O mais recente inquérito sobre a situação de (in)segurança alimentar da população brasileira, divulgado em 8 de junho de 2022 pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), apresenta um cenário nacional ainda mais alarmante, que comprova o adensamento de tendências já identificadas em pesquisas anteriores. Em 2020 (Rede PENSSAN, 2021) cerca de 116 milhões de pessoas no país viviam algum grau de insegurança alimentar. Em 2022, são 125,2 milhões nessa condição, significativo indicador de múltiplas desigualdades e da ausência de um Estado promotor de direitos, especialmente do direito à saúde e à alimentação, com segurança alimentar e nutricional (Rede PENSSAN, 2022). O agravamento da fome foi intenso e acelerado: a insegurança alimentar grave, que atingia 19 milhões de pessoas em 2020, segundo dados do I Inquérito da Rede PENSSAN, hoje atinge 33,1 milhões de brasileiros (Rede PENSSAN, 2021; 2022). Apesar das diferenças metodológicas em relação ao estudo realizado nos anos 90 (IPEA, 1993), esses números são maiores do que o de 32 milhões de brasileiros que estavam em situação de indigência e fome naquela conjuntura. Portanto, retrocedemos cerca de 30 anos!
Os dados foram coletados entre os meses de novembro de 2021 e abril de 2022 e indicam que mais da metade dos domicílios brasileiros (58,7%) enfrentava algum nível de Insegurança Alimentar (IA). Em 28,0% dos domicílios havia incerteza quanto ao acesso aos alimentos e qualidade da alimentação comprometida (IA leve) e a restrição quantitativa aos alimentos foi identificada em 30,1% dos domicílios 30,1%, sendo que 15,5% convivem com a fome (IA grave) (Rede PENSSAN, 2022).
A situação de insegurança alimentar está fortemente associada à renda e às condições de vida e saúde, e os dados nacionais expressam as desigualdades étnico-raciais, de gênero, geopolíticas e territoriais persistentes no país. Em termos percentuais, os domicílios mais atingidos pela fome e pela insegurança alimentar situam-se: (1) nas áreas rurais – quadro que se agrava quando não há disponibilidade adequada de água; (2) nas regiões Norte e Nordeste; (3) nos domicílios chefiados por mulheres, com raça/cor da pele declarada preta ou parda, com baixa escolaridade e que se encontram em situação de desemprego ou emprego informal. Destaca-se também a vulnerabilidade da condição alimentar e nutricional dos(as) agricultores(as) familiares, uma vez que as formas mais severas de insegurança alimentar atingem 38% dos domicílios desse segmento de agricultores. Causa indignação a vulnerabilidade das famílias com crianças menores de 10 anos – 37% em situação de insegurança alimentar moderada e grave. Presente desafiador, futuro comprometido!
Além da dimensão percentual, os números absolutos são alarmantes nas áreas urbanas, diante dos perfis de urbanização da população brasileira, uma vez que 27.405 milhões de pessoas encontram-se em situação de insegurança alimentar grave (fome) nas áreas urbanas (Rede PENSSAN, 2022).
Esse cenário já caracterizava a pobreza no país desde a década de 1980, mas tinha sido parcialmente revertido, especialmente até 2014, ao ponto de o Brasil deixar neste ano de ser considerado internacionalmente como um país assolado pelo flagelo da fome. Com base em resultados de pesquisas nacionais, registra-se que a redução da insegurança alimentar ocorreu entre o período de 2004 e 2014 e esteve associada a um conjunto de políticas públicas de proteção e inclusão social, redutoras de índices históricos de desigualdades, em várias áreas da ação pública. À época houve avanços em políticas de saúde, alimentação escolar, desenvolvimento social, transferência de renda e implementação de Restaurantes Populares, Cozinhas Comunitárias, Bancos de Alimentos além de Programas de Apoio à Agricultura Familiar, Agricultura Urbana, dentre outros. Tais políticas, associadas a um contexto de crescimento econômico, de queda nos níveis de desemprego e de valorização do salário-mínimo, contribuíram para a redução da Insegurança Alimentar na população brasileira.
No entanto, esse processo virtuoso sofreu uma reversão significativa nos últimos oito anos, que explica esses tristes resultados encontrados em 2022. O cenário trágico é fruto, dentre outros fatores, das crises econômicas e políticas vivenciadas no país desde 2014, que vêm afetando as condições de vida, de saúde, de acesso à renda e ao trabalho, com impactos diretos na insegurança alimentar, quadro que se deteriorou ainda mais com a pandemia de Covid-19. Resulta também de decisões governamentais, que reduziram o orçamento de políticas e programas sociais estratégicos para a garantia do acesso alimentar e para a promoção da alimentação adequada e saudável, concebida como um direito universal. Dados sobre o orçamento federal no Brasil indicam que os programas destinados a financiar a produção de alimentos, o acesso alimentar, as ações de prevenção e controle da obesidade, a vigilância alimentar e nutricional, e a promoção da alimentação adequada e saudável sofreram uma variação negativa de investimentos, com redução que chegou a 85% dos recursos entre 2014 e 2017 (Souza et al., 2019).
A crescente insegurança alimentar está associada a medidas governamentais implementadas especialmente a partir de 2016, quando são congelados os investimentos nas políticas sociais por meio da Emenda Constitucional n.º 95 – o chamado “teto de gastos” – e intensificadas a partir de 2019, com a marginalização orçamentária e a fragilização institucional radical do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) expressa na extinção do próprio Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA).
Essa dinâmica indica os termos, a intensidade e os rumos de um desmonte e reconfiguração de políticas públicas que vinham sendo internacionalmente reconhecidas como exitosas e estratégicas para a garantia da SAN. Um exemplo recente é a instituição do Programa Auxílio Brasil, que substitui e desconfigura (ao, dentre outros, pulverizar benefícios com regras distintas de inclusão) o Programa Bolsa Família, que impactava positivamente o acesso alimentar, além do Programa Alimenta Brasil que substitui o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), cujas avaliações indicam a relevância das ações implementadas para a garantia da SAN. Os recursos destinados ao PAA tiveram, em 2012, a aplicação de R$ 586 milhões do orçamento federal. Em 2021 foram aplicados R$ 58,9 milhões e, até maio deste ano, apenas R$ 89 mil.
Diversas organizações da sociedade civil vêm reiterando o alerta sobre a gravidade desse cenário institucional de desmonte das políticas de Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN, CPCE e ANA, 2021; CFOAB, 2021) [1] e atuando para reverter esse processo, com destaque para o movimento de resistência, denúncia e proposição expresso pela Conferência Popular de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional.
O contexto mais amplo de acesso alimentar se deteriorou tanto pela retração dos investimentos em políticas públicas, que são fundamentais para fortalecer a produção e o abastecimento de alimentos para o mercado interno e garantir disponibilidade e preços acessíveis dos alimentos, quanto pelo agravamento do cenário de desemprego, perda do poder aquisitivo, aumento da inflação dos alimentos – especialmente daqueles in natura em comparação com os ultraprocessados. A praticidade, aliada a outros fatores, tais como o custo cada vez menor e o forte apelo das campanhas de marketing das multinacionais de alimentos, impulsionam o aumento vertiginoso do consumo de produtos alimentícios ultraprocessados nas camadas mais vulnerabilizadas da população, tendo impactos negativos nas culturas alimentares e nas práticas de comensalidade, além de se associar ao aumento da obesidade e Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT).
O Sistema Único de Saúde (SUS) é estratégico para a garantia do Direito à Alimentação Adequada e Saudável, intrínseco à garantia do acesso alimentar e os impactos desse cenário para o SUS são diversos, considerando a complexificação das demandas de cuidado nutricional diante da coexistência e sinergia entre os quadros de fome, insegurança alimentar e nutricional, DCNT, obesidade e outras formas de má nutrição associadas às carências de micronutrientes. Esse contexto só reforça a importância dos esforços compartilhados de fortalecimento do SUS e do SISAN, nas esferas federal, estadual e municipal, por parte dos atores, sujeitos e organizações que militam no campo dos Direitos à saúde e à alimentação e nutrição no país.
Referências:
[1] Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), Comissão de Presidentes de Conselhos Estaduais de Segurança Alimentar e Nutricional (CPCE) e Articulação Nacional de Agroecologia (ANA): Carta aberta pela rejeição da MP n. 1.061 (disponível em: <fbssan.org.br>; acesso em: 27 out. 2021). Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB): Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 885. Brasília: OAB, 2021 (disponível em: <stf.jus.br>; acesso em: 28 out. 2021).
REDE PENSSAN. Inquérito nacional de insegurança alimentar no cenário da Covid-19. Rio de Janeiro: Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, 2021. Disponível em:http://olheparaafome.com.br/VIGISAN_Inseguranca_alimentar.pdf. Acesso em: 1 fevereiro 2022.
REDE PENSSAN Insegurança Alimentar e Covid-19 no Brasil. Rio de Janeiro: Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, 2022. Disponível em Relatorio-II-VIGISAN-2022.pdf (olheparaafome.com.br)
Souza, LEPF, et al. The potential impact of austerity on attainment of the Sustainable Development Goals in Brazil. BMJ Global Health 2019; 4:e001661.