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Saúde não é mercadoria – Por Nilson do Rosário

Nilson do Rosário Costa*

Muitos jornalistas econômicos brasileiros ficaram surpresos com a suspensão do copagamento nos novos planos privados de assistência à saúde proposto pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Mais ainda pela justificativa usada pela presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, de que a assistência à saúde não é mercadoria.

A direção da ANS voltou a atrás da resolução de introduzir copagamento e franquia no setor de planos de saúde do país. É preciso lembrar que a preocupação com a atividade mercantil no setor saúde tem frequentado a agenda pública brasileira há décadas. Existe um amplo reconhecimento de que a procura por assistência à saúde é complexa e nada racional, ao contrário da procura por mercadorias comuns, como comida, vestuário ou celular. De fato, face à imprevisibilidade do surgimento de alguma enfermidade, a procura individual por serviços médicos, com exceção de seus aspectos preventivos, vem junto com o risco real de perda da capacidade de trabalho e, no limite, da perda da própria vida, não podendo ser postergada.

Além disso, a prestação de assistência à saúde apresenta diferença significativa em relação aos serviços tradicionais em razão da dependência do paciente à intervenção profissional, especialmente médica. O acesso aos serviços de diagnósticos e medicamentos de alto custo é determinado por decisão profissional, de modo que o paciente não possui controle sobre importantes componentes do seu tratamento.

O financiamento da assistência à saúde difere também substancialmente de outros serviços essenciais. Na maioria das situações, é baixa a probabilidade de que um indivíduo tenha uma enfermidade grave ou crônica no curso da vida. Entretanto, em caso positivo, dificilmente terá condição de financiar o tratamento com recursos próprios ou familiares.

O custo dos diagnósticos, tratamentos, cirurgias e hospitalização não é de modo algum pagável com recursos do próprio bolso pela maioria dos indivíduos. Por isso, como alertam Hsiao e Heller1 , é extremamente inquietante que metas para os gastos públicos e a carga fiscal, formuladas por lideranças políticas e economistas, não esclareçam os efeitos regressivos sobre a disponibilidade de serviços e medicamentos e, em última instância, sobre a condição de financeira e de saúde da população.

Estudos de meados da década de 1990 já demonstraram que nos países de renda média, como o Brasil, entre 20 a 30% das famílias tinham que tomar empréstimo ou vender patrimônio para pagar as despesas médicas. Esta decisão produz o “gasto familiar catastrófico”, ou seja, o sacrifício de patrimônio familiar para o tratamento de saúde de um dos seus membros. Portanto, não é possível planejar individualmente o consumo futuro de cuidados de saúde, especialmente de alto custo pelas consequências devastadoras sobre as famílias e indivíduos.

Diante das limitações das opções de mercado na assistência à saúde, as sociedades democráticas adotaram o financiamento público a fim de evitar a falência de indivíduos e famílias causada por doença grave, crônica ou incapacitante. Em 2014, a cada EUR 10 (dez euros) gastos com assistência à saúde, EUR 7,6, em média, vieram do orçamento público na Itália, França, Alemanha, Reino Unido e Espanha. O predomínio do financiamento por impostos econtribuições demonstra que a coordenação das preferências de pacientes e prestadores pelo setor público pode garantir a equidade no acesso e na utilização, e melhorar o bem-estar coletivo.

No Brasil, três décadas se passaram desde que o modelo de Sistema Único de Saúde (SUS) de acesso universal foi aprovado pela Constituição Federal de 1988. Ainda assim, o setor saúde brasileiro permanece muito fragmentado e sob a hegemonia privada. A área da saúde é uma fonte de mal-estar coletivo no Brasil. A implantação da universalidade de acesso pelo SUS, sem a rápida a ampliação da oferta de serviços públicos, agravou o racionamento do atendimento no setor público. A consulta nas especialidades médicas, os exames e as cirurgias são as principais intervenções objeto de racionamento pelo SUS, impondo aos usuários longos períodos de espera. Esta situação tem se agravado nos últimos anos. Em dezembro de 2017, por exemplo, 845 mil pessoas estavam em lista de espera para estes procedimentos no município de São Paulo, o mais rico da federação. Em 2012, a lista de espera era de 660 mil pessoas.

O desenvolvimento de um setor dinâmico de planos privados de assistência à saúde, suplementar ao SUS, não reduziu a sensação coletiva de desassistência em função da estratégia de seleção de risco e reajustes abusivos de preços. Em 2017, os beneficiários de planos de saúde coletivo ou empresarial abrangiam 81% dos que contrataram seguro saúde após a criação da ANS. Em razão disso, para uma pessoa ter acesso ao plano de saúde é preciso ter um bom emprego ou renda familiar alta. Na aquisição de um plano individual, os planos de saúde avaliam o risco de cada indivíduo com base na história pessoal e familiar. O resultado direto da estratégia de seleção de risco é o aumento do valor do prêmio para os grupos de maior risco (pessoas com doenças crônicas, idosos), que normalmente não têm condições de pagar o custo do seguro e ficam sem cobertura, demandando assistência governamental.

O país deve considerar o desafio da desmercantilização do setor da saúde proposto pela ministra Cármen Lúcia com responsabilidade e, sobretudo, urgência. Este desafio exigirá com certeza a ampliação substancial dos gastos governamentais com a saúde e uma revolução no padrão de governança dos setores público e privado.

* Nilson do Rosário Costa é pesquisador titular da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) e membro da Comissão de Ciências Sociais e Humanas em Saúde (CCSHS/Abrasco) – Publicado originalmente no jornal Valor Econômico – clique e acesse.

Notas
1 – Hsiao W, Heller PS. What Should Macroeconomists Know about Health Care Policy? IMF Working Papers, 2013.

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