Ligia Bahia entrevistada por Nice de Paula do Jornal O Globo em 25 de julho de 2013
A médica Lígia Bahia, professora do curso de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, há anos pesquisa o setor da Saúde no País e, hoje, integra o Instituto de Saúde Coletiva da UFRJ. Como muitos brasileiros, ela acha que o sistema de saúde privado está perdendo qualidade e responsabiliza a Agência Nacional de Saúde (ANS), órgão fiscalizador do segmento que, em sua visão, tem servido mais aos interesses das empresas do que dos consumidores. [Na foto à esquerda, Ligia Bahia. Crédito: Flaviano Quaresma/Abrasco]
Por que a senhora critica a diretoria da ANS?
Porque há uma captura do órgão regulador por quem é regulado, com a presença, na diretoria, de executivos que vêm das empresas. Não é de agora, mas neste governo está muito intenso e com pessoas de currículos medíocres. Desde que a ANS foi organizada sempre foi um vigilante do mercado dentro da agência, mas agora a relação está invertida: tem mais gente do mercado, estão ocupando muitos cargos.
Tem mais representantes das empresas?
A diretoria tem cinco pessoas, mas na prática tem quatro porque o presidente acumula duas funções. Então, neste momento, a diretoria da agência está com duas pessoas das empresas, uma da Amil e uma da Hapvida. A Amil fez doações milionárias para a campanha da presidente Dilma Rousseff e do governador Sérgio Cabral, e o representante da Hapvida foi indicado pela bancada do Nordeste. O fato desses empresários entrarem na agência tem repercussão prática e dramática. Esta semana, por exemplo, foi anunciado um aumento para os planos de saúde com um índice de mais de 9%, acima da inflação, acima dos aumentos salariais. Este é só um dos problemas.
Quais são os outros?
O que mais preocupa é a ANS ter autorizado a venda de falso plano coletivo: o coletivo por adesão. Neste, o valor do reajuste é definido inteiramente pela empresa, e se uma das pessoas do grupo fica doente, começa a dar despesas, a empresa pode extinguir o contrato unilateralmente. É um produto novo criado quando o presidente da ANS era o proprietário da Qualicorp que, não à toa, foi a empresa que mais se destacou na venda de planos por adesão.
Como escolher esses diretores, já que a senhora diz que nem bom currículos eles têm?
O currículo dessas pessoas é péssimo, é de uma mediocridade absurda. O que eles entendem é de fazer negócios para o mercado. O orçamento da ANS é público, quem deve estar lá são funcionários públicos, não necessariamente de carreira, mas pessoas tarimbadas na administração pública. Tem gente excelente para essas funções, não precisa ser um burocrata medíocre que vai destruir o mercado. O problema não é ser ou não funcionário público, o problema é a estatura que essas pessoas têm, que é zero. Foi gente colocada aí para facilitar mesmo, nem pegaram os melhores quadros das empresas privadas. E quando saem da agência, só precisam cumprir uma quarentena de 90 dias, remunerada, e depois voltam para a empresa, como se nada houvesse.
Como a senhora vê a questão do ressarcimento ao SUS?
A agência não vai conseguir resolver isso, com essa gente na diretoria. E isso é fundamental, não só para as contas do SUS, mas para melhorar a cobertura dos planos. Pela lei, eles devem ter uma cobertura abrangente, portanto o ressarcimento ao SUS deveria ser raro. Se pagassem cada vez que o cliente fosse ao SUS iriam evitar que isso acontecesse. A empresa não pode vender um lugar na fila do SUS. O sistema privado está cada vez mais igual ao SUS, e isso é responsabilidade da agência. Tem plano de saúde que só tem um hospital pequeno e a ANS permite que continue a comercialização, porque tem esses diretores lá para garantir isso. Ficamos com um sistema público ruim e um sistema privado ruim também. Nem tem bem o sistema público e nem o privado, é duplamente ruim. Não é possível o plano marcar um exame para daqui a dois meses.
E a questão dos médicos?
É uma boa agenda porque pelo menos a Dilma voltou a falar do SUS. Mas a proposta é muito fraca, muito confusa, autoritária, midiática. Acho que ter médico é melhor que não ter, mas essa medida não vai conseguir fazer isso. Não sou contra médicos estrangeiros, mas se a gente trouxer médicos da Bolívia e do Uruguai vai ser covardia com esses países, que têm piores condições de saúde do que o Brasil. É uma política externa da pior qualidade. O problema de distribuição é maior do que o número de médicos, mas em todos os países levar médicos para o interior passa pelas universidades públicas, com campus avançado. Assim, você sempre terá gente estudando e gente ensinando nesses campi, de maneira revezada, com perspectiva de carreira, com direito de volta. O Canadá tem um problema imenso, tem que atender os esquimós, e faz assim.