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O Comitê Deficiência e Acessibilidade da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) vem a público manifestar repúdio ao Decreto nº 9.759, de 11 de abril de 2019, que extingue ou submete à justificativa de necessidade de existência os conselhos e outros órgãos colegiados não criados mediante lei.

Na esteira da redemocratização do país no final da década de 1970 do século XX e da mobilização internacional dos diversos movimentos sociais, as pessoas com deficiência constituíram, a partir de grupos e entidades participativas, espaços democráticos e/ou institucionais de participação social. O mais importante deles, o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CONADE), criado em 1999, configurou um passo fundamental para associar “a cidadania ativa às políticas sociais” (RAMOS-MENDES, 2007, p. 144)1 , de modo a aproximar as questões da vida cotidiana das pessoas com deficiência às decisões governamentais sobre políticas que as afetam, direta ou indiretamente.

+ Acesse o teor da nota em PDF no site da ABA

Estamos falando de uma parte da população brasileira que busca um projeto emancipatório condizente com o respeito à diversidade de seus corpos e à sua condição humana. Trata-se de um segmento populacional heterogêneo, tanto por tipo de deficiência quanto por estar inserido em todos os demais segmentos populacionais, a partir do recorte de camadas sociais, especialmente quando definidas por faixas de renda e capacidade de consumo, de gênero, sexualidade, geração, raça/etnia, dentre outros.

Por isso, a existência de conselhos de direitos das pessoas com deficiência e outros conselhos temáticos implicam na possibilidade de debater e intervir em políticas públicas que afetam os seus modos de vida, visando à igualdade de condições e de oportunidades.

O CONADE tem a responsabilidade de participar, avaliar e monitorar as políticas públicas para pessoas com deficiência, inclusive dimensionando sua atuação na perspectiva da intersetorialidade.

Dentre as diferentes atribuições constantes no seu regimento interno, destaca-se “o acompanhamento, o planejamento, a avaliação e a execução das políticas setoriais de educação, saúde, trabalho, assistência social, transporte, cultura, turismo, desporto, lazer, política urbana, reabilitação e outras
relativas à pessoa com deficiência”.

O controle social exercido pelo CONADE contribui, portanto, para evitar a elaboração e implementação de leis e políticas públicas que estejam em desacordo com as lutas e os direitos já garantidos às pessoas com deficiência, impedindo o retorno de discursos e práticas discriminatórias e contrárias à ampla participação e igualdade de oportunidades desse segmento.

Assistimos com muita apreensão o retorno de concepções paternalistas, assistencialistas e excludentes no trato das questões relativas à deficiência no Brasil, que é signatário da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) – dentre outros tratados internacionais que também garantem
direitos específicos a esse grupo social – e aprovou a Lei Brasileira da Inclusão (LBI). Ambos os instrumentos jurídico-legais, CDPD e LBI, promovem a autonomia e inclusão social desse segmento populacional.

Uma sociedade que respeite a diversidade humana é uma missão desafiadora, não devendo existir uma estrada pré-definida, porquanto nessa construção não é possível prescindir da participação dos conselhos de defesa de direitos das pessoas com deficiência, por ser este um espaço onde é possível a
vocalização, discussão e decisão legítimas sobre todo processo de construção e execução de políticas da deficiência.

O rico debate nesses conselhos dos projetos de lei de parlamentares, que muitas vezes trazem ideias ultrapassadas sobre o papel das pessoas com deficiência na sociedade, geram propostas de adequações no texto que ao final resultam em políticas públicas efetivas e que expressam o pensamento desse
coletivo numa perspectiva social, visando melhor atendê-lo. De outro modo, corre-se o risco de legislar com ideias partidárias e clientelistas que trazem concepções parciais e individualizadas, muitas vezes equivocadas e não representativas desse grupo social. Assim, são através dos órgãos de representação da sociedade civil que foram conquistados avanços em diversos assuntos relacionados à acessibilidade, cultura, saúde, educação, trabalho, entre outros, e é a sua existência que garante a possibilidade de que novas questões sejam tratadas e consigamos avançar.

A participação social é imprescindível para o exercício da cidadania e os conselhos são ferramentas democráticas que permitem a participação ativa dos cidadãos e cidadãs nas decisões que afetam o seu direito à existência e o seu dia a dia. Consideramos estarrecedor que a institucionalidade democrática,
configurada nos marcos da redemocratização do país, seja afrontada com uma medida que impedirá que pessoas com deficiência, representadas por entidades da sociedade civil, tomem posição na implementação e controle social de políticas públicas que impactam diretamente em suas vidas.

Ademais, a ideia de justificar a existência de um conselho nacional dos direitos da pessoa com deficiência é análoga à ideia de justificar a própria existência das mesmas pessoas com deficiência, algo como pedir licença para viver.

De todo modo, o CONADE apresentou no dia 25 de abril de 2019 à Ministra de Estado, Sra. Damares Alves, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, um documento expressando a sua “histórica efetividade e qualidade nos serviços de interesse público e social que vem prestando nas
duas décadas e a importância desse colegiado”. Esse documento foi exigido pelo Decreto nº 9.759, de 11 de abril de 2019, para fins de tomada de decisão sobre a exclusão do referido conselho. Cumpre ressaltar o conjunto de graves reformas que o presente decreto impõe aos colegiados que permanecerem ativos, reformas que, dentre outros elementos, ferem seus regimentos internos, responsabilidades e condições efetivas de atuação.

Nesse sentido, a extinção do CONADE ou a sua reforma mediante interesses governamentais que ferem a autonomia do conselho quanto à sua organização interna, se configura em um retorno à caridade e às diferentes formas de extermínio promovidas pelo Estado e pela sociedade desde a antiguidade, violando amplamente os direitos humanos no que se refere ao reconhecimento da sua dignidade humana, sua igualdade perante a lei e o seu direito à participação na vida política e pública, tal como posto na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.

Por fim, por entendermos a experiência da deficiência como transversal a todos os demais grupos sociais, solidarizamo-nos estendendo nossas mãos em coalizão para manifestar nosso mais veemente repúdio pela extinção dos demais conselhos e órgãos colegiados de outros segmentos ou temáticas.

Brasília, 13 de maio de 2019.

Assinam esta nota as seguintes entidades:
Associação Brasileira de Antropologia (ABA)
Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO)
Associação Brasileira de Ensino em Fisioterapia (ABENFISIO)
Conselho Federal de Psicologia (CFP)
Rede Nacional de Ensino e Pesquisa em Terapia Ocupacional (RENETO)
Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia (SBFa)

Referência
1 RAMOS-MENDES, D.C.V. Representação política e participação: reflexões sobre o déficit democrático. Revista Katalysis, vol. 10, nº 2, p. 143-153, 2007.

 

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