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Naomar de Almeida fala sobre a gestão da pandemia em entrevista: “Irresponsável e criminosa, incompetente sob todos os aspectos”

Pedro Martins

Foto: Leonor Calasans/IEA-USP

O Instituto Humanitas Unisinos entrevistou o vice-presidente da Abrasco, Naomar Almeida Filho, e abordou os problemas estruturais do sistema de saúde no país e o aprofundamento das desigualdades no acesso à saúde causado pela pandemia da Covid-19. Para Naomar um dos desafios do setor passa pela formação dos trabalhadores da saúde.

O pesquisador aponta também os problemas das políticas de ajustes neoliberais, como a Emenda Constitucional do Teto de gastos e outras medidas de austeridade, que tiram verbas do SUS e ajudam a aumentar as desigualdades no acesso à saúde. Ainda nesse sentido, Naomar criticou de forma contundente a gestão do governo federal diante da pandemia. Segundo ele, a gestão foi “irresponsável e criminosa, incompetente sob todos os aspectos”. Ao ser perguntado sobre a vacina, o professor ponderou que não se deve esperar que essa seja a solução final da pandemia: “[a vacina] vai compor todo um arsenal de estratégias de superação do problema complexo que é a pandemia”.

Confira como foi a entrevi

IHU On-Line – Como a desigualdade do Brasil se materializa no campo da saúde? Quais os desafios para compreender as questões de fundo que parecem sustentar essas desigualdades?

Naomar de Almeida Filho – Na década anterior, pessoas de classes e grupos sociais desfavorecidos, em geral residentes em áreas remotas, antes excluídos, conseguiram mais acesso à assistência à saúde, sobretudo no nível de atenção primária, mediante a estratégia Saúde da Família. Apesar disso, aqueles com mais vulnerabilidade social continuavam com dificuldades na utilização dos programas de proteção e recuperação da saúde, sobretudo nos níveis secundário e terciário de atenção, amplamente disponíveis para setores sociais já beneficiados com melhores condições de vida e pela cobertura de planos privados de saúde. Mesmo antes da pandemia, havia problemas referentes a financiamento, gestão e qualidade do sistema público de saúde, agudizados pela recente crise econômica, social e política.

No setor público, aspectos organizacionais dos programas e instituições de saúde traziam obstáculos materiais e institucionais que geram desigualdades e segregação, disparidades de renda e de inserção social, no acesso a recursos assistenciais disponíveis, além do gap na informação determinado por diferenças de gênero, geração, educação e renda. Apesar de acolhidos no sistema, sujeitos de segmentos sociais vulneráveis e tipicamente mais necessitados de assistência de qualidade, passaram a sofrer uma nova ordem de desigualdades, internalizadas nos próprios atos de cuidado, resultantes da estrutura e funcionamento do sistema e da realização de práticas assistenciais de pouca efetividade e menor grau de humanização. Esses sujeitos se viam, e se veem, até porque isso não mudou, na condição de usuários de categoria inferior em um sistema público de saúde supostamente universal. Essa quebra da qualidade-equidade, essa nova modalidade de “iniquidade internalizada”, de natureza qualitativa, cotidiana, intrafuncional e camuflada, é exercida mediante formas sutis e culturalmente sensíveis de relacionamento intersubjetivo desumano, segregador e discriminatório. Assustador é que, em nosso país, a formação de competência para produzir e operar essas formas de iniquidade se encontra no próprio sistema de educação formal incorporado ao treinamento e capacitação de pessoal técnico e profissional em saúde.

IHU On-Line – A pandemia causada pelo novo coronavírus acentua uma série de problemas gerados pelas desigualdades na saúde dos brasileiros. Mas, além do recrudescimento das questões já conhecidas, o que mais a pandemia revelou em termos de desigualdades?

Naomar de Almeida Filho – Realmente a pandemia atingiu o Brasil no meio de uma agenda política de reformas centrada na austeridade fiscal e na redução do papel do Estado na economia. É a famigerada agenda neoliberal. Como resultado dos cortes de gastos e das reformas de ajuste neoliberal, principalmente reforma previdenciária e trabalhista, ao contrário do crescimento econômico apregoado, o que estamos vendo tem sido desemprego, crise e piora nos indicadores fiscais. A política de austeridade também desfinanciou o SUS e fragilizou a estrutura de proteção social em um contexto de aumento da pobreza e das desigualdades sociais. Com a pandemia, pelo contrário, as políticas econômicas, assistenciais, de saúde e segurança pública precisariam mitigar o efeito das desigualdades de toda ordem, desigualdades de gênero, de raça/etnia, de classe social, territoriais.

As medidas de distanciamento são muito difíceis de serem seguidas pela população pobre, com trabalhadores informais, autônomos, desempregados. São milhões de brasileiros que moram em áreas aglomeradas, em casas precárias, nas periferias das grandes cidades. Essas pessoas têm dificuldade em ficar em casa durante semanas, principalmente porque faltam recursos para tudo, alimentos, aluguel, água, energia. Além disso, é preciso cuidar de pacientes crônicos e grupos prioritários como gestantes e lactantes, bem como a população e grupos em situações de vulnerabilidade, as populações indígenas, ribeirinhas, grupos quilombolas. Uma pandemia como esta sem dúvida aprofunda desigualdades sociais, gerando um aumento da vulnerabilidade social, de iniquidades em saúde e de violações de direitos humanos, afetando diretamente grupos populacionais oprimidos e discriminados e, indiretamente, todos os pobres e excluídos. Isso tem efeitos terríveis sobre o conjunto da sociedade, uma sociedade que fica cada vez mais cruel, menos humana, menos solidária.

IHU On-Line – Como o senhor avalia a forma como o Brasil tem enfrentado a pandemia, de março até agora?

Naomar de Almeida Filho – Triste, lamentável. Irresponsável e criminosa, incompetente sob todos os aspectos. Mas não é o Brasil, realmente, nem o sofrido povo brasileiro. É o governo brasileiro atual. A Presidência da República teria constitucionalmente o dever de Estado de proteger a saúde pública. Autoridades sanitárias, ministros e secretários, teriam a obrigação de formular políticas de controle, carrear recursos, viabilizar meios, gerenciar processos e coordenar ações. Mas erraram feio, incorreram em sérios equívocos e omissões, uma sucessão de erros, atos trágicos que resultam em sofrimento e mortes totalmente desnecessárias. Até hoje o executivo federal não apresentou um plano nacional de enfrentamento da pandemia. O pior é que essas mesmas lideranças políticas continuam errando, e errando feio. E estou convencido de que o fizeram com má intenção, deliberadamente. O próprio Bolsonaro, e muitos dos seus seguidores, frequentemente encorajaram a quebra de quarentenas e medidas de distanciamento, promovendo aglomerações e descuido do uso de máscaras.

E não esqueçamos o vermífugo de uso veterinário, o remédio de piolho e sarna, o enema retal de ozônio. Todos tratamentos sem comprovação, aparentemente sem maior eficácia para tratar a covid-19. No caso da cloroquina, inclusive com efeitos colaterais fatais. Isso é irresponsabilidade criminosa. Seria apenas ridículo, tragicômico, se não tivesse custado vidas e sofrimento, se não tivesse representado enorme desvio de recursos públicos e energia institucional. O exército brasileiro fabricou milhões de comprimidos de cloroquina, estoques para décadas de tratamento de malária, muito além da validade do fármaco. Com esse e com outros medicamentos, laboratórios farmacêuticos aproveitaram para aumentar preços e lucros. No final de contas, tudo isso desabasteceu o SUS de anestésicos, anticoagulantes e sedativos, medicamentos auxiliares para tratar casos graves de covid-19.

IHU On-Line – O que, atualmente, norteia e embasa o pensamento acerca de saúde pública entre os gestores do poder público no Brasil? E o que deveria nortear e embasar?

Naomar de Almeida Filho – O presidente Bolsonaro afirmou que os governadores são responsáveis pela mortandade da pandemia porque não aplicaram o isolamento vertical que ele havia recomendado. Em mais de quarenta anos como professor e pesquisador em Epidemiologia, nunca soube da existência desse tal de “isolamento vertical”. Logo que apareceu, fiz uma busca cuidadosa na literatura médica e científica e nada encontrei. Ficou claro que isolamento vertical não é um conceito no campo da Saúde Coletiva nem no campo da Medicina. Por isso que eu chamei de fraude pseudocientífica.

Num artigo, eu fiz uma espécie de rastreamento de onde teria surgido tal proposta. Descobri que a ideia veio de um nutrólogo, autor de livros de autoajuda alimentar, um consultor de negócios com notórios vínculos com a indústria de alimentos, mas nenhuma competência em infectologia ou epidemiologia. Foi uma invenção aliás mal traduzida. O seu inventor, Dr. Katz, falou de “vertical interdiction”. Influenciado por seus conselheiros leigos, não pelo Dr. Fauci, epidemiologista do CDC [Centro de Controle e Prevenção de Doenças], Trump mencionou rapidamente essa ideia e, quase imediatamente, Bolsonaro adotou o “isolamento vertical” como política de governo. Realmente por lá ninguém levou Trump a sério, ele não falou mais no assunto, e passou para a cloroquina e outras drogas, mas essa é outra história, igualmente trágica.

IHU On-Line – No enfrentamento da pandemia, alguns estados têm demonstrado maior sensibilidade e atenção ao tema do que o governo federal. O senhor destacaria algum estado com atuação modelo no enfrentamento à covid-19? Por quê?

Naomar de Almeida Filho – É realmente notável o esforço que tem sido feito por estados e municípios para expandir a capacidade instalada de leitos, abrindo leitos de UTI. Mas essa estratégia tem problemas ou limites para controlar a pandemia. Mais do que hospitais de campanha, são necessários serviços ambulatoriais eficientes, unidades intermediárias equipadas e centros de terapia intensiva ou de referência para essas unidades, serviços de apoio diagnóstico e terapêutico adequados, com equipes completas, com medidas corretas de proteção individual e coletiva.

Avalio que os estados e municípios têm em geral falhado em utilizar as redes de atenção primária à saúde, com uma abordagem comunitária necessária para o enfrentamento da pandemia. A atuação dessas equipes deveria promover uma vigilância epidemiológica efetiva nos territórios, para bloquear e reduzir o risco de expansão da epidemia, coordenando ações de prevenção primária e secundária à covid-19, com identificação de casos, testagem e busca ativa de contatos, além do apoio ao isolamento domiciliar de casos e contatos. Mas isso só pode ser feito com apoio e coordenação nacional, com inteligência e organização centralizada, o que não se observa da parte do governo federal. No plano da gestão, além das ações municipais e estaduais, seria desejável a atuação do governo federal na busca e reconhecimento das inúmeras estratégias produzidas na sociedade, isto é, ações realizadas por organizações governamentais, não governamentais e experiências comunitárias, para fortalecê-las e integrá-las no enfrentamento nacional da pandemia de covid-19.

IHU On-Line – Em que consiste o Plano Nacional de Enfrentamento da Covid-19 lançado por entidades que compõem a Frente pela Vida? Como as propostas foram/têm sido recebidas pelo poder público?

Naomar de Almeida Filho – O Plano Nacional de Enfrentamento da Covid-19 foi uma iniciativa de entidades e movimentos sociais que atuam na área da Saúde que foram participantes da Frente pela Vida. Preocupados com a lamentável e grave omissão do governo federal, essas entidades apresentaram à sociedade um plano de ação bastante abrangente e completo. Mais de 50 pesquisadores de 13 entidades científicas e 21 grupos de trabalho do campo da Saúde Coletiva conduziram uma detalhada e sistemática análise das interfaces relevantes da pandemia e elaboraram 70 recomendações estratégicas e técnicas, dirigidas às autoridades políticas e sanitárias, aos gestores do SUS e à sociedade em geral. Trata-se de um documento de planejamento participativo, definido por uma pegada solidária e prática, aberto a contribuições e soluções a serem construídas, sempre coletivamente. O Conselho Nacional de Saúde logo acolheu a proposta e muito contribuiu para sua versão final, que foi apresentada às comissões do Congresso Nacional, ao Ministério da Saúde e a outras instâncias do SUS. O Congresso realizou audiências públicas, organizações sindicais e movimentos sociais estão discutindo o plano, mas infelizmente o Ministério da Saúde até hoje não deu retorno.

IHU On-Line – Qual a centralidade do SUS no enfrentamento da covid-19 e como o Sistema deve sair dessa experiência da pandemia?

Naomar de Almeida Filho – Para o enfrentamento da pandemia, precisamos consolidar os sistemas nacionais de vigilância em saúde e de vigilância sanitária, bem como efetivar a promoção da saúde. Tudo isso faz parte do SUS. Na atenção primária à saúde, o SUS articula as ações de vigilância epidemiológica, vigilância sanitária, vigilância alimentar e nutricional, vigilância em saúde do trabalhador e da trabalhadora e vigilância em saúde ambiental, além das ações intersetoriais em todas as áreas importantes no processo de determinação social da saúde.

Nos outros níveis de atenção, secundário e quaternário, que correspondem ao tratamento especializado e hospitalar, o SUS é essencial para reduzir os efeitos da covid-19. O enfrentamento da pandemia exige que o Ministério da Saúde, urgentemente, seja capaz de operar com a eficiência que a crise sanitária requer. Vai ser preciso reforçar o papel institucional do controle social do SUS, na definição e acompanhamento e fiscalização das políticas de saúde. Além de aumentar os recursos financeiros destinados ao SUS, é necessário a aplicação ágil e eficiente dos recursos disponíveis, o que infelizmente não tem se dado até o momento. E o pior é que o planejamento orçamentário do governo federal para o ano de 2021, em vez de repor recursos e reverter o subfinanciamento do SUS, aponta na direção oposta, com cortes ainda mais profundos na saúde, bem como na educação. O mais triste ainda é que esses recursos estão sendo desviados para ampliar os orçamentos das forças armadas.

IHU On-Line – Como avalia o papel e a participação da ciência e da sociedade brasileiras na pandemia?

Naomar de Almeida Filho – No mundo todo, tem sido impressionante a forte mobilização da comunidade científica, na busca de soluções para vários aspectos da pandemia, não apenas diagnósticos, novos medicamentos e vacinas. De fato, a ciência brasileira tem dado uma resposta incrível aos desafios, desde o desenvolvimento experimental de estratégias tecnológicas para novos testes, busca de novos padrões genômicos associados a riscos de adoecer e de casos graves da doença, até a avaliação de medicamentos e vacinas desenvolvidos contra o coronavírus.

No campo epidemiológico, minha área de pesquisa, destaco os inquéritos regionais e nacionais para determinar a presença de anticorpos na população, essenciais para acompanhar a dinâmica da pandemia entre nós. Os grupos brasileiros de pesquisa em ciências humanas e sociais têm dado grande contribuição para a compreensão das dimensões social, étnica, política, econômica e ética, todas elas afetadas pela pandemia. Mas o sistema brasileiro de ciência, tecnologia e inovação vem enfrentando nos últimos anos a mais grave crise de financiamento de sua história. Minha avaliação pessoal é que mais uma vez, em mais uma crise sanitária, apesar de todo o negligenciamento de políticos e lideranças ignorantes, ainda se revela a altíssima qualidade da rede pública de universidades e centros de pesquisa de nosso país.

IHU On-Line – O que a experiência da pandemia ensina acerca de saúde pública ao mundo? E o Brasil é capaz de compreender essa lição?

Naomar de Almeida Filho – Do ponto de vista epidemiológico, aprendemos que o controle da pandemia é viável, mesmo sem vacina e tratamentos específicos. Vejamos a comparação com a Nova Zelândia, com a China, com a Noruega. Isso permite avaliar o que seria, no limite histórico, em última instância, possível como hipótese mais otimista. Se o Brasil tivesse tomado TODAS as medidas corretas e SEMPRE no tempo certo, teríamos tido aproximadamente mil mortos. Mas alguém pode argumentar: a Nova Zelândia é uma ilha, isolada, distante, rica, com pouca gente, fácil de controlar. Ou a China é um país totalitário, com uma cultura disciplinada. A Noruega é um país com renda per capita e indicadores educacionais altíssimos. A comparação mais justa seria com países pobres, de grande população, com déficits de educação, com alta diversidade territorial. Vejamos a Índia: se aplicarmos as taxas de mortalidade da Índia, o Brasil teria tido menos de 7 mil mortos.

Ah, mas os países orientais têm uma cultura muito diferente da nossa… Então vale comparar com o Uruguai, nosso vizinho. Ah, mas o Uruguai é minúsculo… E a Argentina, país vizinho, com cultura próxima e problemas econômicos equivalentes? Se o Brasil tivesse a mesma taxa de mortalidade por covid-19 da Argentina, teríamos agora 22 mil e não os 112 mil óbitos de hoje. São mais de 90 mil mortes que poderiam ter sido evitadas! O que os argentinos tiveram e têm e nós não? Contaram com liderança nacional, credibilidade política e coordenação minimamente competente. O Brasil será capaz de aprender essa lição? A sociedade brasileira poderá reagir e dar fim a essa catástrofe política? Essa é a grande questão, que vai precisar de muita luta, muito empenho, muito sacrifício mesmo, para ser resolvida.

IHU On-Line – Hoje, no Brasil, em que estágio da pandemia estamos? O que há de vir?

Naomar de Almeida Filho – O resultado do desgoverno é que a pandemia fugiu a qualquer controle, tornando-se endêmica, como de fato está acontecendo no Brasil. Esperavam um pico epidêmico, mas temos aí agora um platô, com média de mil mortes por dia, sem expectativa de redução da transmissão. Por isso é que no Brasil, estamos acumulando recordes mundiais de mortalidade entre gestantes, entre pobres, entre profissionais de saúde, entre indígenas, e na população jovem. O Brasil deveria, logo no começo da pandemia, ter feito um rigoroso lockdown e reforçado os sistemas de vigilância epidemiológica na atenção primária do SUS, como fizeram todos os países que controlaram melhor os danos da pandemia.

IHU On-Line – Seja para discutir a retomada do sistema de educação, seja para a liberação de eventos e atividades com grandes públicos, a vacina é sempre apontada como um marco, a única forma de retomar tudo isso. O senhor concorda?

Naomar de Almeida Filho – Não concordo, de modo algum. A vacina é mais uma possibilidade que, provavelmente, vai compor todo um arsenal de estratégias de superação do problema complexo que é a pandemia. Para problemas complexos, não existem soluções simples. Medicamentos e combinações farmacológicas poderão aumentar a eficiência clínica no tratamento de casos graves, reduzindo sequelas e mortalidade, mas não se espera o que chamam de “bala de prata”. Esperar que seja assim é, pelo menos, ingenuidade.

IHU On-Line – Mesmo com a vacina, no pós-pandemia, o que muda no que diz respeito à vigilância sanitária e epidemiológica e na gestão de saúde pública?

Naomar de Almeida Filho – As estratégias de controle epidemiológico continuam sendo as mais eficazes para infecções respiratórias de alta contagiosidade, como a covid-19. São seculares, antecedem a própria emergência das ciências modernas, antecedem em muito a própria epidemiologia. E sua efetividade se ampliou muito com a descoberta e aperfeiçoamento de tecnologias diagnósticas rápidas, válidas e confiáveis.

IHU On-Line – Em que medida o Paradigma da Complexidade pode contribuir para a compreensão e o desenvolvimento do campo da saúde?

Naomar de Almeida Filho – Numa perspectiva da complexidade, a saúde deve ser pensada de maneira integral, articulada, para além dos marcos institucionais e doutrinários do campo restrito da saúde, mas pensando sempre como as diversas dimensões da vida (política, economia, ambiental, ocupacional, cultural, da mobilidade etc.) estão interconectadas. Há consenso de que a pandemia é sem dúvida um fenômeno de grande complexidade. Escrevi um ensaio justamente sobre esse tema. Nesse texto, argumento que a pandemia do novo coronavírus não se reduz a um patógeno que repentinamente se tornou capaz de ameaçar a saúde humana, o SARS-CoV-2. Nem se trata de conjunto de sinais e sintomas inicialmente desconhecidos de uma nova entidade mórbida batizada de covid-19. Nem uma série de indicadores epidemiológicos e curvas epidêmicas, nem um processo dinâmico de disseminação e contágio. Nem mesmo é uma grande narrativa, uma “infodemia” de fake news, mitos e mentiras, junto com o medo/pânico que tudo isso provoca, nem se refere às crises econômicas, políticas e psicossociais dela decorrentes ou a ela associadas.

A pandemia compreende um complexo de fenômenos e processos múltiplos, com grande diversidade, articulados a ricos e numerosos elementos de compreensão e análise, objeto de distintos enfoques. É importante notar que a pandemia compreende ocorrências simultâneas, com distintos objetos de conhecimento, processos de determinação e diversas possibilidades ou modos de intervenção, em várias dimensões – biológica, clínica, epidemiológica, ecossocial, tecnológica, econômica, política, simbólica – e suas respectivas interfaces. O enfrentamento da covid-19 tem que ser multidimensional, interdisciplinar, intersetorial, interprofissional. As medidas de controle são necessariamente atravessadas por valores e se definem por essa perspectiva totalizante e complexa. O contexto atual coloca a necessidade de compreensão dessas interconexões nas suas diversas escalas como uma tarefa urgente no âmbito da elaboração de qualquer plano de enfrentamento da pandemia de covid-19 e seus desdobramentos.

IHU On-Line – Como o senhor explica o negacionismo na saúde? Podemos afirmar que tem relação com um não entendimento da saúde e suas complexidades?

Naomar de Almeida Filho – Certamente revela ignorância, mas também, o que é pior e triste, é que mostra crueldade e oportunismo. No Brasil, o negacionismo de Bolsonaro, de Osmar Terra, seu conselheiro médico, e de outros terraplanistas ideológicos, custou milhares de vidas. Pelo que falou o próprio Bolsonaro e o quase ministro Osmar Terra, jovens e adultos deveriam ser deixados livres, de certo modo incentivando sua exposição ao vírus para acelerar o que supunham uma “imunidade de rebanho”. O Reino Unido inicialmente tentou seguir essa estratégia, mas, depois que as mortes se aceleraram e o primeiro-ministro Boris Johnson teve a covid-19, com gravidade moderada, tiveram que correr atrás do prejuízo. O negacionista contumaz que se chama Donald Trump começou a falar disso, porém, logo que a situação de Nova York se mostrou trágica, os governadores e as autoridades sanitárias tomaram suas medidas e ele ficou praticamente falando sozinho. Além de cientificamente inválida, essa estratégia é problemática também do ponto de vista da ética médica, na medida em que implica um genocídio anunciado. Além de enorme risco, isso não faz qualquer sentido, na verdade impede o controle da doença. Infelizmente, por ignorância, oportunismo e insensibilidade, os negacionistas continuam deliberadamente promovendo boicotes, sabotagens e obstáculos às medidas efetivas de combate à pandemia.

IHU On-Line – Que Brasil será esse depois da pandemia? Quais os desafios para pensarmos nesse ‘depois’?

Naomar de Almeida Filho – Confesso que neste momento tenho dificuldade de ser otimista. Gostaria de registrar somente uma coisa, uma certa esperança. Esperança de que a sociedade, principalmente esse povo sofrido, trabalhadores, professores, pensadores e pesquisadores, mas sobretudo os gestores e líderes políticos, aprendam as lições da pandemia, o que Boaventura Santos chamou de “a cruel pedagogia do vírus”. Quem sabe essas lições sejam capazes de tornar este país e esse mundo melhor…

Entrevista publicada originalmente no portal do IHU

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