclui nenhuma representação indígena e isso leva o movimento indígena a demandar representação. Enfim, é um modo de pensar a política de saúde indígena sem debate ampliado com os indígenas. Antes mesmo da pandemia, o subsistema estava frágil. O ano passado foi um ano crítico para a manutenção da Sesai, um ano com muitas indefinições em relação a como ia ser a continuidade desse subsistema, e ainda nos preocupa se existe a intenção de repassar para a ADPAS .Esse debate obviamente está secundário nesse momento pela questão da Covid, mas é toda uma conjuntura que vinha e que, enfim, nos colocaram numa situação grave e complexa.
E como é que tem sido hoje, o que foi feito até agora oficialmente por parte do governo nesse enfrentamento para os indígenas?
O governo desde meados de março soltou uma série de dispositivos, de notas técnicas, de informes que estão disponíveis numa página. Entretanto, o plano de contingência nacional e as notas técnicas repassam as responsabilidades para organização do enfrentamento da Covid-19 para os Distritos. Houve uma certa desresponsabilização de coordenação nacional de apoio e de garantia de que os distritos teriam mais condições de executar essas resoluções e articulações com secretarias estaduais e municipais de saúde. Entretanto, sabemos que os distritos têm poucos servidores, e autonomia bastante limitada em termos, inclusive, de licitação, de capacidade de execução, e de corpo técnico qualificado devido a alta rotatividade. Além disso, nos últimos anos vêm acontecendo essa tendência das coordenações de distrito passarem por mais indicação política do que técnica, o que também preocupa na condução das ações. A gente sabia que a estruturação de ações de vigilância no contexto da Covid-19 seria central. É preciso estruturar a vigilância, para você detectar caso e minimizar a transmissão, enfim, se você for ficar focando em só em tratar os doentes, não vai resolver.
Vai enxugar gelo, né… E era isso que estava acontecendo?
Exatamente. Era fundamental estruturar a vigilância para evitar a entrada e circulação do vírus. Mas justamente desse tipo de ação que as equipes de saúde indígenas tinham dificuldade de manter. O subsistema de saúde indígena nos distritos ainda trabalha em um modelo que foi criado pela Funai, de equipes volantes, que é um modelo focado em campanhas e mutirões e resolução de emergências, fazendo a remoção de pacientes graves. A Atenção Primária no subsistema é muito frágil para garantir atendimentos e regularidades em ações programáticas como vigilância nutricional e de Infecções Respiratórias Agudas (IRA). No caso da Covid-19, a gente imaginava que os distritos não iriam conseguir responder a tudo sozinhos, que dependeriam dos municípios e estados para garantir, por exemplo, diagnóstico de PCR, garantir o oxigênio, internação em UTI. Só que essa relação a nível local e regional é muito complicada na questão indígena, historicamente, as representações de distritos indígenas não conseguem influenciar e ter tanto peso para ter esse apoio em município e estado. Sabemos que é no nível loco-regional que estão os conflitos de interesse, por isso que a saúde indígena é federalizada até hoje. E a Sesai quando não toma postura de interceder, de brigar de uma maneira contundente e apoiar essa articulação com o Conass, Conasems e secretarias municipais e estaduais fragiliza a capacidade do Dseis a dar respostas. Pelo que a gente ouve, muitas demandas dos Dseis não estão sendo atendidas. A Sesai só tinha distribuído cerca de 280 testes rápido por distrito. Até junho haviam somente focado na distribuição de testes rápidos, quando sabemos que o recomendado é o RT-PCR. E apesar de terem distribuído cerca de 30 mil testes rápidos, como não foi feita uma testagem ampla, a mínima parte dos testes haviam sido usados, e a maioria com resultados positivos. A vigilância baseada em uma testagem oportuna e ampla poderia evitar a circulação do vírus, mas não é isso que vem acontecendo. A testagem dos profissionais não tem sido feita de forma rigorosa, a gente tem visto unidades de saúde, como a CASAI de Boa Vista, que teve 70% de profissionais contaminados confirmados. Tem outros distritos como o de Amapá que chegou a 50% dos trabalhadores com casos confirmados. Tem pelo menos 4 distritos em que há indícios de que a transmissão em comunidade iniciou com a contaminação de profissionais. Isso a gente está falando de casos confirmados, mas tem ainda aqueles que a gente ouve que estão sem confirmação, e tem um forte indício que aconteceu, no entanto, não temos informação.
E como está a questão da situação de saúde da população indígena? O que dizem os dados?
Esse é outro problema estruturante da Sesai, a falta de transparência dos dados. O sistema de informação de saúde indígena, o Siasi, é uma ‘caixa-preta’ há anos. Há até dois anos atrás, pelo menos os dados demográficos, desatualizados, eram disponibilizados, agora, nem isso.. Assim, nesse momento de crise sanitária, a gente não tem nenhuma possibilidade de acesso a esse conjunto de dados para fazer análises da situação de saúde e impactos da pandemia, a gente só tem dados consolidados nos informes epidemiológicos da Sesai. Então, não se consegue replicar esses cálculos e nem produzir outras análises. E ainda tem um ponto crítico porque a Sesai somente recolhe e consolida dados envolvendo áreas indígenas, e não o dado geral da população indígena, que a gente sabe que tem um contingente de, pelo menos, 300mil pessoas que estão fora de terras indígenas.
Que outro desafio você destacaria para o enfrentamento da pandemia?
Outro fator que impacta nesse sentido é a qualificação dos trabalhadores para o enfrentamento e a estruturação da vigilância e assistência da Covid-19. Os trabalhadores precisam estar devidamente qualificados sobre as medidas preventivas e seguindo corretamente os procedimentos de cuidado e, particularmente, do uso de EPIs. Mas qual é a orientação da Sesai? Nas notas técnicas indica a educação à indígena e dispõe uma lista de recursos educativos online sobre a Covid-19, e cabe ao trabalhador a responsabilidade pela sua qualificação. Agora pergunto, esses trabalhadores têm acesso aos meios de comunicação via internet? Já vou te dizer: em muitos lugares, não. Eu estou desde o começo da pandemia tentando fazer um skype com uma comunidade indígena para discutir a Covid-19 e não consigo. Um dos passos importantes, portanto, dependia de estruturar meios de comunicação, garantir meios para disseminar essas informações, em território indígena, porque quando você entra em área indígena raramente tem acesso à internet, tem que se estruturar alternativas como a radiofonia, por exemplo. Outro problema complexo, como você qualifica os agentes indígenas de saúde? É uma questão chave. Como você leva informação para os agentes indígenas que são quem está no dia a dia na comunidade? Esses agentes têm uma heterogeneidade de escolaridade, de diversidade linguística, de acesso a meios de comunicação e graus de profissionalização em saúde. O que ele vai fazer? Como vai ser o fluxo? Você tem fluxos gerais, mas o fluxo operacional do dia a dia no trabalho não tem orientação.
Recentemente, o STF foi acionado pela APIB para solicitar a elaboração de um novo plano emergencial para enfrentamento da Covid-19 em povos indígenas, o que isso significa e como pode impactar a partir de agora na estruturação dessas ações?
Estão acontecendo diferentes frentes de atuação originadas pelo movimento indígena, que historicamente, vem atuando para influenciar e propor a política de saúde indígena. Desde o começo, a APIB têm produzido e disseminado informações para os povos indígenas sobre as medidas preventivas acerca da Covid-19, e inclusive suspendeu a realização presencial do Acampamento Terra Livre, antes de diversas instituições, como a própria Abrasco. Outra articulação importante do movimento indígena é no legislativo, que se fortaleceu com a eleição da deputada federal Joênia Wapichana no ano passado, que lidera a frente parlamentar mista em defesa dos povos indígenas (FPMDPI). Então, desde o começo da pandemia, a Apib e outras lideranças indígenas, se alarmaram estavam monitorando a situação, procurando dialogar com o governo, os Distritos e também com a academia, como o Grupo de Trabalho de Saúde Indígena da Abrasco. Eles pediam subsídios técnicos para apoiar sua tomada de decisão e ações, e entende as respostas governamentais, inclusive. Um exemplo, foi a antecipação da campanha de influenza que o governo não tinha posto os indígenas no grupo prioritário. E aí, discutimos isso no GT da Abrasco, levamos a questão para a APIB e nas reuniões da FPMDPI, e foi uma pauta que se bateu nisso em vários documentos até que, enfim, depois de um mês a Sesai conseguiu a aprovação do Ministério da Saúde.. Particularmente, a frente parlamentar começou a ter reuniões semanais regulares sobre a questão da Covid-19, que resultou na articulação do projeto de lei 1142/20, que é o que foi sancionado com diversos vetos do presidente, inclusive do acesso de água potável e recursos hospitalares. Esse projeto foi elaborado entre março e abril, e contou com a participação de lideranças indígenas, diversos apoiadores, e claro, diversos parlamentares, mas demorou ir à votação. A estratégia do PL foi resultado da reflexão de que era importante garantir recursos extras, para ter ações que a gente sabia que o subsistema não teria condições como, por exemplo, a questão acesso a leitos de UTI e suporte de oxigênio, além de coisas que eram obrigação da Sesai e que ela não cumpre, como a questão do saneamento básico que foi vetado também. Isso é mais ou menos a mobilização que está na linha do legislativo.
Rapidamente também a Apib organizou eventos para debater o que os indígenas poderiam contribuir efetivamente com ações num plano de enfrentamento, então, teve o Acampamento Terra Livre, que aconteceu virtualmente no final de abril, quando surgiu a ideia de uma Assembleia, que foi chamada de Assembleia da Resistência Indígena para discutir elementos para construção de um plano das próprias organizações indígenas e parceiros, que se desdobrou em diversas ações como, por exemplo, o monitoramento amplo de casos confirmados e de óbitos por Covid-19, que tem apontado essa disparidade enorme entre os casos que a Apib contabiliza e os casos que a Sesai mostra. Isso é um ponto importante porque mostra que o subsistema, enfim, tem algumas fragilidades no seu alcance e que a resposta do restante da rede SUS também não contempla, que é a situação da população indígena que está em área urbana. E, por fim, esse plano da APIB foi lançado agora, no dia 9 de agosto, no Dia Internacional dos povos indígenas. Dentro do contexto dessa campanha, há uma frente de apoio às ações de saúde, uma frente de comunicação e informação em saúde, e uma frente de política e de articulação internacional para pressão para garantir que o governo cumpra suas responsabilidades de proteção dos povos indígenas e de direito à saúde. Por outro lado, a percepção da fragilidade da resposta governamental levou ao acionamento do judiciário, do Supremo Tribunal Federal por uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), o que é um precedente histórico. A Apib, em conjunto com partidos políticos, porque inicialmente esse tipo de ação só pode ser feita por alguns tipos de instituições, e daí dessa vez, pela primeira vez, foi acatada a solicitação de uma organização indígena. Então, assim, é uma ação histórica, ela visa uma questão estruturante da política de saúde indígena. O STF, portanto, é requerido a solicitar da União a elaboração de um plano de enfrentamento com a participação dos representantes indígenas, com Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e, sugere um apoio técnico da Fiocruz e do GT de Saúde Indígena da Abrasco. O ministro Luís Roberto Barroso, portanto, toma algumas decisões que são importantes, uma é que ele acata a necessidade de uma sala de situação e da implementação de barreiras sanitárias para povos isolados e de recém contato, que é uma questão específica. A outra medida acatada pelo ministro foi a de que a Sesai deveria, de maneira imediata, estender a assistência à saúde a indígenas em terras não homologadas e aqueles indígenas em áreas urbanas com barreiras no acesso ao SUS, questões que a Sesai ainda não respondeu como está executando, então, estamos esperando o esclarecimento disso. E, por fim, solicitou que em 30 dias a União apresentasse um novo plano nacional de enfrentamento da Covid-19 para povos indígenas, e nós pela Fiocruz e Abrasco participamos do grupo de trabalho. Esse tem tido um debate difícil porque recebemos um plano do governo desatualizado e nenhum pedido de demanda técnica específica por parte do governo para discutir ou aprofundar. A gente comentou o plano apresentado e fizemos recomendações para a União. O governo teve que refazer esse plano, ele foi apresentado ao STF na sexta-feira passada (dia 7), e, agora no dia 11 de agosto, houve uma intimação para a Apib, Abrasco e Fiocruz para fazer a análise do plano para ver o que precisa complementar e o que precisa ser corrigido. Minha percepção é que não tem exatamente um diálogo ou discussão técnica com o governo, a gente vai fazer novamente nossas críticas e recomendações.
E em relação às invasões dos territórios indígenas e instalação das barreiras sanitárias, como está a situação?
No documento do governo quando refere-se a invasores se mistura com os trânsitos dos próprios indígenas e os pedidos legais de entrada em território. E na nossa percepção não tem como você equiparar as três situações, invasor é invasor, invasor é ilegal, não é você colocar uma barreira com informações, como se fosse possível dialogar e testar os invasores, não existe isso. Então, a gente vai brigar por isso…Infelizmente o STF não pediu a desintrusão dos invasores dos territórios indígenas, mas o grupo da APIB e de especialistas elaboraram um documento com recomendações sobre a questão, e sobre as barreiras sanitárias nos territórios com povos isolados e de recém contato. Além disso, existem as barreiras nos demais territórios que também precisam de protocolos, insumos e apoio.
Essa disputa acontecerá neste próximo momento? Ainda há disputa quanto a isso?
Sim, isso ainda está em disputa, com certeza vai haver ainda muita pressão porque a gente está com indicadores muito claros de que as invasões estão aumentando, que o desmatamento aumentou muito mais do que no ano passado, que aumentou mais do que ano retrasado, que o garimpo está aí em expansão. E a gente sabe que, historicamente, esses invasores ilegais são meio de transporte de doenças. O garimpeiro, o invasor ilegal não é uma pessoa com todas as boas condições de saúde, eles também, por vezes, são pessoas vulneráveis, que também não têm assistência médica. Quero ressaltar que a ação do STF é fundamental nesse momento porque é a possibilidade de, vamos dizer, garantir essa participação dos indígenas. Essa medida garante a participação de um conjunto de atores importantes para o enfrentamento da Covid-19. Esse diálogo visa garantir algumas ações para essa pandemia ser tratada com a urgência que ela precisa ser tratada. Não podemos naturalizar que essa doença vai chegar, vai se transmitir rápido nas comunidades, vai matar algumas pessoas, e seguimos em frente.
Diante desse contexto e dessas dificuldades, qual é o papel dos agentes indígenas de saúde e os agentes indígenas de saneamento? Eles estão conseguindo atuar e qual é a importância deles nesse contexto de enfrentamento?
Eu não estou com contato direto com os agentes indígenas de saúde (AIS) no momento, eu acabei entrando na linha mais ampla nacional e não dei conta de acompanhar a ponta, ainda mais com essas pessoas que têm dificuldade de acesso a meios de comunicação a distância. Mas uma coisa no geral que a gente vê é o seguinte: historicamente os agentes indígenas de saúde e de saneamento são muito desvalorizados, a gente vê uma postura das equipes e dos gestores de que “não vale a pena ensinar para eles ações técnicas”. Dentro do curso técnico para AIS que fizemos lá na região do Alto Rio Negro, que foi uma parceria da FOIRN, SEDUC/AM, DSEIARN com a EPSJV/Fiocruz e ILMD/Fiocruz, a gente propôs, por exemplo, que eles fizessem o preenchimento da curva de crescimento das crianças, que eles monitorassem a vacina para fazer essa ação contínua, as ações de vigilância contínua tão importantes, e não só focar em agir quando aparece um problema, mas a gente encontrou muita resistência em dar esse tipo de atribuições. A gente chegou a entregar material de trabalho a eles, como balança de pesagem, e depois a equipe levou embora dizendo que os agentes indígenas não tinham que fazer nada disso. Existe ainda uma noção muito grande por aí de que o papel deles é dar um apoio logístico, traduzir, fazer alguns serviços gerais no posto de saúde. E para os agentes indígenas isso é muito frustrante. Eles já tinham outro papel antes do subsistema, na década de 1980 e 1990, eles eram treinados, e eram responsáveis por algumas ações de saúde, tinham muito mais responsabilidade antes do que quando teve a incorporação da equipe multidisciplinar de saúde indígena. Mas não está claro dentro da organização da vigilância quais atribuições são dos agentes. Dentro do contexto da pandemia, por exemplo, eles têm um papel fundamental. São eles que podem passar informações e orientações preventivas, que conhecem a língua, a realidade e o costume e avaliar se aquilo vai ser efetivo ou não. Eles podem pensar junto com as lideranças alternativas para o isolamento, se dentro do contexto que vivem dá para fazer algum tipo de isolamento, são eles que conhecem quem está circulando ou não, eles sabem muito mais rapidamente quem está com sintoma ou não. Então com certeza os agentes deveriam ser a base da estruturação das ações de prevenção e educação em saúde para poder, enfim, identificar as pessoas que estão com sintomas ou agravamento. A gente acha que eles poderiam inclusive implantar medidas técnicas a partir de protocolos e supervisão. Os agentes indígenas têm totais condições de fazer um teste rápido, uma oximetria para monitorar os casos, porque no contexto em que eles estão, em áreas muito remotas, você tem que dar esse tipo de atribuição, obviamente supervisionada, para garantir que se identifique um caso grave precocemente e faça uma remoção. A gente reconhece que os agentes são trabalhadores estruturantes da prevenção, da vigilância e da atenção no contexto da pandemia.
Entrevista publicada originalmente no portal da ESPJV/Fiocruz